sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Rubem Fonseca / Vida




Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
VIDA

No meu caso sou alertado pelo ruído causado pelo movimento de gases nos intestinos. Mas há pessoas que não são beneficiadas por esse sinal prodrômico — minha mulher diz que isso não é uma doença, e não sendo uma doença não tem um pródromo, como o aviso que um epiléptico recebe momentos antes de ter sua crise, como ocorria com o nosso filho, que Deus o tenha, mas minha mulher dedica-se a me contrariar em tudo o que digo, a me hostilizar constantemente, esse é o passatempo da vida dela —, mas eu dizia que a minha flatulência é anunciada por esses ruídos dos gases se deslocando no abdome, e isso me permite, quase sempre, uma retirada estratégica para ir expelir os gases longe dos ouvidos e narizes dos outros. Aliás, prefiro fazer isso isolado, pois os flatos ao serem expulsos dão-me um grande prazer que se manifesta no meu rosto, sei disso pois na maioria das vezes eu os libero no banheiro, o melhor lugar para fazê-lo, e posso notar na minha face, refletida no espelho, a leniência do alívio, a deleitação provocada por sua essência odorífera, e também uma certa euforia, quando são bem ruidosos. E, sendo um ambiente fechado, tenho outra emoção, talvez mais prazerosa, que é a de fruir com exclusividade esse odor peculiar. Sim, eu sei que para a maioria das pessoas — certamente não para quem o expeliu — o aroma da flatulência alheia é ofensivo e repugnante. Minha mulher, por exemplo, quando estamos deitados na cama e ela ouve o barulho dos meus intestinos, grita comigo, sai da cama e vai peidar longe de mim, seu nojento. Saio correndo da cama e vou para o banheiro, nessas ocasiões, como já disse, prefiro ficar sozinho, e após expelir os gases no banheiro, com a porta fechada, quando nem acabei de gozar a satisfação que aquilo me propicia, ela grita do quarto, meu Deus, estou sentindo o fedor daqui, você está podre mesmo. O cheiro não é tão forte assim, eu até que gostaria que fosse mais intenso pois me daria maior prazer, mas às vezes é tão suave que tenho que me curvar e fungar com o nariz quase colado no púbis para sentir o aroma desprendido pelo flato, mas mesmo assim, nesses dias ela grita palavras injuriosas do quarto, como se odor tão fraco pudesse fazer percurso tão longo sem esvaecer pelo caminho. Outro dia, no jantar, aliás isso ocorre quase todos os dias, ao repetir o prato de feijão, ela disse, come mais, enche as tripas, para depois peidar mais forte, mas ela diz a mesma coisa se repito a sobremesa, sou magro e não consigo deixar de ser magro, não importa o que eu coma, ela é gorda e não consegue deixar de ser gorda, mas vive fazendo tortas, pudins de leite e musses de chocolate, e se repito o pudim ou a musse ela diz, você vai passar a noite peidando como um cavalo, e ainda por cima ela me culpa de ser gorda, que a faço infeliz e ela come para compensar as frustrações causadas por mim, e ela tem razão, pois não consigo cumprir as minhas obrigações de marido, por mais que tente, e na verdade já nem tento mais. Eu poderia sair de casa, pedir divórcio, mas lembro o que ela sofreu durante a doença do nosso filho, acho que nunca existiu no mundo mãe mais dedicada, e ela ficou gorda depois que nosso filho morreu, e às vezes eu a surpreendo chorando com o retrato dele na mão, eu não devo abandoná-la nessa situação, não posso ser tão desalmado e egoísta, e ainda mais sendo magro e elegante poderia arrumar outra mulher, mas ela não conseguiria arranjar outro homem e a solidão aumentaria ainda mais o seu sofrimento e ela é uma boa mulher, não merece isso. Estamos deitados, ela de costas para mim, pensei que estivesse dormindo, mas meus intestinos começaram a produzir borborigmos e ela, sem se virar, gritou ai meu Deus que vida a minha, vai peidar no banheiro, e eu fui e fiz o que ela mandou e contemplei no espelho a felicidade que o forte ruído e o intenso odor estampavam no meu rosto.


Rubem Fonseca
Secreções, excreções e desatinos, 2001



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