Jerome David Salinger Por Allred M.D. |
J. D. Salinger: todos os buracos negros
Shane Salerno relata para EL PAÍS como mergulhou na misteriosa vida do escritor
EDUARDO LAGO Nova York 29 JAN 2014 - 21:22 BRST
Shane Salerno (Memphis, 1972) tinha 9 anos quando sua mãe, fanática seguidora do esquivo J. D, Salinger (1919-2010), lhe disse que tinha idade suficiente para se embrenhar na leitura de O Apanhador no Campo de Centeio. O livro comoveu o menino a tal ponto que, apesar da pouca idade, devorou em tempo relativamente curto o restante da escassa obra do autor. “Isso é tudo?”, perguntou à mãe quando terminou o último volume. “Salinger não deixou de escrever um só dia”, respondeu ela, “só que desde 1965 não quer publicar nada”. A insólita revelação plantou no jovem leitor uma semente que levaria 21 anos para germinar.
Uma tarde, enquanto folheava uma biografia do autor, chamou poderosamente a sua atenção o violento contraste entre dois retratos do romancista nova-iorquino. Em um deles, um Salinger jovem e no auge da fama sorri gentil. Em outro, já idoso, lança um olhar furioso ao fotógrafo que o pegou de surpresa.
A disparidade o fez recordar que tinha uma dívida pendente consigo mesmo: tentar esclarecer, ao menos em parte, o enigma de uma vida sobre a qual pairam demasiadas sombras. Dedicou ao esforço 10 anos e 1,46 milhão de euros que tirou do próprio bolso.
Em 2010 o escritor faleceu. Três anos depois, em setembro de 2013, Salerno apresentava o resultado de suas pesquisas, reunidas em um documentário de duas horas e um volume de 700 páginas para os quais contou com a colaboração do escritor David Shields (Los Angeles, 1956). Sob o título comum de Salinger, livro e documentário oferecem um retrato descontínuo do escritor com base na recuperação de um enorme material fotográfico, uma exaustiva compilação de documentos e o depoimento oral de mais de 200 testemunhas de sua vida.
Passaram-se seis meses, tempo suficiente para fazer um balanço, e o livro chega à Espanha (Seix Barral). Não faltaram acusações de oportunismo, falta de rigor e sensacionalismo, mas tampouco aplausos. Em termos econômicos, o projeto foi um êxito. “O livro se estrutura em torno dos três traumas que modelam a vida de Salinger: sua participação na Segunda Guerra Mundial, sua relação sentimental com Oona O’Neil e a violenta rejeição do mundo, motivada por suas crenças védicas”, explica Salerno, de Los Angeles.
“Salinger era um menino rico da Park Avenue. Jamais tinha estado exposto a qualquer tipo de sofrimento. Não tinha por que fazê-lo, mas decide alistar-se porque tinha uma ideia romântica da guerra. Participa do desembarque na Normandia e é testemunha de inumeráveis atrocidades, a maior delas, que jamais conseguiria apagar da memória, a entrada em um campo de concentração no qual permanecia no ar um insuportável fedor de carne humana incinerada. Diante da iminência da chegada das tropas norte-americanas, os nazistas tinham se apressado a queimar vivos os prisioneiros judeus. Transtornado pela guerra, quando acabou ele se internou em um sanatório para doentes mentais. É aí onde se produz a alquimia que o transforma em escritor. Quando sai, escreve a história Uncrazy (Não-Louco)”.
Boa parte das pesquisas de Shields e Salerno teve como finalidade caracterizar seu singularíssimo modo de se relacionar com as mulheres. “O outro trauma que o marcou foi seu rompimento com Oona O’Neil”, explica o biógrafo. “Era uma garota muito atraente, que entre os 16 e os 18 anos, além de Salinger, manteve relações com Peter Arno, o cartunista da New Yorker, e com Orson Welles. Deixou Salinger para se casar com Charles Chaplin, com quem teve oito filhos e de quem se manteve ao lado até ele morrer. A perda de Oona deu o tom para todos os seus relacionamentos sentimentais. Quando se casou com Chaplin, ela estava com 18 anos e ele, 54. Quando Salinger conhece Joyce Maynard, uma das mulheres mais importantes de sua vida, ele tinha 54 e ela, 18. O esquema se repetiria sempre. Era fascinado pelas mulheres quando conservavam algo de meninas. Manteve relações, não necessariamente sexuais, com garotas muito jovens, de 15 ou 16 anos, até mesmo 14, como ocorreu com Jean Miller.”
Miller é, segundo Salerno, uma das conquistas de Salinger. “Fomos os primeiros
a conseguir declarações diretas dela. Tinha 14 anos e Salinger, 30, quando se conheceram na Flórida. Mantiveram um contato muito estreito entre 1949 e 1954. As cartas que Salinger lhe escreveu nesse tempo proporcionam um relato insolitamente revelador do escritor.” Também não tinham vindo à tona fotos de seu período militar, “com os três mosqueteiros, Jack Altaras, John Keenan e Paul Fitzgerald, seus melhores amigos; nem sequer de sua primeira mulher, a alemã Sylvia Welter. Falsificou seus documentos para levá-la aos Estados Unidos e, depois, se descobriu que era colaboradora da Gestapo”.
Mesmo sendo importantes, todos esses detalhes se empalidecem diante do que se supõe seja a maior realização das pesquisas feitas com Shields: a lista completa das obras que, segundo os autores, virão à luz entre 2015 e 2020. Cinco livros no total: dois conjuntos de contos em torno das famílias de Holden Caulfield e Seymour Glass; um romance sobre seu casamento com Sylvia Welter; o diário de um agente de contraespionagem, baseado nos interrogatórios que Salinger fez com prisioneiros ... e um manual sobre suas crenças védicas. É a parte mais questionada pela crítica. Salerno teve acesso ao material? Pode se pronunciar sobre seu valor literário? Como quem pisa em brasas, ele responde: “Não posso responder a essa pergunta”.
O biógrafo reage com firmeza diante da pergunta sobre se é legítimo violar a intimidade do escritor: “Não dediquei 10 anos de minha vida a Salinger com a intenção de prejudicar a sua imagem. Para fazer algo assim, um ano basta. Queríamos contar a verdade, e muitas das coisas que averiguamos não eram exatamente lisonjeiras, mas era preciso contá-las”.
O que dizem os filhos do escritor sobre isso? O que significa o fato de Mathew não ter querido colaborar com o projeto? “Impossível pensar em duas infâncias mais diferentes. Segundo Mathew, Salinger foi um grande pai. Margaret, ao contrário, traçou um retrato devastador do pai em suas memórias.”
Salerno é categórico em relação à acusação de sensacionalismo formulada contra Shields e ele na linha dos crimes cometidos em nome de O Apanhador no Campo de Centeio. “O que se supõe que teríamos de ter feito? Passar por cima? Os assassinos de John Lennon e Rebecca Schaeffer, uma atriz belíssima e muito jovem, e o assassino frustrado de Ronald Reagan levavam um exemplar do livro, como se fosse um talismã maligno.”
Entre os muitos outros assuntos que aborda, Salerno ressalta o terceiro fator que explica o enigma de Salinger: “A chave de sua retirada do mundo está nas suas crenças védicas, segundo as quais estruturamos o livro. Ao morrer, um parente declarou em seu nome as primeiras palavras que tornava públicas em 45 anos: ‘Vivo no mundo, mas não faço parte dele’”.
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