Putas da minha vida
Por Brasigois Felício
Em 20/03/2008 ÀS 09:41 AM
Nunca me deixei impressionar pelo fato de que a zona boêmia, tanto ou mais que o engenho de açúcar, (em seu moer e coar como canas colônias de vidas escravas) é uma máquina de viciar e gastar gente. Por muito tempo andei querendo encontrar quem eu sou nos labirintos da perdição. É comum ver-se, nos puteiros, mulheres velhas, decrépitas, com uma pele só rugas, de pouco mais de quarenta anos. Obrigadas, pelas cafetinas, a beber a noite inteira, enquanto copulam até vinte vezes por dia, com a sucessão de maus tratos, as surras que recebem do cafetão e dos meganhas, as brigas, a insegurança, o medo e a permanente violência, e pelo fato de estarem sujeitas a contrair todos tipos de doenças venéreas, com poucos anos de "profissão", viram mulambos humanos.
Não por outro motivo que os coronéis d´antanho, assim como os oligarcas contemporãneos dão preferência às mocinhas, recém-chegadas no ofício. É que cedo perderão o viço da pele, o brilho dos olhos, o brilho da vida, que em tais criaturas se esvai com velocidade espantosa. Nos bordéis de antigamente, (que hoje os há mais sofisticados e, com o aumento da concorrência, hoje é difícil saber quem está no ofício só por gostar do meretrício, ou quem nele mergulhou de cabeça, pra valer), em poucos anos a mocinha dadeira virava velha rameira, tão sôfrega e selvagemente lhe era sugados o viço e a seiva da juventude.
Conheci uma prostituta tão velha e decrépita que parecia a chaga viva da humana ruína, exposta ao escárnio do público. Tinha um corpo e um rosto destruídos, apesar de seus pouco mais de quarenta anos. Era impossível determinar, com a ponta de uma agulha, um lugar de seu rosto onde não houvessem rugas. Era, em verdade, um inventário de rugas, como rios do desespero, em seu rosto destroçado.
Maracujá de gaveta perdia para ela. A velha noviça, feia, de uma fealdade inescondível e absoluta, era a prova, em carne viva, de que não existe chinelo sem dono, e nem sandália que seja impedida de ir a salão de festa, pois arranjava fregueses, entre os iniciantes, os tímidos, os paupérrimos e os que eram, como ela, extraordinariamente horrendos e despojados de todo e qualquer atrativo físico. Atendia pelo codinome de Dolores, e foi com muita dor que, acometida de câncer, veio a falecer no puteiro, depois de pungentes e doloridos anos de sofrimento (não tinha ninguém de seu, que pudesse tirá-la da "casa da sordidez").
Morreu ali, à míngua medicina (que eu nada a ajudaria), mas não lhe faltou o amor e o companheirismo das outras "mulheres de vida alegre". Apodreceu, ao pé do leito mortuário de seu imenso desamparo. Só, e abandonada, como uma fruta que, cansada de madurar para nada, apodreceu, encroou, e virou fóssil vegetal. Morreu como viveu - sem ter um cã a quem pudesse acarinhar ou de quem algum afago recebesse. Viveu e padeceu no cemitério de gritos do câncer, e no viver foi como uma fruta a apodrecer, sem que ninguém sequer a contemplasse, na árvore ou na fruteira, com olhos de família, ou desejo de amante.
Foram anos seguidos de lenta e dolorosa agonia. Dolores morria devagar, embora fosse desejo e (não lhe faltou a solidariedade das companheiras), que não a atiraram "no olho da rua", como chegou a ser sugerido, nem por piedade de eutanásia apressaram seu desenlace. sua despedida das solidões da carne foi lenta e dolorosa. Pedia, aos gritos, que a morte lhe chegasse como uma graça e dádiva terminal de quem viveu sem saber, ao menos em breves instantes, o que é ser amado e feliz, em sua existência vivida sob o signo de tânatos, ainda que por vocação de ofício tenha entregado seus dias aos gritos e sussurros do sexo pago.
A morte instalara suas teias sobre as vísceras de Dolores, mas Dolores não se decidia a morrer de fato e de direito. Morria em vida - e, lentamente, como uma fruta que amadurece, e a mão de Deus ou dos homens não tem a piedade de estender, para colher seu gesto inaugural de ternura - seu terminal desejo de entrega à juventude da vida, começou a desidratar e a reverdecer, como sucede às pessoas ficam encroadas, como frutas mal amadas, depois que de suas vidas e almas se extraiu todo suco e toda essência que nelas pudessem ter existido um dia.
De seu corpo, que apodrecia em vida, exposto à curiosidade pública, como se fosse de uma espécie muito rara, exalava um fedor adocicado, como o que exalam as fartas mangas abandonadas, que viram lama ao pé das fruteiras. Seus gemidos se misturavam com os gritos e sussurros das putas que gozavam (ou fingiam gozar), pois é sabido que as profissionais do amor só gozam e só aceitam ser beijadas na boca pelos "queridos" - e assim a vida se mostrava trágica e desesperada como é: quem ali entrasse para transar o sexo pago, ou quem apenas se entregava ao convívio seresteiro com a boêmia, e ficasse na sala, a ouvir e a cantarolas músicas de Nelson Gonçalves e Carlos Gardel, ouvindo gemidos vindos do quarto, não podia identificar se eram gemidos da dor de morrer em vida, ou se eram produzidos pela máquina de esfolar e fazer gozar pessoas mortalmente vivas, e tristes e solitárias.
Toda vez que ouço, nas vozes embriagadas, e violões enluarados, "A volta do boêmio", na voz de Nelson Gonçalves, dardejam nos meus ouvidos, como sinos da agonia, os gemidos de Dolores, a prostituta mais velha, mais feia, e a mais sofrida já existida ou por existir, nas "casas de luz vermelha" da Campininha das Flores: "Boemia/ aqui me tens de regresso/ e suplicando te peço/ a minha nova inscrição/. Voltei/ pra rever os amigos que um dia/ eu deixei a chorar de alegria/ me acompanha o meu violão...". Então entendo porque as putas e os boêmios voltam sempre, a procurar, sedentos, os sítios do perigo e da perdição . Agora entendo as putas e os criminosos, que mesmo depois de haverem escapado ao perigo e à indignidade dos crimes que fizeram, quando a adrenalina retoma os níveis normais, escravos de forças magnéticas e poderosas, sempre voltam ao local do crime.
Um poderoso magnetismo, ou quem sabe o fascínio pela queda, e a sede de mergulhar na vertigem, fez que retornassem ao puteiro mulheres que encontraram companheiros, filhos, e o pacato e burguês "lar doce lar", que abandonaram, em dia de luciférica lucidez, reencontrando a perdição de que jamais se libertaram. E só quando amei tive olhos e ouvidos capazes de ouvir e entender estrelas. E só quando, na solidão do outro, de meu abissal desamparo me libertei, pude entender o que dizia o boêmio, quando cantava sua alegria vital, por haver de novo encontrado o caminho da perdição: "Fiz de tudo o que eu podia/ e de tudo o que eu fazia/ não me arrependo/ e te juro que faria/ tudo de novo/".
Dolores, seus gemidos e ais, e suas dores demais. Havia a pedra da solidão, em seu caminho. E a pedra de Sísifo, que ela carregou até o último gemido- suspiro, foi a de ter sido estrangeira para os outros, e para si mesma, em seu quarto, na casa em que morria, em seu pais, e no triste planeta terráqueo. Dolores nunca mais esqueceria do acontecimento da dor, na vida de suas retinas tão fatigadas. "O que é pior? Uma puta que vive de se entregar, ou uma puta que nunca se entrega?".
P.S. De putas, deputados e outras lambanças
Fêmeas fatais têm sido o abismo de celebridades políticas. Quanto mais estonteantes as beldades, mais perigos trazem em potencial. O rigor do método doidivano tem encontrado a perdição cartesiana em combates de coxas e lascívias de bocas - inconfessáveis ao público externo que paga a conta do banquete em que mulheres para 400 talheres são convocadas aos doze trabalhos de Eros.
De um modo geral, sempre foi assim: a começar por Afrodite , passando por Cleópatra, guerreiros deram seus reinos (ou seus cavalos) por uma noite com suas belas putas. Poetas nefelibatas entram em delírios de loucura pura. Bill Clinton fuma o charuto cubano da luxúria americana com uma estagiária (Mônica amorosa e dadivosa) e quase perde o comando da pátria de Tio Sam.
No Brasil, um Itamar deslumbrado empunha o cetro público de sua lascívia senil, ao ver os pelos púbicos da vedete, na festa da carne em que todos os pudores se perdem. Outros farão filhos por fora - que vão estudar no estrangeiro, para não arranjarem pampeiro no chão brasileiro. Na presidência do congresso dos agachados o varão Renan Galheiros (fazendeiro do ar, de gado simbólico, para mutretas de lesa-fisco) moverá céus e terra para não faltarem abundantes alimentos à amante nutriz. Não dispensará os serviços de um gerente de empreiteira, para não faltar mamadeira à infante que pôs no mundo fora do seio da sagrada família.
Enquanto caem as estrelas dos pais da pátria, tidos e havidos como sendo acima de qualquer suspeita, resplandece o brilho das dadivosas, que desfilam triunfalmente por todas as mídias. Escrevem livros, lançam-se na vida pública (como esta já não fosse a sua) - dão consultorias sobre combates de coxas, e tornam-se, da noite para o dia, celebridades milionárias, a quem se trata com venerando respeito. As mais proletárias da mais antiga das profissões limitam-se a lançar griffes espúrias, em alusão irônica à perseguição petista à Daslu. Sem contar que Goiás comparece como líder no ranking dos Estados exportadores de putas. Daí reproduzir a pergunta feitas linhas acima, no conto-verdade inserido em meu livro Memorial do medo: o que é pior, a puta que se entrega, ou a puta que não se entrega nunca?
Se considerarmos que muitas santas mães de família são prostitutas de seus maridos, uma pergunta se alevanta: uma santa mulher pode ser uma puta putana, ao costurar para dentro? Outra insiste em falar: por que o ser mulher de vida alegre e airada há de ser uma desfeita, se dá aos homens o amor faltante em seu mundo? Por isto há de se preferir a vida alegre de alguém que assuma o respiro da vida, do que a solidão compadecida de si, da senhora "acima de qualquer suspeita", que sai com o senador, por um punhado de dólares, e uma gorda pensão alimentícia - a outra e a mesma que, no altar de sua hipocrisia, reza as trezentos e cinqüenta Ave-Marias de suas sublimes vilanias.
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