Gene Wolfe
A SOMBRA DO TORTURADOR
A Sombra do Torturador (The Shadow of the Torturer) é o primeiro livro da Tetralogia do Livro do Novo Sol, de Gene Wolfe. É considerado por muitos um dos melhores livros de Fantasia Científica já escritos, um gênero que combina elementos da ficção científica com a fantasia. Este primeiro volume relata a história de Severian, um aprendiz na Ordem dos que Procuram a Verdade e a Penitência (a Ordem dos Torturadores) e os eventos que o levaram à sua expulsão da Ordem e sua jornada para fora de sua cidade natal de Nessus. O estilo é o da narrativa em primeira pessoa, onde Severian – que alega possuir uma memória eidética (fotográfica) – conta sua história situada em um futuro muito distante, quando o Sol enfraqueceu transformando a Terra em um mundo frio e moribundo. Os livros dessa série são os seguintes:
- A Sombra do Torturador (The Shadow of the Torturer);
- A Garra do Conciliador (The Claw of the Conciliator);
- A Espada do Lictor (The Sword of the Lictor);
- A Cidadela do Autarca (The Citadel of the Autarch);
- Urth do Novo Sol (The Urth of the New Sun) – Este último é uma espécie de epílogo para a história de Severian.
Gene Wolfe (83 anos) não é um autor de best-sellers, fato que explica o completo desprezo das editoras brasileiras. Apesar disso ele é muito elogiado pela crítica e é reconhecido no meio literário como um dos maiores escritores vivos da língua inglesa, dono de uma prosa densa, rica em elementos alusivos e sem apego à convenções de gêneros literários. Neil Gaiman o considera possuidor de um “intelecto feroz”, Swanwick disse que Wolfe é “o maior escritor da língua inglesa vivo atualmente” e Disch considerou O Livro do Novo Sol como “uma tetralogia sofisticada, inteligente e suave.”
Os quatro volumes do Livro do Novo Sol são povoados por referências e metáforas cristãs, especialmente católicas – Gene Wolfe é um católico praticante – mas o leitor não precisa conhecer nada de teologia para aproveitar o livro pois essas referências ficam restritas ao background da história.
Um exemplo do uso de símbolos e referências católicas neste livro é o de Santa Catarina de Alexandria que foi presa por censurar a perseguição aos cristãos pelo imperador Maximino Daia. O imperador convocou 50 dos maiores sábios do mundo para convencê-la de que ela estava errada, e que deveria negar o Deus dos cristãos. Mas os argumentos de Catarina era tão eloquentes e convincentes que foi ela quem acabou convertendo os sábios ao cristianismo. Após a tortura Santa Catarina foi decapitada tornando-se uma das maiores mártires do católicos. Ironicamente a santa é apresentada como a padroeira dos Torturadores, e Severian, assim como os sábios da lenda católica, acaba traindo sua Ordem ao mostrar misericórdia à uma exultante da nobreza geneticamente alterada de Urth. Essa “traição”, acaba levando à jornada do exílio de Severian.
Antes de ser expulso para o exílio na longínqua cidade de Thrax, ele recebe de seu mestre a espada Terminus Est, uma impressionante espada, com a ponta quadrada, guarda mão de prata com duas cabeças entalhadas, punho de onyx com fita de prata e uma opala na ponta. As palavras Terminus Est gravadas em sua lâmina significam Esta é a Linha de Divisão. No meio da lâmina existe um canal por onde corre um metal líquido chamado de hidrargiro, mais pesado que o ferro, e que ao erguer a espada acima da cabeça desloca-se para a próximo do punho, e ao descer a espada desloca-se para a ponta, auxiliando o executor a manter o equilíbrio caso seja necessário manter a espada erguida durante muito tempo até o término de uma oração ou a ordem de um inquiridor.
Abro um parênteses para comentar algo sobre o sub-gênero dessa história, o pouco conhecido Morte da Terra (tradução livre de Dying Earth) que difere do popular sub-gênero pós-apocalíptico por não tratar de uma destruição catastrófica, mas sim de uma exaustão entrópica da Terra. O primeiro livro desse gênero foi Le Dernier Homme (1805) que narra a história de Omegarus, o Último Homem na Terra, que mostra uma visão de futuro onde a Terra tornou-se completamente estéril. Outros autores modernos também escreveram excelentes livros nesse sub-gênero, como Arthur C. Clarke em A Cidade e as Estrelas (1956) e George R. R. Martin em Morte da Luz (1977).
A edição portuguesa, possui alguns erros de tradução e vários erros tipográficos, além de não possuir o apêndice que existe na edição em inglês: Social Relationships in Commonwealth. Esse apêndice apresenta, de forma sucinta, a curiosa divisão da sociedade de Urth (uma corruptela para Earth) em sete grupos básicos, entre eles: exultantes, armigers, optimates, religious, pelerines e cacogens. Mais tarde descobrimos que existem mais de 135 classes na complexa sociedade de Urth, algumas com números muito reduzidos como a dos Conservadores, responsáveis pela conservação dos livros da biblioteca de Nessus e manutenção do Jardim Botânico, uma espécie de museu vivo com ecossistemas há muito tempo extintos. Em meio à narrativa podemos entender melhor os papéis desses grupos e é fascinante como o autor consegue apresentar essa estranha sociedade de forma natural e convincente, utilizando-se da visão de Severian, agudamente sensível às impressões do mundo exterior, propiciando uma narrativa extraordinariamente enriquecida pelas reflexões do seu narrador.
É um livro extremamente difícil de encontrar no Brasil e em Portugal, pois existem poucas cópias no mercado de usados. Após buscas exaustivas localizei todos os livros da série: A Sombra do Torturador (Livraria Traça, R$23,27), A Garra do Conciliador (Estante Virtual, R$26,42), A Cidadela do Autarca (Estante Virtual, R$45,16), e o mais difícil de encontrar foi A Espada do Lictor (wook.pt, R$96,86 já incluindo o frete internacional).
Muito mais que uma simples fantasia épica, O Livro do Novo Sol é uma obra como poucas, escrita com qualidades estilísticas inquestionáveis que criaram um mundo cruel mas ao mesmo tempo fascinante e merecedor de nossa atenção. Se você tiver sorte de encontrar esse livro não pense duas vezes, é um livro obrigatório para qualquer estante de ficção!
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