Hemingway com Ava Gardner
Por João Paulo Teixeira
EM 23/07/2012 ÀS 11:20 PM
EM 23/07/2012 ÀS 11:20 PM
Burt Lacaster / Ava Gardner The Killers 1946 |
Ernest Hemingway é o escritor americano que melhor conceitualizou a “geração perdida” definida por Gertrude Stein. Isto porque, Hemingway descreve com extrema precisão homens que saíram das guerras e conflitos bélicos do século 20 para se embrenharem nas trevas do padecimento físico e psicológico.
Para celebrar um tratado minúsculo em tamanho, mas grande em abrangência literária, o bom diretor Robert Siodmak fez “The Killers”, em 1946, um filme fantástico ao estilo “noir”. Os primeiros dez minutos reproduzem quase literalmente o conto homônimo de Hemingway, escrito em 1927.
Dois assassinos invadem uma vila adormecida no interior dos Estados Unidos para matar o recluso imigrante sueco Swede (Burt Lancaster). Estranhamente, no conto e no filme, o protagonista não esboça resistência e abraça sua morte sem pestanejar.
O espectador fica na iminência cruel de imaginar a razão, pouco natural, para que Swede abandone o desejo de viver. Ao ser anunciado que, em poucos minutos, receberia oito tiros de revólver, ele apenas responde ao colega que trabalha com ele como frentista: “Não vou fugir. Estou cansado de me esconder”.
Depois que o filme deixa o roteiro “escrito” por Hemingway, aparece a imaginação fértil dos roteiristas Anthony Veiller e John Huston, o mesmo que fez e dirigiu “O Falcão Maltês”.
Os dois inventam a personagem Riordan (vivido pelo ator Edmon O’ Brien), um dedicado investigador de uma companhia de seguros, que para descobrir uma apólice avantajada — avaliada na época em 2500 dólares — vai atrás do passado da vítima. (Frise-se que, durante o filme, um personagem enche o tanque de um Cadillac modelo seis cilindros com apenas oito dólares. Ou seja, 2500, à época, representava uma quantia considerável).
Na sequência do roteiro, parece que Veiller e Huston leram e filmaram, ao seu modo, “O Sol Também se Levanta”, primeiro romance de Hemingway. Ele retrata a história de um pugilista que se envolve com uma mulher de reputação duvidosa. No livro, é uma enfermeira que tem a aparência que o leitor o desejar. Já no filme, a beleza fica por conta da belíssima Ava Gardner.
É possível que Hemingway — que teve a maioria de suas obras traduzidas no Brasil pelo escritor goiano José J. Veiga — tenha gostado, e muito, de ver Ava Gardner inserida em um dos seus textos mais notáveis.
Há informações prefaciais apontando como biográfico o romance pioneiro do escritor norte americano em visita à Espanha. Nele, o jornalista Jake Barnes é emasculado por um ferimento de guerra e nutre um amor platônico por uma enfermeira que o rejeita no leito de morte.
Hemingway acostumou-se à vida de viagens e usou parte de suas aventuras como pano de fundo para histórias na África, na Europa e em Cuba. Seu livro mais célebre, que o levou ao Nobel de Literatura em 1954, mostra figurativamente o encantamento do escritor com o regime socialista implantado na ilha caribenha. O desfecho totalitário do modelo econômico e social, aliado a terrível depressão de Hemingway, resultou — anos depois — no suicídio do escritor com um balaço disparado na própria face por uma espingarda usada comumente para caçar elefantes.
No filme de Siodmak, há poucas tragédias, mais possui um talento igual aos livros de Hemingway. No que se refere aos flashbacks, “Os Assassinos” está um passo além de “Cidadão Kane”, considerado pelo respeitável “American Film Institute” como o melhor filme estadunidense de todos os tempos.
Enquanto “Cidadão Kane” se centra no roteiro não linear, na passagem meticulosa do tempo, nos planos detalhes inventados por D.W Griffith e no “Macguffin” verbal de “Rosebud”, a obra prima de Siodmak prende o espectador ao entregá-lo, a cada cinco minutos, uma peça de um intrincado quebra-cabeça que só é montado no final da trama.
O roteiro, bem montado por Anthony Veiller, aliado à fotografia de Elwood Brendell e a música instrumental e retumbante do húngaro Miklos Rozsa, reforça a ligação do incansável agente de seguros — não como personagem, mas como espectador privilegiado da história de Swede.
Para cristalizar o elemento fílmico na narração da história de Hemingway, é possível ver o investigador sentar-se em uma fila de cinema, poucos minutos antes do embate final. A câmera se posiciona em primeiro plano e, como se fossem os olhos da personagem principal, enxergam a biografia mambembe de Swede.
Mais de três décadas depois, outro gênio do cinema americano, Stanley Kubrick, usou o mesmo fenômeno de Siodmak em seu épico “Barry Lyndon”, de 1975. Na trama de Kubrick, o personagem central Redmond Barry é mostrado, concomitantemente, como vivente e plateia à sua própria escalada rumo a aristocracia austríaca.
Em um dos momentos que Barry se envolve em uma luta corporal em meio à guerra franco-prussiana, Kubrick também posiciona a câmera à altura dos olhos do ator Ryan O’Neal. Cada soco ou tiro de canhão é direcionado não a Barry, mas à plateia.
O fenômeno causa tanta empatia que é praticamente impossível abandonar os filmes — tanto o de Siodmak quanto o de Kubrick — pela metade, mesmo depois de assisti-los pela enésima vez.
Além da boa qualidade técnica, “Os Assassinos” é a consagração do gênero “noir”. É a clara — e pioneira — materialização das razões que tornaram o modelo popular e como, anos depois, o gênero foi ramificado em dezenas de temáticas até desembocar nos populares filmes de ação da década de 1990.
O gênero “noir”, em sua essência, é a prova que queremos a ação sem nos desprender da segurança. É um filme fantástico em todos os aspectos.
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