domingo, 30 de agosto de 2015

Com quase 90, Rubem Fonseca escreve diariamente




Rubem Fonseca

Com quase 90, Rubem Fonseca escreve diariamente e puxa ferro na academia



Poucas coisas se parecem menos com uma reclusão do que a propalada reclusão de Rubem Fonseca.
Nos arredores da praça Antero de Quental, perto da praia do Leblon, onde fica o prédio dele, muitos já trocaram palavras com o "fofo", "doce", "gentil", "tranquilo", "tranquilíssimo" Rubem, escritor que renovou o conto brasileiro na segunda metade do século 20.

De quem construiu obra tão forte, não se esperaria livro tão frágil
Tímido ao ser abordado em público, Dalton Trevisan afirma não ser quem é

A fama decorre da decisão de não conversar com jornalistas sobre sua obra, algo que não faz há meio século –ao menos não estando informado de que eles eram jornalistas.
Conhecido por aceitar convites para eventos no exterior na mesma proporção em que os recusa no Brasil, porém, o autor de "Feliz Ano Novo" (1975) e "A Grande Arte" (1983) perdeu um bocado da aura de mistério nos últimos anos, quando vídeos desses festivais começaram a pipocar no YouTube.
Toni D´Agostinho
Rubem Fonseca
Rubem Fonseca
Prestes a fazer 90 anos, na segunda (11), ainda morando sozinho, o mineiro radicado no Rio desde a infância reduziu o ritmo de suas caminhadas pelo Leblon, mas escreve todos os dias e puxa ferro três vezes por semana numa pequena academia, à qual chega antes das 7h da manhã.
A redução dos passeios no calçadão –de pedras portuguesas propícias a acidentes– decorreu de uma artrose num dos joelhos, diagnosticada há quatro anos.
O problema o levou a incluir uma bengala ao visual, há décadas composto por um boné cobrindo a careca (Rubem raspa os fios das laterais, o que lhe dá um aspecto mais jovem), óculos de sol, camiseta, calça comprida e tênis.
O apoio serve mais de precaução. Na última segunda (4), quando Rubem saía da academia carregando um "Lance!" com a chamada para a vitória, no dia anterior, do seu "Vascão" –costuma mandar e-mails a amigos com "saudações vascaínas"–, a bengala quase não tocava o chão. Não parecia fazer falta ao autor, de ombros fortes e passos lentos.
Em 2013, ele travou uma espécie de amizade com o Metrô do Rio, que vem fazendo obras para uma estação na Antero de Quental. Naquele ano, o Consórcio Linha 4 divulgou dois vídeos, um deles de quando Rubem apadrinhou um ipê da praça e o outro quando deu nome a uma sala de leitura para operários da obra.
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Neste último, enérgico e agitando os braços, como um showman, diz que "ler nos torna melhores, permite que a gente entenda melhor o outro e a nós mesmos".
Em 2012, já haviam circulado vídeos como o do Correntes d'Escrita, evento em Portugal: "Basta ser louco [para ser escritor]? Hm. Tem que ser alfabetizado". E um gravado em Lima, onde foi homenageado: "Vamos, minha gente, estão com medo de mim? Yo soy um homem peligroso", diz, no mais perfeito portunhol, instigando o público a fazer perguntas, daquelas que ele sempre argumentou que sua obra responde.
Mas isso fora do Brasil (ou dentro do canteiro de obras da Antero de Quental), onde o assédio é menor. Por aqui, já recusou três vezes a Flip, inclusive neste ano, e pensou por uma semana antes de declinar o convite para ser um dos escritores representantes do Brasil na Feira de Frankfurt 2013.

A explicação dele, segundo a filha Bia Corrêa do Lago, 59, editora, é que um escritor não pode ser muito conhecido. "Se aparecer demais, perco minha matéria prima, poder observar", costuma dizer ele, de acordo com Bia, irmã do fotógrafo Zeca Fonseca, 57 e do cineasta José Henrique Fonseca, 50.
É no exterior que sua obra vem sendo mais reconhecida na última década. O autor, por exemplo, é adorado no México, num raro culto a um brasileiro em países hispânicos, por escritores como Antonio Ortuño e Rafael Pérez Gay –este, editor de sua obra pela Cal y Arena, escreveu que Rubem Fonseca é "um contista de raça, na escala de Maupassant e Chekov, Updike ou Capote".
No Brasil, há mais de uma década resenhistas dizem que Rubem Fonseca se repete, se perdeu. Não foi diferente com o recente "Histórias Curtas", resenhado para a Folha por Luis Augusto Fischer, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que avaliou os contos como "todos fracos, vários muito ruins, um ou outro de dar dó".

Escritores que acompanham a obra de Rubem, no entanto, discordam. O contista Sérgio Sant'Anna, um dos vários impulsionados à carreira literária por Rubem, diz acreditar que a aparente displicência dos contos de "Histórias Curtas" é intencional. "Há no livro uma certa nonchalance que me agrada muito, como se o autor não estivesse nem aí", diz.
O escritor português Francisco José Viegas vê "alguma injustiça" na cobrança por um Rubem "sempre genial". "Dizem que os livros novos não são tão bons. Ok, que não sejam, mas é o Rubem, o homem que escreveu 'Feliz Ano Novo' e 'A Grande Arte'. Não é possível manter sempre aquele nível tão elevado. Para um escritor ser absolutamente genial é preciso estar sempre no fio da navalha, e alguns livros vão chegar lá, outros não."
"Qualquer escritor que lide com a literatura policial ou urbana de alguma maneira a partir dos anos 1970 deve algo a ele", diz Marçal Aquino, que de admirador se transformou em amigo. "'Feliz Ano Novo' é desgraçadamente atual, coloca o dedo num nervo exposto. É profético."
Profético é um termo recorrente para definir aqueles primeiros livros de Rubem –para Deonísio da Silva, considerado pelo próprio escritor seu mais profundo conhecedor, a palavra mais no sentido de "proferir", "dizer o que ninguém diz".
Deonísio é um dos amigos mais próximos e duradouros do escritor. Em 1974, estudante de letras em Ijuí (RS), ele escreveu um texto sobre "O Caso Morel" (1973), então enviado por seu professor ao editor de Rubem. Dias depois, o rapaz recebeu uma carta do escritor, elogiando o texto e convidando-o a aparecer no Rio para uma conversa. Deonísio levou a sério. Encarou quase um dia de estrada, no ônibus, para deparar no Rio com um engravatado –Rubem era executivo da Light, empresa onde trabalhou de 1958 a 1979.
Reconhecido por ter estimulado, inclusive com leituras prévias, a carreira de autores tão variados como Sérgio Sant'Anna, Marçal Aquino, Patrícia Melo e Jô Soares, Rubem não mostra seus textos a ninguém antes de enviar à editora. Mas, segundo Maria Jeronimo, que o edita na Nova Fronteira, é um escritor fácil de lidar.
"É impressionante trabalhar com ele. É muito organizado, um escritor do trabalho mesmo, intenso", ela diz sobre Rubem, que vem se dedicando cada vez mais aos poemas –alguns deles figuraram no recente "Amálgama". Entre os próximos lançamentos, há uma graphic novel de "O Seminarista", com roteiro do próprio Rubem e ilustrações de Rodrigo Rosa, prevista para o inicio do ano que vem.
"LAW & ORDER"
Rubem Fonseca se coloca cada vez mais em seus livros. Para além das referências mais óbvias de "José" (2011), que leva seu primeiro nome e descreve os anos de juventude de um narrador suspeitamente parecido com o autor, há outras que só pessoas mais próximas pescam –como o ódio a papais noéis que ele compartilha com o narrador de "O Seminarista".
Zé Rubem, como preferem os amigos, não dá entrevista, mas colabora. Repassa à editora e à filha respostas a dúvidas da reportagem –embora elas só se ofereçam para checar com ele temas amenos, como de que séries gosta ("Law & Order" é a preferida; de "Game of Thrones", apesar das tentativas do neto Paulo Pilha, ele não quis nem saber).
Chega a sugerir fontes para a reportagem, como o amigo Deonísio da Silva, autor de "O Caso Rubem Fonseca", e Arnaldo Jabor, que filmará o conto "O Livro dos Panegíricos".
Em relação a temas delicados, os amigos desconversam, como se soasse o alerta Rubem Fonseca de indiscrição. Nesta leva está sua saída da Companhia das Letras, em 2009. Em 2010, a Folha revelou que o rompimento decorreu da recusa da editora em publicar "Gonzos e Parafusos", romance de Paula Parisot, amiga e pupila indicada por Rubem.
Foi apenas a gota d'água. Naquela ocasião, a situação já não era das melhores. Rubem vinha se sentindo desprestigiado pela editora que pela qual ao longo de 20 anos vendera 830 mil exemplares e que fizera de seus primeiros lançamentos grandes eventos. Chegara a pedir um adiantamento alto, recusado. Estava magoado.
Um mês após o rompimento, disputado por sete editoras, fechou com a Agir por mais de R$ 1 milhão (depois sua obra passou para a Nova Fronteira, do mesmo grupo Ediouro).
O tema mais delicado de todos –as especulações em torno de sua atuação, nos anos 1960, no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, órgão ligado à ditadura– foi um dos raros que levaram Rubem a decidir se manifestar. Em artigo na Folha em 1994, disse nunca ter sido "favorável à ruptura da ordem constitucional em nosso país".
Viúvo desde 1997, quando sua mulher, Thea Maud, morreu com uma doença degenerativa, Rubem tem "muitas amigas", como informa todo mundo que o conhece. "Não bebo, não fumo, mas fodo", disse a amigos poucos anos atrás, já avançado na casa dos 80.
O grande amigo, João Ubaldo Ribeiro, morreu no ano passado. Outros, como Zuenir Ventura e Marçal Aquino, dizem vê-lo com menos frequência do que gostariam. Com a enorme família –os três filhos lhe deram oito netos–, costuma almoçar nos finais de semana. No próximo, em comemoração dos 90 anos do patriarca, a família toda viajará a Secretário, na região Serrana do Rio, onde José Henrique tem um sítio.
Os Prisioneiros
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Rubem Fonseca diz não ler nada do que se escreve a seu respeito –e amigos afirmam que ele não se abala com críticas, embora deixem escapar que já ficou cabreiro com uma ou outra reportagem–, mas mantém pastas com recortes de tudo o que foi dito sobre ele e seus livros desde a estreia na literatura, com "Os Prisioneiros" (1963).
Esse material foi emprestado ao amigo Sérgio Augusto, que organizou as reedições da obra do escritor pela Agir/Nova Fronteira. Segundo Bia, quem organiza são assistentes –e Rubem nem conhece o conteúdo.
Procurado por e-mail, telefone e bilhete na portaria de seu prédio, o escritor não deu retorno. Dentre as perguntas que sua obra nem amigos ajudam a responder, estava a de se pretende publicar um livro só de poemas e como foi a conversa que teve com Dalton Trevisan quando, reza a lenda, se encontraram em Curitiba, no início dos anos 1970 –esta Dalton também poderia responder, mas parece até mais improvável.
ISTO É RUBEM
1925
José Rubem Fonseca nasce em 11 de maio em Juiz de Fora (MG), filho de portugueses; a família se muda para o Rio quando ele completa 8 anos
1937
Começa a trabalhar aos 12, como entregador numa oficina de artigos de couro
1949
Forma-se na Faculdade Nacional de Direito, no Rio
1952
Entra para a polícia do Rio como comissário, passando a cumprir funções administrativas em 1954. Estuda administração e comunicação nos EUA
1958
Começa a trabalhar na Light, atuando como executivo até a estatização da empresa em 1979, quando é demitido
1962
É recrutado para integrar o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), organismo apontado como responsável pela base ideológica do golpe de 64. Segundo o historiador uruguaio René Armand Dreifuss, seu trabalho era supervisionar a unificação dos materiais de divulgação do instituto
1963
Estreia na literatura com os contos de "Os Prisioneiros". Dá uma rara entrevista ao "Diário de Notícias", na qual diz que "o conto está mais próximo da concisão dramática do teatro que da fluência narrativa do romance" e lista referências como Kafka e Guimarães Rosa
1965
Lança "A Coleira do Cão", seu segundo livro de contos
1967
Lança "Lucia McCartney", que dois anos depois venceria o primeiro lugar do 2º Concurso Nacional de Contos do Paraná
1973
Lança seu primeiro romance, "O Caso Morel". É, segundo o especialista Deonísio da Silva –amigo de décadas de Rubem e considerado pelo autor o maior conhecedor de sua obra, "a referência solar" da obra do escritor
1976
Publicado um ano antes, "Feliz Ano Novo" é proibido por "exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes". O autor entra com ação contra a União, vencendo apenas em 1989, com a liberação do livro
1983
Lança "A Grande Arte", depois adaptado ao cinema
1990
Lança "Agosto", que originou série de TV
1994
Escreve na Folha sobre especulações envolvendo sua relação com a ditadura. "Não era, como homem de empresa, nem sou agora, como escritor, favorável à ruptura da ordem constitucional em nosso país através de revoluções ou golpes de Estado, militares ou civis"
1997
Morre de doença degenerativa, aos 68, Théa Mauad Komel, mulher de Rubem, com quem ele teve os filhos Maria Beatriz, José Henrique e José Antônio
2003
Vence os prêmios Juan Rulfo e Camões. Ajuda a escrever o roteiro de "O Homem do Ano", baseado no romance "O Matador", de Patrícia Melo
2009
Deixa a Companhia das Letras e tem sua obra disputada por várias editoras; fecha com a Agir, do grupo Ediouro
2012
A imagem de recluso é atenuada com a aparição, no YouTube, de eventos nos quais participou no exterior, além de uma fala sobre leitura a funcionários do Metrô do Rio, em 2013

FOLHA DE S. PAULO


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