segunda-feira, 15 de abril de 2019

Traumas de Audrey Hepburn a impediram de ser Anne Frank

Audrey Hepburn


Traumas de Audrey Hepburn a impediram de ser Anne Frank

Atriz se sentiu incapaz de encarnar a jovem judia no cinema.

Tudo por causa da semelhança com suas terríveis experiências sob a ocupação nazista



Jacinto Antón
Barcelona, 11 de ab 2019

Durante a ocupação nazista da Holanda, em meio ao terror, uma jovenzinha escreveu: "Nós nos mantínhamos com uma fatia de pão feito com qualquer cereal e um prato de sopa aguada elaborada com uma só batata (...). Os que suportávamos isso continuávamos com vida, e se continuávamos com vida então não estávamos mortos". A garota não se chamava Anne Frank, e sim... Audrey Hepburn.
A célebre atriz e musa de Givenchy passou uma adolescência não muito diferente da que teve a autora do diário mundialmente famoso. Ambas viveram a invasão hitlerista e a Segunda Guerra Mundial na Holanda, encararam perigos e sofreram penúrias. Anne Frank, claro, como judia perseguida, teve um destino muito pior, foi deportada para Auschwitz e depois morreu em outro inferno que era Bergen-Belsen. Hepburn sobreviveu para se tornar uma estrela cintilante, embora tenha estado a ponto de morrer de desnutrição durante o conflito, e por toda a vida carregou os rastros daqueles anos cruéis, nos quais chegou inclusive a ver partirem os trens cheios de judeus para os campos. “Em minha adolescência conheci a garra fria do terror humano”, escreveu depois, “Eu o vi, o ouvi e o senti. É algo que não desaparece. Não foi um pesadelo. Eu estive lá, e tudo isso aconteceu.”
Agora, um novo livro sobre a atriz, Dutch Girl: Audrey Hepburn and World War II, de Robert Matzen (GoodKnight Books), que sairá no próximo dia 15 e cujo conteúdo foi antecipado pela revista People, conta que as vidas paralelas de Anne Frank e Hepburn estiveram a ponto de se unirem quando o diário da primeira virou filme, em 1959, com direção do George Stevens. O pai de Anne e único sobrevivente da família, Otto Frank, pediu a Audrey Hepburn que encarnasse a sua filha na tela, mas a atriz estava tão traumatizada com a história da garota judia e com o que ela mesma tinha sofrido que disse não se considerar capaz de interpretar o papel (a protagonista foi a estreante Millie Perkins). Hepburn afirmou que sentia o drama de Anne como se fosse de uma irmã sua, porque “em certo sentido ela foi minha irmã da alma”.





Anne Frank (à esquerda) e Audrey Hepburn em uma imagem de sua infância.
Anne Frank (à esquerda) e Audrey Hepburn em uma imagem de sua infância.


As vidas de Anne Frank e Audrey Hepburn estão entrelaçadas, não só por terem compartilhado — até certo ponto — todo aquele horror do nazismo e da guerra, mas também por notáveis coincidências. Quando Hepburn leu O Diário de Anne Frank, deparou-se com uma passagem em que a jovem judia escrevia: "Cinco reféns executados hoje". Sentiu um calafrio: a data da entrada era a mesma de 1942 em que os nazistas haviam fuzilado seu querido tio Otto van Limburg. A atriz, conta Donald Spoto em sua biografia de referência (Audrey Hepburn, Penguin, 2006), foi uma das primeiras leitoras desse livro que viria a comover as consciências de tantos milhões de pessoas no mundo todo: "Li O Diário de Anne Frank quando saiu e fiquei destroçada. Eu me senti muito identificada com aquela pobre menina que tinha escrito o que eu tinha experimentado e sentido, e que tinha a minha idade”. Hepburn nasceu em 4 de maio de 1929, e Anne Frank em 12 de junho do mesmo ano.
Anne Frank não era holandesa; sua família tinha fugido de Frankfurt para Amsterdã. Audrey, por sua vez, embora nascida em Bruxelas de mãe holandesa (uma baronesa), sempre teve passaporte britânico, em virtude da nacionalidade de seu pai. Depois de vários anos em um internato na Inglaterra, e após a separação de seus pais, Hepburn e sua mãe foram recolhidas pela avó da futura atriz, que as levou para sua casa na Holanda —– mais precisamente em Arnhem, a cidade de Uma Ponte Longe Demais, cenário de uma das batalhas mais violentas da guerra, e que Audrey Hepburn testemunhou ao vivo: uma experiência insólita, em que se juntam Gigi e Antony Beevor.
Se em algo se diferenciam muito as vidas da atriz e de Anne Frank é na qualidade do pai. O de Hepburn foi um antissemita seguidor de Oswald Mosley e que tinha chegado a almoçar em Munique com o líder dos fascistas britânicos, Valkyrie Mitford, e com o próprio Hitler. A Hepburn mocinha, muito diferente de seu progenitor, fez durante a ocupação algumas atividades em prol da resistência que poderiam tê-la conduzido no mínimo à deportação. Participava dançando em reuniões artísticas clandestinas nas quais se coletavam recursos para os resistentes. Spoto conta que levava mensagens à resistência e inclusive que se envolveu no salvamento de um paraquedista britânico escondido.
Depois da batalha que devastou a cidade e do fracasso da operação Market Garden para acelerar o final da guerra, seguiu-se um inverno muito duro de fome que provocou mortes e doenças em toda a Holanda, perante a indiferença dos alemães. Hepburn esteve a ponto de ser um dos quase 20.000 civis holandeses que morreram pela escassez de alimentos. Quando chegou a liberação, a garota sofria um caso extremo de desnutrição, e um soldado norte-americano quase a matou ao lhe dar cinco tabletes de chocolate, que ela devorou imediatamente. As sequelas físicas daquela época contribuíram para que Audrey Hepburn nunca cumprisse seu sonho de chegar a ser uma estrela do balé, e provavelmente estiveram na raiz de que sofresse tantos abortos. Mas ela, diferentemente de Anne Frank, tinha um futuro à sua espera — e transbordante de tudo aquilo que a vida pode oferecer.

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