Fernando e Clarice
Pessoa e Lispector têm um lugar quase inacessível ao comum dos artistas
LUIZ RUFFATO
10 DEZ 2013 - 18:44 COT
Recentemente, estive em Lisboa para participar, a convite da presidenta da Casa Fernando Pessoa, a escritora Inês Pedrosa, do terceiro congresso internacional sobre a vida e a obra do poeta português. Durante três dias, 210 estudiosos de oito países discutiram sobre a produção deste que talvez seja caso único na história da literatura mundial, um artista que, para sentir-se, precisou multiplicar-se: dependendo dos critérios da contagem, listam-se mais de 100 heterônimos usados nos cerca de 25 mil documentos escritos em português, inglês e francês atribuídos a Fernando Pessoa.
Os especialistas se debruçam com lupa sobre cada folha de papel manuscrita em uma caligrafia quase ilegível, buscando encontrar a verdadeira lição de um texto encontrado no mítico baú hoje sob a guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, que pode ser um poema, um conto, uma consideração sobre filosofia, política, estética, turismo, economia, ou a montagem do “romance sem ação” Livro do Desassossego, do semi-heterônimo Bernardo Soares. Os debates chegam a ficar tão acalorados que não são incomuns os bate-bocas entre congressistas – afinal, antes de peritos, são homens e mulheres movidos pela paixão que Pessoa desperta.
Fernando Pessoa é um desses raríssimos fenômenos de autor que, embora sequestrado pelo discurso acadêmico, conversa de maneira direta com o leitor comum – e quando me refiro ao leitor comum, estou evocando aquele que não se guia por indicações ou sugestões de conhecedores, mas por seu próprio gosto pessoal. São milhares de exemplares vendidos todos os anos, em diversas línguas, principalmente de antologias de poemas assinados por ele mesmo e por seus mais conhecidos heterônimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Números que vêm aumentando de forma exponencial desde 2006, quando os direitos de sua obra caíram em domínio público e editoras passaram a oferecer publicações de cunho popular, seja pelo preço, seja pela acessibilidade (textos sem variantes, explicações ou contextualizações, por exemplo).
As páginas na Internet dedicadas a divulgar a obra de Fernando Pessoa somam-se aos milhares. Suas palavras, na íntegra ou em retalhos, são usadas para sublinhar estados de ânimo, conquistar amores, desfazer relações, consolar, convencer... Todo mundo recorre, em algum momento da vida, às reflexões contidas nessa espécie de vade-mécum moderno. Para arrepio de muitos pessoanos, Fernando Pessoa tornou-se uma pitonisa e seus livros oráculos...
Só conheço um caso parecido na literatura de língua portuguesa, a de autor considerado, sem restrições, como alta literatura pelo mundo acadêmico, e abraçado e amado pelo leitor comum: Clarice Lispector. Em maio deste ano, participei da 39ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, e, no encerramento do evento, convidaram-me para compor uma mesa em homenagem à escritora brasileira. Um público entusiasmado lotava o anfiteatro: as poltronas não foram suficientes e havia pessoas de pé e sentadas pelos degraus.
Notícias chegam de várias partes do mundo. Na Feira de Frankfurt deste ano, na qual o Brasil foi o país homenageado, brilhava o rosto magnífico de Clarice. No verão novaiorquino, Clarice. Na França, onde é publicada desde a década de 1950, reina absoluta Clarice. No Brasil, o interesse por Clarice Lispector ultrapassa os limites do literário. Além de sua bibliografia clássica, composta por romances, contos e crônicas, e de biografias e ensaios críticos que esmiúçam sua trajetória pessoal e profissional, os leitores contam com um amplo cardápio que busca abarcar os mais diversos interesses da autora. Os pesquisadores encontraram, não em um baú como o de Fernando Pessoa, mas em jornais e revistas, material suficiente para inundar o mercado com compilações, correspondência, aconselhamentos, entrevistas, traduções, pinturas... Além disso, milhares de páginas na Internet reproduzem frases, pensamentos e citações de Clarice, incorporada ao gosto popular como autoridade em questões do cotidiano, particularmente no que tange ao universo feminino.
Fernando Pessoa e Clarice Lispector alcançaram um lugar quase inacessível ao comum dos artistas: estabelecer diálogos distintos com estudiosos e leitores comuns, e ser venerados por ambos...
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