Arquivo de Roberto Bolaño guarda inéditos e revela métodos do autor
Papéis do escritor chileno serão exibidos ao público pela primeira vez a partir da próxima semana, numa grande exposição em Barcelona
Por Guilherme Freitas
Nos últimos dez anos, os leitores de Roberto Bolaño se acostumaram com a imagem, bastante bolañesca, de um escritor que continua a publicar regularmente mesmo depois de morto. A primeira obra póstuma foi seu romance mais ambicioso, “2666”, que o chileno deixou praticamente pronto ao morrer, em 2003, e foi lançado em 2004 com recepção crítica consagradora. Nos anos seguintes, outros livros foram editados a partir do arquivo mantido em sua casa no pequeno balneário de Blanes, na Catalunha: a antologia poética “La universidad desconocida”, o volume de contos “El secreto del mal”, a coletânea de ensaios “Entre paréntesis” (todos inéditos em português) e os romances “O terceiro Reich” e “As agruras do verdadeiro tira”, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras.
Administrado por sua viúva, Carolina López, o arquivo de Bolaño desperta, por sua fecundidade assombrosa, reações que vão do deslumbramento de fãs e pesquisadores à exasperação dos mais céticos quanto à qualidade das obras póstumas. A curiosidade de uns e outros será saciada a partir de terça-feira, quando o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB) inaugura a mostra “Arquivo Bolaño”, primeira exibição pública dos papéis do autor.
Com curadoria de Valerie Miles, uma das editoras da “Granta” espanhola, e Juan Insua, diretor do CCCB, a exposição reúne centenas de itens como cadernos manuscritos, textos datiloscritos, fotografias, livros, desenhos e objetos pessoais. Em meio a esse material, há originais de pelo menos quatro romances inéditos: “O espírito da ficção científica”, escrito em 1984 e dedicado a Philip K. Dick, “Diorama” (ao lado, um dos cadernos do manuscrito), “A virgem de Barcelona” e “La Paloma Tobruck”.
Cobrindo todo o período em que Bolaño viveu na Espanha — de 1977, quando chegou a Barcelona vindo do México, até 2003 — a mostra ilumina uma fase ainda pouco documentada de sua carreira: os quase 20 anos que passou escrevendo copiosamente, à margem do mercado, antes de começar a publicar por grandes editoras, em 1996, quando lançou “La literatura nazi en América”. Em entrevista por e-mail, Carolina López define a mostra como “a constatação documental da criação de um universo literário”:
— O arquivo de Roberto era seu material de trabalho. Em alguns casos, podemos encontrar a origem de um texto numa notícia de jornal, num filme, na transcrição de sonhos. O arquivo é testemunho do acúmulo de ideias, de sua grande inspiração e do muito que trabalhou ao longo da vida. Foi maravilhoso encontrar um poema anotado em um guardanapo quando ele vivia no México. Tudo isso explica perfeitamente a eclosão criativa de sua última década de vida — diz Carolina, esclarecendo que os inéditos não serão lançados por enquanto. — Nesse momento em que a obra de Roberto está sendo editada em todo o mundo, é preciso dar tempo às traduções antes de publicar outras obras.
Dividida em três partes, referentes às cidades catalãs onde Bolaño viveu (Barcelona, Girona e Blanes), a mostra propõe uma “cronologia criativa” de sua obra, assinalando a gênese de livros que, em muitos casos, começaram a ser burilados décadas antes da publicação. Os cadernos revelam um método baseado na reescrita incansável, com figuras e temas que aparecem em poemas, contos e esboços de romances. Manuscritos dos anos 1980, por exemplo, registram as primeiras menções ao pintor italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que inspirou nome e estética de um dos protagonistas de “2666”, o escritor alemão Benno von Archimboldi (em “As agruras do verdadeiro tira”, que começou a ser composto naquela década, também há um tratamento preliminar desse personagem).
Em entrevista por telefone, de Barcelona, Valerie Miles observa que os manuscritos mostram o trabalho de um artista consciente e meticuloso, na contramão da imagem recorrente de Bolaño como adepto de uma escrita automática e impulsiva. É apenas um dos mitos que a exposição quer desmontar. Entre outros, estão o boato persistente sobre o vício em drogas e álcool (“A bebida dele era o chá”, brinca a curadora) e a ideia, alimentada pelo próprio Bolaño, de que ele se considerava acima de tudo poeta e só passou à ficção para se sustentar ganhando concursos literários (num caderno de 1978 lê-se: “escrevo versos, sonho com um romance”).
Valerie se surpreendeu ao encontrar, muitas vezes no meio de um parágrafo de ficção, recados que Bolaño escrevia como que para animar a si mesmo: “Comprometa-se, Roberto, a olhar”, anota em um deles. Em outro caderno, desenhou um homem puxando os próprios cabelos, imagem que remete a uma conhecida passagem de “Amberes” (2002): “Do perdido, do irremediavelmente perdido, só desejo recuperar a disponibilidade cotidiana de minha escrita, linhas capazes de me erguer pelos cabelos quando meu corpo já não aguentar mais”.
— Bolaño aproveitava tudo. Sua obra é como uma máquina, um grande artifício que deve ser lido como um todo. Ele reescrevia, reescrevia, mas sempre voltava a essa massa de símbolos e personagens que desapareciam e reapareciam de um livro para outro, às vezes com nomes e características diferentes. Seu método era como um caleidoscópio, no qual sempre se pode ver os elementos sob uma nova luz — diz Valerie.
A exposição reúne ainda itens curiosos, como a coleção de jogos de guerra de Bolaño — aficionado pelo assunto, dedicou a ele boa parte da trama do romance “O terceiro Reich”. Há também livros e anotações que aludem a suas influências, como Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, além de cineastas e pintores.
Segundo Carolina, a exposição marca a conclusão da primeira fase da organização dos arquivos. Além de Barcelona, haverá homenagens pelos dez anos da morte de Bolaño (que se completam em 15 de julho) em Blanes e Madri. A exposição fica até 30 de junho em Barcelona e, a julgar pelo interesse mundial em torno do escritor, pode até viajar pelo mundo, avalia Valerie.
— Outro dia soube que já existe um incipiente culto a Bolaño na China — espanta-se a curadora. — Me disseram que há uma livraria muito popular em Xangai chamada 2666.
Na obra de Roberto Bolaño, a memória é o nosso Amuleto
Bruno Andrade
“Soube que tinha de resistir. De modo que me sentei nos ladrilhos do banheiro das mulheres e aproveitei os últimos raios de luz para ler mais três poemas de Pedro Garfias, depois fechei o livro, fechei os olhos e disse para mim: Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai, latino-americana, poeta e viajante, resista” (pág. 29).
À primeira vista, Roberto Bolaño, é lembrado por dois romances – possivelmente os mais importantes da Literatura na América Latina no final do século XX e início do novo milênio: Os detetives selvagens(1998) e 2666(2003). O último – uma espécie de testamento do autor chileno, lançado postumamente e com quase mil páginas – desfez a ideia de que o apocalipse ocorrerá sob sirenes e explosões; na verdade, o fim do mundo já começou, e é tão silencioso quanto os assassinatos constantes e sigilosos dos jovens latino-americanos. Por outro lado, com seu romance de 1998, Bolaño deu vida à aura libertária das revoltas deste lado da América, sob uma perspectiva idealizada que, não obstante, é ela mesma rechaçada no livro. Ainda assim, é em Amuleto(1999), lançado entre uma obra e outra, que o autor concentra magistralmente seus temas principais: a poesia, a política e a violência.
Mesmo que o pequeno romance (ou novela) tenha saído de um trecho emblemático de Os detetives selvagens – se trata de uma versão “expandida” de um capítulo do livro –, a obra funciona muito bem de maneira avulsa, pois sua mensagem ressoa na forma política e no cuidado de Bolaño com a linguagem (as repetições e a poesia “proseada”). A protagonista e narradora, Auxilio Lacouture, uma imigrante uruguaia auto-denominada a “mãe de todos os poetas”, investiga mentalmente um crime hediondo, que será revelado próximo ao final do romance. Contudo, crimes de vários os tipos perpassam a trama, rememorados por Auxilio no banheiro feminino da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), local onde se esconde após a tomada repentina da universidade pelos militares.
Em setembro de 1968, durante as semanas que Auxílio se mantém escondida, comendo papel higiênico, o pequeno espaço do banheiro se transforma em um túnel do tempo, no qual a personagem revive seus anos na Cidade do México, lembrando dos poetas León Felipe e Pedro Garfias – pelos quais trabalhou como doméstica, de forma voluntária, para ficar mais próxima da poesia –, e também viajando para o futuro, quando conheceu, nos anos 1970, o jovem Arturo “Arturito” Belano – o alter-ego do próprio Roberto Bolaño. A forma não-linear com que se lembra dos acontecimentos talvez sintetize o trauma de Lacouture, mas mais do que isso, trata-se de um mecanismo, quase sempre utilizado pelo autor para dar vida a uma realidade fragmentada: a “real” e cotidiana, e a “subjetiva”, memorialística.
Assim como o romance antecessor, Amuleto apresenta o conflito do idealismo de uma geração com a realidade latino-americana. A verdade é que o ambiente claustrofóbico do banheiro se transforma, para Auxilio, em uma espécie de Aleph – do conto de Jorge Luis Borges, uma das principais referências do chileno –, em que se pode, paradoxalmente, enxergar o passado, o presente e futuro de uma só vez. Mas mesmo quando seus livros se repetem – sejam em temas ou em enredo, propriamente –, Bolaño nunca deixa de acrescentar novas informações, dando vida a uma espécie de obra infinita. O título de 2666, por exemplo, tem sua única explicação em Amuleto: “A [avenida] Guerrero, a essa hora, se parece mais que tudo com um cemitério […], mas com um cemitério de 2666, um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo” (pág. 65).
O escritor chileno entrelaça fato e ficção de forma natural, sempre carregando uma ampla carga histórica por volta do enredo. Em Amuleto – assim como no capítulo de Os detetives selvagens –, Auxilio Lacouture é baseada em uma pessoa real: no histórico ano de 1968, momento em que o exército mexicano realmente reprimiu manifestantes na Cidade do México, a poetisa Alcira Soust Scaffo manteve-se escondida no banheiro da UNAM, pós tomada da Cidade Universitária pelos militares. Ela sobreviveu bebendo apenas água da torneira durante os 12 dias que se manteve escondida. Assim como Auxilio, Scaffo foi amiga de León Felipe, e Bolaño a conheceu pessoalmente em 1970.
Em diversos momentos, a tensão sobre a produção cultural na América Latina domina a narrativa, e, diante dos atos repressivos na trama, são construídas metaficções cujo objetivo é refletir sobre a violência e uma forma melancólica de resistência. É nesse sentido que o filósofo Walter Benjamin, através do ensaio Sobre o conceito da história (1940), ascende como referência. “Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”, escreve Benjamin, visto que os bens culturais são concebidos através da perspectiva do horror.
“Esta será uma história de terror. Será uma história policial, uma narrativa de série negra e de terror. Mas não parecerá. Não parecerá porque sou eu que conto. Sou eu que falo e por isso não parecerá. Mas no fundo é a história de um crime atroz” (pág. 9).
O nome de Auxilio Lacouture sinaliza para os dois objetivos de sua história, narrada por ela própria, através de um jogo de palavras que não parece coincidência. Enquanto “Auxilio” em espanhol realmente signifique “ajuda”, “Lacouture” tem uma sonoridade parecida com “la cultura”. Assim, seria uma espécie de “pedido de socorro da Cultura”, que se vê ameaçada por forças externas, ao mesmo tempo em que Auxilio luta para não deixar que ninguém se esqueça daquele momento histórico. Ainda assim, Bolaño é sempre perspicaz ao deixar pistas de interpretação.
O romance se abre com o aviso de que será uma história de terror, cuja afirmação ganha importância, de forma cíclica, ao final, quando – após revelado toda a barbárie – percebemos que nos deixamos levar por essa narradora pouco confiável. Não porque não seja verdadeira – ou que não queira realmente transmitir o ocorrido –, mas porque suas memórias estão em ebulição e, por isso, confusas e delirantes, de modo que a trama “não parecerá” uma narrativa de terror, mas uma ode à memória histórica e à poesia. O pano de fundo violento é não somente o cenário tenebroso avisado desde o ínicio, mas também é seu aviso final: Amuleto relembra que esquecer os horrores da Ditadura leva o terror ao esquecimento, deixando à História sua inevitável repetição. Auxilio Lacouture é, sozinha, a única resistência contra as forças fascistas.
Quase toda a ficção de Bolaño se preocupa com a vida dos escritores, especialmente dos poetas marginais – seus “poetas-protagonistas” tendem a ser párias empobrecidos, isolados do mainstream literário. O próprio autor se via antes de tudo como um poeta, e começou a escrever romances e contos porque a poesia “não pagava as contas”. Não muito diferente do que acontece com a maioria dos ficcionistas, a vida do chileno foi essencialmente sua fonte de inspiração (ele até possuía um cartão impresso com os escritos “Poeta e Vagabundo”).
O “Realismo Visceral”, movimento literário que Ulisses Lima e Arturo Belano fazem parte em Os detetives selvagens, é apenas outro nome para o “Infrarrealismo”, criado por Roberto Bolaño e Mario Santiago Papasquiaro – a quem Amuleto é dedicado – em 1975, na Cidade do México, no qual se negava nomes como Octavio Paz, vencedor do Nobel de Literatura em 1990 e condenado por Bolaño por ser o “líder do establishment cultural mexicano”. Os infrarrealistas atacavam essa ordem ideológica porque, através dela, se criou uma cisão entre a “alta cultura” e a “cultura popular”, mantendo sempre uma diferenciação na qual se classificava a “alta cultura” como única forma autêntica de manifestação artística. Por essa razão, o movimento também se notabilizou por sabotar lançamentos de livros, cerimônias de premiação e atividades literárias gerais de poetas pertencentes a esse mundo da “alta cultura”.
“Pensei: a vaidade da escrita, a vaidade da destruição. Pensei: porque escrevi, resisti. Pensei: porque destruí o escrito vão me descobrir, vão me pegar, vão me violentar, vão me matar. Pensei: ambos os fatos estão relacionados, escrever e destruir, se esconder e ser descoberta. Depois me sentei no trono e fechei os olhos” (pág. 125).
Antecedendo o que seria sua obra máxima, Amuleto insere uma protagonista feminina vítima de violência. Tempos depois, em 2666, o mote da história gira em torno do feminicídio na fronteira México-Estados Unidos, cujo assassinato de diversas mulheres em Santa Teresa levanta mistérios. Esses homicídios vêm ocorrendo há anos (o romance se passa na década de 1990), e os culpados – ou culpado – seguem desconhecidos. Santa Teresa é uma versão ficcional de Ciudad Juárez, uma verdadeira cidade fronteiriça mexicana que se tornou notória nesse período pelo grande número de mulheres assassinadas. Por vários anos, quase semanalmente, os corpos de mulheres jovens – algumas com 11 ou 12 anos – apareciam no deserto ao redor da cidade.
A maioria das vítimas eram trabalhadoras nas maquiladoras da cidade (fábricas de propriedade norte-americana), e muitos corpos sequer foram identificados. Embora várias prisões tenham sido feitas, nunca se estabeleceu um único assassino ou grupo de assassinos que estavam por trás dos crimes. Nos últimos anos de vida, Roberto Bolaño se tornou obcecado pela brutalidade e mistério em torno desses delitos: como algo tão bárbaro e cotidiano pode passar despercebido? Como pode se tornar habitual? Assim, ele começou a trocar correspondências com jornalistas que cobriam ou cobriram casos passados no local, pedindo aspectos específicos dos assassinatos – como os detalhes forenses –, mas também características geográficas da Ciudad Juárez, reconstruídas com precisão nas páginas de 2666. Essa violência, inclusive, está presente no título do próprio romance: trata-se do número da besta duas vezes – uma violência que, após se tornar naturalizada, torna-se maior que o próprio Apocalipse.
Amuleto condensa, em pouco mais de 100 páginas, todo o interesse de Roberto Bolaño pela violência. A origem desse ímpeto está relacionada não apenas com sua própria juventude – um jovem pobre do Chile que, se não fosse escritor, seria detetive ou delegado, e que, mesmo após publicar livros, vendia bijuterias para sobreviver –, mas também com sua própria maneira de enxergar a Literatura: uma “vocação perigosa”.
Bolaño analisa que a América Latina é toda constituída pela concepção da violência, em suas diversas facetas, e como ele próprio profere no famoso Discurso de Caracas(1999), “toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos”. Auxilio, “a mãe de todos os poetas”, é também a “mãe” da memória histórica do México e do Chile. Esquecer tudo é o maior pesadelo de Lacouture, e embora os gritos de protesto e indignação sejam aquilo que ressoa em sua memória, embora o canto das revoltas seja aquilo que ela e nós mantemos ressoando em nossas cabeças, é esse mesmo som que nos permite recordar; “esse canto é o nosso Amuleto” (pág. 131).
As agruras do verdadeiro tira, de Roberto Bolaño. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 320 pgs.R$ 44,50
Por Antonio Marcos Pereira
Consta que uma das maiores preocupações de Bolaño em seus últimos dias era garantir o sustento da família. Preocupou-se à toa. Com o sucesso da recepção de sua obra quando estava vivo, e que só se multiplicou, e com a notável astúcia gerencial dos administradores de seu espólio literário, recursos não hão de faltar para seus dependentes. É por força do trabalho desses gestores que podemos ter acesso a este “As agruras do verdadeiro tira”, e isso merece menção por estar associado a uma característica marcante do livro: seu caráter de esboço, material de trabalho, papéis em processo de uso e elaboração pelo autor.
Provavelmente o texto jamais seria publicado como está aqui, malgrado as mil justificativas para chancelar a publicação mobilizadas tanto no demasiado didático prólogo, do ficcionista e crítico barcelonês Juan Antonio Masoliver Ródenas, quanto na nota final, da viúva de Bolaño, Carolina López. O livro se assemelha ao que conhecemos do trabalho de competentes jazzistas, que criam a partir da improvisação de temas sobre os quais vão elaborando até encaminharem a música no sentido que intuem ser certo. E talvez o mais impressionante seja que, independente desse caráter de esboço, a narrativa seja tão capaz de magnetizar e manter o interesse do leitor, evidência da mandinga de Bolaño em ação, que é também uma assinatura, parte do que esperamos de seus livros.
Vários temas e personagens presentes em outros textos aparecem aqui, e a leitura, para quem já passou por outros trabalhos de Bolaño, oferecerá a graça adicional do reconhecimento desses trechos, da observação de semelhanças e diferenças. Esse jogo encanta, pois nos momentos de pura reprodução — como na taxonomia que abre o livro, associando cada poeta a uma variante de performance homossexual, e que já vimos em “Os detetives selvagens”; ou na narrativa que reproduz creio que exatamente o “Outro conto russo”, de “Chamadas telefônicas” —, parece que estamos medindo a familiaridade com sua obra pela extensão de nossa capacidade de reconhecimento.
Trata-se, sabemos, não de matéria exclusivamente associada a este livro, mas de um modus operandi do autor, do qual são os exemplos mais claros as novelas “Estrela distante” e “Amuleto”, expansões de trechos de, respectivamente, “La literatura nazi en America” e “Os detetives selvagens”. Se as semelhanças são notáveis, há também refrações curiosas e surpresas — em particular na maneira como se articulam no livro os dois protagonistas, Amalfitano e Arcimboldi, que remetem a dois dos personagens principais de “2666”.
É na maneira como Amalfitano é tratado aqui que, talvez, apareça a maior razão para o interesse do livro. Apresentado sob uma luz trágica algo distinta da que inferimos em “2666”, Amalfitano é um personagem movido pela descoberta algo tardia, algo casual, de sua homossexualidade, transformada em escândalo pelo fato de que o alvo de seu desejo é um aluno e jovem poeta, Padilla, coisa que o pudibundismo do mundo universitário espanhol não tolera e que motiva sua expulsão da universidade e sua migração para o México.
A relação entre os dois constitui o núcleo dramático mais produtivo, e é apresentada como uma mescla de revelação, ignorância e tragédia. Ao descrever Amalfitano, um homem de 50 anos, como um sujeito ainda capaz de aprendizado a respeito de si, a narrativa projeta no adulto uma condição de instabilidade, uma contemplação da possibilidade de abertura para o mais imprevisível e improvável: Amalfitano vive, com relação a seu desejo por Padilla, uma surpresa branda, como se percebesse a própria história como um capítulo ínfimo de um texto mais amplo e apenas eventualmente decifrável.
Circundam essa relação os demais personagens: a filha de Amalfitano, Rosa, que vive as dificuldades do deslocamento de Barcelona para o México e da descoberta da homossexualidade do pai; os personagens de Sonora, como Pancho Monje e os gêmeos Pedro e Pablo, um policial e um acadêmico; o escritor francês J. M. G. Arcimboldi, que tem várias obras descritas e comentadas, e cuja biografia é esboçada a partir de listas de amigos, inimigos, e de com quem se correspondia. Todos têm seu lugar, e contribuem para o que há de trama aqui, mas estão certamente à periferia do drama do professor de filosofia que se descobre homossexual aos 50 anos, e que ao tentar explicar à filha o que ocorreu consigo, imagina que se até o Muro de Berlim veio abaixo, “isso também podia acontecer com sua até então inequívoca heterossexualidade”, ambos manifestações da mesma contingência, sujeitos aos mesmos imponderáveis.
Padilla comenta com Amalfitano um projeto de romance que ambiciona escrever, “O deus dos homossexuais” (“o deus dos mendigos, o deus que dorme no chão, nas portas do metrô, o deus dos insones, o deus dos que sempre perderam”). Essas alusões parecem retratar o Grande Romance ambicionado por Bolaño por muito tempo, que encontrou aqui nesse “Agruras” seu espaço de exercício e experimentação: um livro capaz de ser generoso o suficiente para contemplar o que há de enigmático nas mais triviais experiências do mais ínfimo e esquecido dos humanos. Tal ambição, que se espalhou por toda sua obra, é admirável, e rara, e onde quer que se manifeste merece distinção.
Bolaño, Roberto A literatura nazista na América TRAD. Rosa Freire d’Aguiar
Companhia das Letras • 240 pp • R$ 54,90
Conheci Roberto Bolaño por meio de uma conversa entre ele e Ricardo Piglia, publicada em um antigo suplemento cultural dominical, no começo dos anos 2000. Bolaño já era falecido e morreu celebrado e premiado, mas eu nunca tinha ouvido falar nele. Além de ter gostado da maneira como ele pensava a questão da literatura latino-americana no diálogo com Piglia, na lista de publicações atribuídas a ele muito me chamou a atenção o título de um livro em particular: A literatura nazista na América.
“O que é isso?”, pensei. Fosse ensaio ou trabalho de historiador, eu teria algo em meu repertório para conectar com a ideia — o exemplo mais próximo sendo o Dicionário biográfico da extrema direita desde 1890, de Philip Rees. Mas a obra vinha listada como romance, e isso me intrigou imediatamente. A anomalia do título — que me evocava a fortuna ambivalente que tinha encontrado em História universal da infâmia, de Borges, em Avida dos homens infames, de Foucault, e na Enciclopédia dos mortos, de Danilo Kis — prometia.
Lá se vão mais de quinze anos. Resenhei outros livros do autor, acompanhei sua fortuna crítica e organizei com um colega um livro de ensaios acadêmicos dedicados a seu trabalho, mas foi assim, começando por esse livro que enfim aparece editado entre nós, em competente tradução, que me fiz leitor de Bolaño. Um desvio na cronologia de sua publicação no Brasil faz com que A literatura nazista na América chegue apenas agora, depois da publicação dos romances centrais, dos contos e também de vários livros póstumos. Mas convém lembrar que o livro é de 1996 e que marca um início: o autor está experimentando com seus materiais, pondo à prova sua capacidade, construindo sua assinatura. Bolaño está começando a ser Bolaño.
O volume tem cara de catálogo, ou de livro didático. É o recenseamento de um modesto enclave do campo literário, composto de pequenas biografias de cerca de trinta autores, vidas espalhadas por toda a América, abarcando do final do século 19 até meados do 21. As vidas vêm associadas a comentários a respeito do que escreveram e, ao final, há referências e bibliografia. Estamos familiarizados com o uso dessa estratégia para expor didaticamente a história da literatura: é um jeito careta e datado, mas justamente por isso conhecido e facilitador.
Descrever o livro assim, todavia, trai justamente aquilo que lhe confere estranheza e interesse. Para começo de conversa, trata-se de uma antologia com fundo falso, da qual estão sistematicamente ausentes os textos dos autores comentados. Temos suas vidas e obras, expressas em explorações de suas poéticas e descrições do que e como escreveram, mas seus escritos nunca aparecem, em um artifício que se tornará típico de Bolaño (pense nos poemas dos “real visceralistas”, nunca vistos em Os detetives selvagens, ou nos livros de Benno von Archimboldi, que não têm sequer uma linha citada no imenso 2666).
A voz do narrador-enciclopedista varia pouco, mas o grau de meticulosidade na descrição das peripécias que configuram uma fisionomia criativa e moral para cada um dos literatos varia muito, alterando a extensão e a complexidade dos relatos. Embora sejam figuras uniformemente lamentáveis, aqui são expostos em suas tentativas de conferir forma de texto a visões íntimas, bem como em seus esforços para fazer com que esses textos circulem, angariando para si uma reputação e um lugar na história literária.
Balbúrdia
Em sua maioria figuras marginais, usufruem de sucesso parco e são esmagadas tanto pelo ressentimento quanto pelos delírios de grandeza que, avivados por suas impotências, as sustentam. São, coletivamente, uma balbúrdia de ultraconservadores, xenófobos, antissemitas, racistas, sexistas, torturadores, milicianos, irmanados em seu esforço reativo com relação às conquistas sociais da modernidade. Painel eclético de reacionários, gente distribuída entre o abjeto e o demencial, alguns rezam por esse credo e efetivamente o praticam, ao passo que outros sonham com um mundo no qual suas crenças confiram efetiva forma à vida, e esboçam esses sonhos na literatura que produzem.
Imagine Bolaño na Espanha, vivendo precariamente, com cerca de quarenta anos, um filho, esforçando-se para romper a barreira inicial como autor profissional, buscando um simples abrigo editorial. Manuseia ideias, visita anotações, pondera sobre o que e como escrever. Pensa em escrever vidas literárias imaginárias, inspirando-se em um modelo de Marcel Schwob e alterando-o. Segue considerando alternativas e chega à ideia de uma história literária estruturada pela vinculação de seus praticantes a alguma forma de elogio ao fascismo.
Uma história da literatura fascista talvez até seja algo inédito. Mas um fascista nada mais é do que um nazista com o volume um pouco mais baixo. No fundo, para um e para outro, estão os mesmos desejos de anulação da diferença, de simplificação do mundo em nostalgia, de ressentimento e de purismo. Então por que não chutar o balde e mandar ver um livro sobre literatura nazista? A ideia parece rentável, em especial por gerar certa dinâmica de atração pela repulsa (não sendo nazista, você tem todavia sua curiosidade espicaçada pelo adjetivo, tão sui generis parece sua vinculação com a literatura).
Além disso, na mesma chave em que se constrói a distância temática com relação a uma literatura supostamente libertária, a cada passo da narrativa se enfatiza certa semelhança: os nazistas também têm sua crítica, suas revistas, seus prêmios e suas editoras, e a história literária que os propicia é também aquela que nos serve. Não há dúvida: esses tipos são reacionários nojentos — mas também patéticos, como talvez seja toda intenção de vingar na arte.
Um dos personagens, haitiano, é um arrivista que, desprovido de talento e inspiração, mas sedento por sucesso, inventa uma forma própria e precoce de “escrita não criativa”, se apoia em heterônimos e “começava a ser conhecido como o bizarro Pessoa do Caribe” por multiplicar suas identidades autorais e disseminar suas crenças em um nazismo crioulo e em “ser um poeta nazista e não renunciar a certo tipo de negritude”. Outro, argentino, tem “entre suas propostas juvenis” coisas como “o extermínio dos índios para evitar uma contaminação maior da raça argentina, a redução dos direitos dos cidadãos de origem judaica, a imigração maciça procedente dos países escandinavos para clarear progressivamente a epiderme nacional escurecida depois de anos de promiscuidade hispano-indígena, a concessão de bolsas literárias vitalícias”.
Como não rir desses personagens? São figuras que provocam um riso complicado, que deixa um ressaibo. Na medida em que são engraçadamente absurdas, encarnam também versões horrendas da vida. Coexistem com o campo literário tal como o conhecemos: um plagia Aimé Cesaire, outro é futurista, e figuras como Charles Olson, Huidobro e Rubem Fonseca aparecem tirando o sono desses literatos reaças, tanto por inveja e despeito quanto por devotada angústia de influência.
Estamos habituados a uma parceria suposta entre a literatura e o “bem” — ou, pelo menos, entre a literatura e certa pedagogia da edificação e do esclarecimento. A leitura literária aprimora o leitor, ensina, oferta a ampliação de perspectivas e o incremento da capacidade de empatia com o diferente. Nesse romance, explorando embrionariamente algo que perseguirá em toda a sua escritura, Bolaño manifesta seu ceticismo com relação à ideia de que a literatura tenha um endereçamento moral preciso. Invenção de gente, a literatura paga tributo às pessoas que a produzem, e há de ser tão diversa, em todos os sentidos, quanto possam ser essas pessoas — para o bem e para o mal.
Tradução de Lucas de Sena Lima e Daniel Fernandes Vilela
Os detetives selvagens ganhou o prêmio Rômulo Gallegos de romance. Este discurso não é simplesmente algumas palavras de gratidão; ao contrário, com o humor e leveza que o caracteriza, Bolaño faz uma homenagem a sua geração, aquela que aposta a vida à uma causa mal-aventurada.
Outubro de 1999
Sempre tive um problema com a Venezuela. Um problema infantil, fruto de minha educação desordenada, um problema mínimo mas problema após problema. O cerne deste problema é de índole verbal e geográfica. Também é provável que se deva a uma espécie de dislexia não diagnosticada.
Não quero dizer com isso que minha mãe não me levava nunca ao médico, ao contrário, até os dez anos fui um assíduo visitante de consultas e até de hospitais, mas a partir de então minha mãe creu que eu era forte o suficiente para aguentar tudo. Entretanto, voltemos ao problema. Quando era pequeno, jogava futebol. Meu número era o 11, o número de Pepe e Zagalo no mundial da Suécia, e fui um jogador entusiasmado, mas bastante ruim, já que minha perna boa era a esquerda e se supõe que os canhotos não decepcionam numa partida. No meu caso, isso não era certo e eu decepcionava quase sempre, embora, de vez em quando, uma vez a cada seis meses, por exemplo, fazia uma ótima partida e recobrava uma parte, ao menos, do crédito perdido. Pelas noites, como é natural, antes de dormir, pensava e dava voltas a me lamentar a condição de jogador de futebol. E foi então quando tive o primeiro pressentimento quanto a minha dislexia. Eu chutava com a perna esquerda, mas escrevia com a direita. Isso era um fato. Teria gostado de escrever com a esquerda, mas fazia-o com a direita. E aí estava o problema. Por exemplo, quando o técnico dizia: venha para o seu lado direito, Bolaño, eu não sabia para que lado teria que passar a bola. E outras vezes, inclusive, jogando pela ponta esquerda, diante da voz rouca de meu treinador eu me parava e tinha que pensar: esquerda-direita. Direita era o campo de futebol, esquerda era chutar para fora: havia poucos espectadores, crianças como eu, que rodeavam os miseráveis gramados dos campos de futebol de Quilpué, o de Cauquenes, o da província de Bio-Bio. Com o tempo, supostamente, aprendi a ter uma referência cada vez que me perguntavam ou me informavam de uma rua que estava à direita ou à esquerda, e essa referência foi a mão com que escrevo, se não o pé com que eu chuto a bola. E com a Venezuala tive, mais ou menos pelas mesmas épocas, ou seja, até ontem mesmo, um problema parecido. O problema era sua capital. Para mim, o mais lógico era que a capital da Venezuela fosse Bogotá. E a capital da Colômbia, Caracas.
Por quê? Pois então, uma lógica verbal ou uma lógica das letras. A letra v do nome Venezuela é similar, para não dizer familiar, ao b de Bogotá. E o c de Colômbia é primo e irmão da letra c de Caracas. Isto parece intransigente e provavelmente o é, mas para mim se constituiu em um problema de primeira ordem, chegando em certa ocasião, no México, durante uma conferência sobre poetas urbanos da Colômbia, a falar da potência dos poetas de Caracas, e a gente, gente tão amável e educada como vocês, caiu calada a espera de que depois da fala sobre os poetas caraquenhos, passasse a falar dos poetas bogotanos, mas o que fiz foi seguir falando dos poetas caraquenhos, de sua estética da destruição, e inclusa a comparação com os futuristas italianos, resguardando as distâncias, é claro, e com os primeiros letrados, o grupo de Isidore Isou e Maurice Lemaître, o grupo de onde sairia o germe do situacionismo de Guy Debord e a gente que a essas alturas começou a fazer adivinhações. Não creio que pensavam que os bogotanos haviam migrado em massa para Caracas, já que os caraquenhos tiveram um papel determinante neste grupo de novos poetas bogotanos. Tanto que quando dei a conferência por terminada, com um final abrupto, tal como eu então gostava de acabar qualquer conferência, as pessoas se levantaram, aplaudiram timidamente e marcharam correndo para consultar o cartaz na entrada, e quando eu saí, acompanhado do poeta mexicano Mario Santiago, que sempre ia comigo e que seguramente se deu conta do meu erro embora não tenha me contado: para Mario os erros, os garranchos e os equívocos eram como as nuvens de Baudelaire que passam pelo céu, sabe que deve olhá-las, mas não corrigi-las. Ao sair, dizia, nos encontramos com um velho poeta venezuelano, e quando digo velho relembro esse momento e o poeta venezuelano mais jovem do que vou agora, que nos deixou com lágrimas nos olhos dizendo que devia haver um erro, que ele jamais havia ouvido nem uma palavra sobre esses poetas misteriosos de Caracas.
A esta altura do discurso, pressinto que Dom Rômulo deve estar revirando-se em sua tumba. Mas a quem deram o meu prêmio, estará pensando. Desculpe-me, Dom Rômulo. Mas é que inclusive Dona Bárbara, com b, suena a Venezuela e Bogotá, e também Bolívar suena a Venezuela e a Dona Bárbara; Bolívar e Bárbara, que bela dupla formariam, ainda que os outros dois romances de Dom Rômulo, Cantaclaro e Canaima, poderiam perfeitamente serem colombianas, o que me leva a pensar que talvez o sejam, e que sob minha dislexia se esconda um método semiótico bastardo, ou grafológico, ou metassintático, ou fonemático, ou simplesmente um método poético, e que a verdade das verdades é que Caracas é a capital da Venezuela, da mesma maneira que Bolívar, que é venezuelano, morreu na Colômbia, que também é Venezuela e México e Chile. Não sei se entendem aonde quero chegar. Pobre negro, por exemplo, de Dom Rômulo, é um romance eminentemente peruano. La casa Verde, de Vargas Llosa, é um romance colombiano-venezuelano. Terra nostra, de Fuentes, é um romance argentino e advirto que mais não me perguntem em que baseio esta afirmação porque a resposta será prolixa e fastidiosa. A academia patafísica ensina, de forma por demais misteriosa, a ciência das soluções imaginárias que é, como sabem, aquela que estuda as leis que regulam as exceções. E este sobressalto de letras, de alguma maneira, é uma solução imaginária que exige uma solução imaginária. Mas voltemos a Dom Rômulo antes de enfiar-nos em Jarry e notemos, de passagem, alguns estranhos sinais. Eu acabo de ganhar o décimo-primeiro prêmio Rômulo Gallegos. O 11. Eu jogava com o 11 na camisa. Isto, a vocês, parece uma casualidade, mas a mim me deixa trêmulo. O 11 que não sabia distinguir a esquerda da direita e que portanto confundia Caracas com Bogotá, acaba de ganhar (e aproveito este parêntese para agradecer mais uma vez ao jurado desta distinção, principalmente Ángeles Mastretta) o décimo-primeiro prêmio Rômulo Gallegos. Que pensaria Dom Rômulo disto? Outro dia, falando por telefone, Pere Gimferrer, que é um grande poeta e que além do mais sabe tudo e já leu tudo sobre ele, me disse que há duas placas comemorativas em Barcelona, nas casas onde viveu Dom Rômulo. Segundo Gimferrer, ainda que não tenha posto as mãos no fogo sobre o assunto, emuma destas casas o grande escritor venezuelano começou a escrever Canaima. A verdade é que 99,9% das coisas que Gimferrer disse, me jurou de pés juntos, e então, enquanto Gimferre falava (uma das casas em que havia uma placa não era uma casa, e sim um banco, o que plantava uma série de dúvidas, por exemplo se Dom Rômulo em sua estância em Barcelona — e digo estância, e não exílio, porque um latino-americano jamais está exilado na Espanha — havia trabalhado em um banco ou se o banco veio depois instalar-se na casa onde viveu o romancista), como dizia, enquanto o poeta catalão falava, eu me pus a pensar em minha já distante, mas não por isto menos desgastantes, sobre tudo que há na memória, passeios pelo Ensanche, e me vi outra vez ali, aos trancos em 1977, 1978, talvez 1982, e de repente acreditei ver rua ao entardecer, perto de Muntaner, e vi um número, vi o número 11 e logo caminhei um pouco mais, uns passos mais, e ali estava a placa. Isto é o que vi mentalmente. Mas também é provável que nos anos que vivi em Barcelona passei por esta rua, e vi a placa, uma placa que possivelmente dizia Aquí viveu Rômulo Gallegos, romancista e político, nascido em Caracas em 1884 e falecido em Caracas em 1969 e depois, em letras menores, outras coisas, os livros, os prêmios, etc., e é possível, que eu pensasse, sem deter-me: outro escritor colombiano famoso, e e isto só é possível que eu pensasse se eu não me detivesse, insisto, pois a verdade é que então já havia lido algo de Dom Rômulo como leitura obrigatória não sei se em um liceu chileno ou em uma escola mexicana e gostei de Dona Bárbara, ainda que segundo Gimferrer Canaima seja melhor, e, é claro, sabia que Dom Rômulo era venezuelano e não colombiano. O que realmente significa pouco, ser colombiano ou ser venezuelano, e neste ponto voltamos de rebote como um raio ao b de Bolívar, que não era dislexo e ao que não desgostaria ver uma América Latina unida, um gosto que compartilho com o Libertador, pois a mim dá no mesmo que digam que sou chileno, ainda que alguns colegas chilenos prefiram ver-me como mexicano, ou que digam que sou mexicano, ainda que alguns amigos mexicanos preferem considerar que sou espanhol, ou, plenamente, desaparecido em combate, e inclusive a mesma coisa que me chamem espanhol, ainda que alguns colegas espanhóis gritem aos céus e a partir de agora digam que sou venezuelano, nascido em Caracas ou Bogotá, coisa que muito menos me desgosta, muito pelo contrário. O certo é que sou chileno e também sou muitas outras coisas.
E neste momento eu tenho que abandonar Jarry e Bolívar e tentar lembrar daquele escritor que dizia que a pátria de um escritor é a sua língua. Eu não me lembro o nome dele. Talvez tenha sido um escritor que escreveu em espanhol. Talvez tenha sido um escritor que escreveu em Inglês ou Francês. A pátria de um escritor, disse ele, é a sua língua. Parece um pouco demagógico, mas concordo plenamente com ele, e eu sei que às vezes não temos outro remédio, a não ser sermos demagógicos, e às vezes não temos escolha senão a dançar um bolero à luz de uma lanterna ou uma lua vermelha. Embora seja verdade que a pátria de um escritor não é a sua língua, não apenas a sua língua, mas as pessoas que queremos bem. E às vezes a pátria de um escritor não são as pessoas, mas a sua memória. E às vezes a única casa do escritor é a sua lealdade e seu valor. De fato, muitas podem ser as pátrias de um escritor, e às vezes a identidade desta pátria pode ser a terra natal do escritor, por vezes, a identidade deste país depende muito do que se está escrevendo naquele momento. Muitos podem ser os países de origem, ocorre-me agora, mas há apenas um passaporte e o passaporte é obviamente a qualidade da escrita. Isso não significa escrever bem, porque isso qualquer um pode fazer, mas escrever maravilhosamente bem, e nem sequer isto, pois escrever maravilhosamente bem também qualquer um pode. Então o que é uma escritura de qualidade? Pois, o que sempre foi: saber enfiar a a cabeça no escuro, saber pular no vazio, ou seja, saber que a literatura é basicamente um ofício perigoso. Correndo ao longo da borda do precipício: de um lado o abismo sem fundo, e do outro todas as faces que você quer, os rostos sorridentes que você quer, e livros, e amigos, e os alimentos. E aceitar esta evidência, ainda que às vezes nos pese mais que o sepulcro que cobre os restos de todos os escritores mortos. Literatura, como diria o folclore andaluz, é um perigo.
E agora volto, por fim, sobre o número 11, que é o número dos que correm por fora, e já que mencionei o pergio, me lembro daquele capítulo do Quixote onde se discute sobre os méritos da milícia e da poesia, e suponho que o fundo do que se está discutindo é sobre o grau de perigo que também é falar que envolve a natureza de ambos os ofícios. E Cervantes, que foi um soldado, faz o militar ganhar, faz o soldado ganhar ante o honroso ofício de poeta, e se lemos estas páginas bem (algo que agora, enquanto escrevo este discurso, eu não faço, apesar estar vendo da mesa onde escrevo as minhas duas edições de Don Quixote) percebemos nelas um forte aroma de melancolia, porque Cervantes ganha sua própria juventude, o fantasma de sua juventude perdida, diante da realidade do seu exercício de prosa e poesia, até então adversas. E isto me vem à cabeça porque em grande medida tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida à minha própria geração, aos que nascíamos na década de cinquenta e os que preferimos emum momento dado o exercício da milícia, neste caso seria mais correto dizer a militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa em que acreditávamos a mais generosa das causas do mundo, e que de certa forma o era, mas que na realidade não era.
Seria demais dizer que lutamos com unhas e dentes, mas tivemos líderes corruptos, covardes, uma máquina de propaganda que foi pior do que um leprosário, lutamos por partidos que por terem vencido nos mandaram de imediato a um campo de trabalhos forçados, lutamos e pusemos todas a nossa generosidade em um ideal que há mais de cinqüenta anos que estava morto, e alguns já sabíamos, e como nós não saberíamos se lemos Trótski ou éramos trotskistas, mas não fizemos igual, porque fomos estúpidos e generosos, como são os jovens, que tudo dão e não pedem nada em troca, e agora destes jovens não sobrou nada, os que não morreram na Bolívia foram mortos na Argentina ou no Peru, e aqueles que sobreviveram foram morrer no Chile ou no México, e aos que não mataram lá, mataram depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador. Toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos. E essa é a mola que move a Cervantes para escolher os militares em descrédito da poesia. Seus companheiros também estavam mortos. Ou velhos e abandonados, na miséria e na indiferença. Escolher era escolher a juventude e escolher os derrotados e os que não tinham nada. E isso faz Cervantes, escolhe a juventude. E mesmo nesta debilidade melancólica, neste vazio da alma, Cervantes é o mais lúcido, pois ele sabe que os escritores não precisavam de ninguém para lhes exaltar o ofício. Nós nos exaltamos a nós mesmos. Muitas vezes a nossa forma de exaltação é maldizer o momento em que decidimos ser escritores, mas no geral aplaudimos e dançamos quando estamos sozinhos, porque este é um ofício solitário, e recitamos a nós mesmos nossas páginas, que é a forma de nos exaltarmos, e não precisamos que ninguém nos diga o que precisamos fazer e muito menos que após um levantamento o nosso ofício é eleito o mais honroso de todos. Cervantes, que não era disléxico, mas que o exercício da milícia deixou aleijado, sabia perfeitamente o que dizia. Literatura é um ofício perigoso. O que nos leva diretamente ao Alfred Jarry, que tinha uma arma e gostava de disparar, e ao número 11, do lado esquerdo, olhando de lado enquanto passa como uma bala a placa e a casa onde morou Dom Rômulo, que a esta altura do discurso já não está tão zangado comigo, nem vai aparecer em sonhos a Domingo Miliani para perguntar por que eles me deram o prêmio que leva seu nome, um prêmio muito importante para mim, eu sou o primeiro chileno a obtê-lo, um prêmio que dobra o desafio, se isso for possível, se o desafio pela sua própria natureza, em prol da sua própria virtude, não foi anteriormente dobrado ou triplicado. Um prêmio, segundo este, seria um ato gratuito e agora que eu o penso, penso que é verdade, algo tem de ato gratuito. É um ato gratuito de não falar sobre o meu romance ou os seus méritos, mas da generosidade de um júri. (A propósito: até ontem não sabia de nada). Devemos ser claros, porque, como os veteranos de Lepanto, em Cervantes, e como os veteranos das guerras floridas na América Latina, minha única riqueza é a minha honra. Eu leio e não creio. Eu falando de honra. Pode ser que o espírito de Dom Rômulo apareça no domingo não a Miliani, mas a mim. Estas palavras são escritas em Caracas (Venezuela) e uma coisa é clara: Dom Rômulo não pode me aparecer em sonhos, pela simples razão de que eu não consigo dormir. Lá fora os grilos cantam. Calculo, de uma olhada, que sejam cerca de dez mil ou vinte mil. O canto de um desses grilos é, talvez, a voz de Dom Rômulo, confuso, ditosamente confuso, na noite venezuelana, na noite americana, na noite de todos nós, aqueles que dormem e aqueles que não conseguem dormir. Eu me sinto como Pinóquio.