VIDA
No meu caso sou alertado pelo
ruído causado pelo movimento de gases nos intestinos. Mas há pessoas que não
são beneficiadas por esse sinal prodrômico — minha mulher diz que isso não é
uma doença, e não sendo uma doença não tem um pródromo, como o aviso que um epiléptico
recebe momentos antes de ter sua crise, como ocorria com o nosso filho, que
Deus o tenha, mas minha mulher dedica-se a me contrariar em tudo o que digo, a
me hostilizar constantemente, esse é o passatempo da vida dela —, mas eu dizia
que a minha flatulência é anunciada por esses ruídos dos gases se deslocando no
abdome, e isso me permite, quase sempre, uma retirada estratégica para ir
expelir os gases longe dos ouvidos e narizes dos outros. Aliás, prefiro fazer
isso isolado, pois os flatos ao serem expulsos dão-me um grande prazer que se
manifesta no meu rosto, sei disso pois na maioria das vezes eu os libero no banheiro,
o melhor lugar para fazê-lo, e posso notar na minha face, refletida no espelho,
a leniência do alívio, a deleitação provocada por sua essência odorífera, e
também uma certa euforia, quando são bem ruidosos. E, sendo um ambiente
fechado, tenho outra emoção, talvez mais prazerosa, que é a de fruir com exclusividade
esse odor peculiar. Sim, eu sei que para a maioria das pessoas — certamente não
para quem o expeliu — o aroma da flatulência alheia é ofensivo e repugnante.
Minha mulher, por exemplo, quando estamos deitados na cama e ela ouve o barulho
dos meus intestinos, grita comigo, sai da cama e vai peidar longe de mim, seu nojento.
Saio correndo da cama e vou para o banheiro, nessas ocasiões, como já disse,
prefiro ficar sozinho, e após expelir os gases no banheiro, com a porta
fechada, quando nem acabei de gozar a satisfação que aquilo me propicia, ela
grita do quarto, meu Deus, estou sentindo o fedor daqui, você está podre mesmo.
O cheiro não é tão forte assim, eu até que gostaria que fosse mais intenso pois
me daria maior prazer, mas às vezes é tão suave que tenho que me curvar e
fungar com o nariz quase colado no púbis para sentir o aroma desprendido pelo
flato, mas mesmo assim, nesses dias ela grita palavras injuriosas do quarto,
como se odor tão fraco pudesse fazer percurso tão longo sem esvaecer pelo
caminho. Outro dia, no jantar, aliás isso ocorre quase todos os dias, ao
repetir o prato de feijão, ela disse, come mais, enche as tripas, para depois
peidar mais forte, mas ela diz a mesma coisa se repito a sobremesa, sou magro e
não consigo deixar de ser magro, não importa o que eu coma, ela é gorda e não
consegue deixar de ser gorda, mas vive fazendo tortas, pudins de leite e musses
de chocolate, e se repito o pudim ou a musse ela diz, você vai passar a noite
peidando como um cavalo, e ainda por cima ela me culpa de ser gorda, que a faço
infeliz e ela come para compensar as frustrações causadas por mim, e ela tem
razão, pois não consigo cumprir as minhas obrigações de marido, por mais que
tente, e na verdade já nem tento mais. Eu poderia sair de casa, pedir divórcio,
mas lembro o que ela sofreu durante a doença do nosso filho, acho que nunca
existiu no mundo mãe mais dedicada, e ela ficou gorda depois que nosso filho
morreu, e às vezes eu a surpreendo chorando com o retrato dele na mão, eu não
devo abandoná-la nessa situação, não posso ser tão desalmado e egoísta, e ainda
mais sendo magro e elegante poderia arrumar outra mulher, mas ela não
conseguiria arranjar outro homem e a solidão aumentaria ainda mais o seu sofrimento
e ela é uma boa mulher, não merece isso. Estamos deitados, ela de costas para mim,
pensei que estivesse dormindo, mas meus intestinos começaram a produzir
borborigmos e ela, sem se virar, gritou ai meu Deus que vida a minha, vai
peidar no banheiro, e eu fui e fiz o que ela mandou e contemplei no espelho a
felicidade que o forte ruído e o intenso odor estampavam no meu rosto.
Rubem Fonseca
Secreções,
excreções e desatinos, 2001
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