segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A individuação de Annie Ernaux é O Acontecimento de todas nós

 

Annie Ernaux


A individuação de Annie Ernaux é O Acontecimento de todas nós

O mês de Julho foi marcado pela discussão acerca dos direitos reprodutivos das mulheres no Brasil e no mundo, e o Clube do Livro do Persona acompanhou o movimento com a escolha de leitura de O Acontecimento, de Annie Ernaux (Foto: Fósforo/Arte: Ana Clara Abbate)

Simplesmente isso não se vê. (…) Nos tomamos por pessoas, mas não somos pessoas. Somos, à nossa maneira, pequenos acontecimentos.

– Gilles Deleuze em aula ministrada no ano de 1980 no Centro Universitário de Vincennes, em Paris, na França.

Raquel Dutra

Quando, em 2000, Annie Ernaux intitulou o livro que abriria pela primeira vez ao mundo a sua experiência com uma gravidez indesejada e um aborto clandestino na França de 1960, ela com certeza estava ciente da referência filosófica que marcaria a sua obra, mas não imaginava com a mesma intensidade a dimensão da sua representação – e, por consequência, o rompimento que O Acontecimento provocaria com suas próprias conceituações. É que, enquanto o termo do título evoca a ideia de uma experiência de individuação (como o próprio detentor da “filosofia do acontecimento”definiu), todo o desenvolvimento do livro trata de uma história particular vivida a nível universal (mais precisamente, presente em quase metade das vivências em questão do mundo).

O exercício de desenvolver as referências filosóficas e leituras sociais de O Acontecimento, no entanto, são ocorrências restritas ao lugar do leitor. Na linguagem da escritora e professora francesa nascida em 1940 e vista como uma das principais vozes feministas da contemporaneidade, não existe nenhuma pretensão. Seu instrumento como literata é a palavra direta e substantiva (como bem traduzem os títulos de seus livros), cujo objetivo é “resistir ao lirismo da cólera ou da dor” a fim de construir a verossimilhança da sua experiência, que ela transforma em livro quarenta anos depois. A partir de suas memórias do período registradas em seus diários, Ernaux retorna aos seus 23 anos, quando, depois de deixar um contexto familiar marcado pelo cotidiano interiorano da classe operária francesa do século XX, engravidou contra a sua vontade em meio aos seus estudos sobre Literatura Moderna na Universidade de Rouen, no auge de sua juventude. 

Nas palavras da autora, uma das mais importantes da França na atualidade, a história cria o pano de fundo para um texto que se aproxima de um ensaio, tratando sobre a onipresença da lei e os imperativos que regem o corpo das mulheres ao longo dos anos. Essa prática singular em analisar as relações que existem entre o público e o privado, o concreto e o abstrato, é só o primeiro dos muitos méritos do décimo livro de Annie, que como característica principal da sua Literatura, agraciada com o Prêmio Marguerite Duras em 2008, já tem até o seu nome próprio cunhado pelos estudiosos de sua obra: autosociobiografia. Em julho de 2022, cinco meses depois da publicação do livro no Brasil pela tradução de Isadora de Araújo Pontes, e quando o Clube do Livro Persona o escolheu como a sua décima leitura, nada se mostrou tão socialmente atual quanto as experiências de Ernaux em 1963.

No dia 24 de Junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos votou de maneira contrária à manutenção do entendimento do aborto como direito fundamental, até então definido pela lei nacional desde 1973. Na prática, isso quer dizer que o país não tem mais o compromisso de fornecer o método como serviço de saúde pública de maneira universal, o que significa que cada estado fica livre para criar sua própria legislação e entendimento para a questão – e segundo estudos, pelo menos metade deles deve retroceder no que diz respeito à legalização do aborto. 

É fato que as decisões na chamada “Terra da Liberdade” impactam os debates dos demais países do globo, mas no Brasil o assunto surgiu de maneira ainda mais urgente: por meio do jornal The Intercept Brasil, tornou-se público um caso de uma menina grávida em decorrência de um estupro aos 11 anos, que foi não só impedida de realizar um aborto legal (embora a atual legislação do país esteja sempre ameaçada), como também orientada pela juíza de seu próprio processo a desistir do procedimento.

Desta forma, quando a obra da autora foi colocada em foco diante do mundo novamente, especialmente por conta do sucesso da adaptação cinematográfica dirigida por Audrey Diwan, o intervalo de tempo e espaço entre a experiência particular de Ernaux e o aqui e agora não apresentava diferença. Mas antes de qualquer ocorrência de O Acontecimento se reproduzir na vida real, a voz do livro já identificava o tal fenômeno da atemporalidade através da permanência de suas próprias palavras.

Acabo de achar entre meus papéis essa cena, escrita há vários meses. Percebo que eu tinha usado as mesmas palavras (…). Essa impossibilidade de dizer as coisas com palavras diferentes, essa união definitiva da realidade passada e de uma imagem que exclui qualquer outra, me parecem a prova de que realmente vivi assim o acontecimento.

Como evidência da importância que a experiência tem para a história e obra autosociobiográfica de Annie Ernaux, existe a própria presença do assunto, que é debatido desde a primeira vez que a autora assinou um livro. Les Armoires Vides (Os Armários Vazios, numa tradução livre), seu romance de estreia publicado na França em 1974, já trazia uma narrativa autobiográfica que introduziu os temas de O Acontecimento com uma conjuração temporal impressionante: um ano antes da interrupção voluntária da gravidez ser legalizada no país.

Se a História e a biografia já são esferas inicialmente distintas aproximadas pela Literatura de Ernaux, não é desafio nenhum para a autora mesclar um caráter metalinguístico ao livro a fim de refletir sobre seu ofício. Nesse sentido, O Acontecimento parte de maneira nada linear de um lugar de observação das relações que as mulheres mantêm sobre si mesmas para analisar a dimensão de poder que a escritora constrói com seu próprio texto – pois essa é a identidade singular de Annie Ernaux, muito influenciada pelas suas formadoras francesas: observar a si mesma para melhor observar o mundo ao seu redor.

A consciência direta disso vem junto das suas tomadas de conclusão mais profundas. No nível radical que o texto de Ernaux atinge com O Acontecimento, a autora não só relembra com criticidade a terrível prática da Arte de seguir o hábito da sociedade de não ver valor de representação e legitimidade em determinadas histórias, como coloca toda a relevância de seu ofício justamente nesse lugar. A personagem principal é ela mesma, uma jovem em um processo de exercício profundo de suas liberdades, que vive em um embate com as restrições impostas a ela no mundo externo. Assim, Annie toma como trabalho o reportar essa vida de uma mulher que não corresponde aos padrões socialmente impostos ao seu gênero, desde suas motivações até seus arrependimentos.  

Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento – que ele tenha acontecido e que eu não tenha feito nada dele. (…) Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.

É no ínterim de O Acontecimento que Ernaux verbaliza e nomeia de maneira objetiva a sua própria identidade literária, mas foi em seu quarto livro que a autora consolidou sua órbita ao redor de ideais de emancipação e rompimento. O Lugar, obra vencedora do prêmio Renaudot em 1983, que traz sua família para o centro da história, firmou o nome de Annie em seu lugar de relevância para a Literatura contemporânea com uma narrativa firme de distanciamento de suas raízes, um processo realizado em prol de se tornar quem se almeja ser. 

No entanto, nenhum símbolo pode dizer mais sobre emancipação e liberdade do que o que marca a narrativa de O Acontecimento – não à toa, ele é nomeado assim, de maneira um pouco mais subjetiva do que os títulos costumeiros de Annie Ernaux. Muito mais do que um processo concreto que confere a uma mulher o poder sobre o seu próprio corpo, a autora insere mais uma camada à sua mistura de biografia, história e sociologia, entendo o aborto a partir de uma ótica quase filosófica: uma experiência plenamente humana, que permite acesso ao ciclo e aos extremos completo da vida, desde seu início, até o seu fim. 

Sei que hoje eu precisava dessa provação e desse sacrifício para desejar ter filhos. Para aceitar essa violência da reprodução no meu corpo e me tornar, por minha vez, lugar de passagem das gerações.

Terminei de pôr em palavras isso que se revela para mim como uma experiência humana total, da vida e da morte, do tempo, da moral e do interdito, da lei, uma experiência vivida de um extremo a outro pelo corpo.

Entre aspirações, significações e conclusões tão amplas sobre a sua experiência, a autora não deixa de sentir o que lhe foi particularmente marcante daquela época: a solidão e o desamparo, em nível legal, social, institucional e cultural. O choque vem da simples dificuldade da jovem Annie em enxergar as diferenças de gênero através de seu olhar tão livre e independente, que não vê outro lugar para si mesma se não aquele de completa igualdade com os demais. Nada disso, no entanto, define O Acontecimento, uma vez que a obra não existe de maneira a transformar a vida de Annie Ernaux em – literalmente – um livro aberto.

Inevitavelmente, é o que acontece, mas seus relatos íntimos, reflexões metalinguísticas e críticas sociais estão na obra com um objetivo bem definido: destacar a maneira como, além de tudo, essa experiência universal de desapropriação de si mesma causa uma uniformização violenta das nossas identidades – o que vai na direção contrária do nosso movimento de emancipação individual e coletivo. No mundo em que vivemos, nenhuma história sobre aborto é só uma história sobre aborto, e nenhuma experiência de violência de gênero é individualizada em seu alvo da vez. E as palavras de Annie Ernaux parecem ser as únicas possíveis para compreender que O Acontecimento dela nunca foi – e nunca será – só dela.

PERSONA




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