Amos Oz |
Denúncia de maus tratos do romancista Amos Oz à sua filha abala Israel
A também escritora Galia Oz conta em uma autobiografia que sofreu contínuos abusos físicos e psíquicos por parte do seu pai, que morreu em 2018
Juan Carlos Sanz
Jerusalém, 23 Fevereiro 2021
“Durante minha infância, meu pai me bateu, me insultou e me humilhou.” A autobiografia da escritora de literatura infantil Galia Oz gerou um forte incômodo em Israel, onde a memória do romancista Amos Oz, morto há pouco mais de dois anos em decorrência de um câncer, é preservada como uma glória nacional com projeção universal e ícone da esquerda pacifista. As acusações, contidas nas páginas do livro Algo disfarçado de amor, não são menores. “Não era uma perda passageira de controle, nem uma bofetada aqui ou acolá, e sim uma rotina sádica”, escreve ela. A comoção causada pela denúncia no Estado judaico se manifestou, porém, com o distanciamento geralmente dedicado aos segredos de família.
Galia Oz, de 56 anos, segunda filha do autor de De amor e trevas, rompeu há sete anos com seu pai e o resto da família. A tensão gerada por sua presença no funeral do escritor, em dezembro de 2018, ainda é recordada na imprensa hebraica. “Seus abusos eram criativos: me arrastava de dentro de casa e me atirava pela escadaria da entrada”, descreve ela no seu livro de memórias. “Poderíamos dizer que me tratava como lixo, mas sem nunca perder a calma. Meu crime era ser eu mesma, por isso o castigo nunca tinha fim, até que ele tinha certeza de que eu estava destruída por dentro.”
O escritor e jornalista Yehuda Atlas, amigo de Galia Oz, declarou à rádio pública israelense que “tinha ouvido falar dessas histórias [de maus tratos], mas para nós, progressistas de Israel, era difícil de aceitar. Amos Oz era nosso príncipe”. Daniel Oz, músico e poeta, filho mais novo do autor de Judas, deixou no Facebook uma enigmática reflexão: “Meu pai não era um anjo, só um ser humano. O melhor ser humano que conheci. Estou certo ―sei― que há um pingo de verdade nas lembranças de Galia. Não a apaguemos. Não nos apaguemos”.
A posição oficial da família ficou registrada em uma mensagem no Twitter da mais velha dos três filhos do romancista, Fania Oz-Salzberger, historiadora e professora. “Conhecíamos um pai diferente [do descrito por sua irmã mais nova]. Um pai amável e atento, que amava a sua família. As acusações de Galia, cuja dor parece ser real, não correspondem à lembrança, totalmente diferente, que guardamos dele ao longo de todas as nossas vidas.”
Amos Oz, nascido em Jerusalém em 1939, narrou Israel com uma voz original, que tocou a alma de seus compatriotas. O eco de sua obra, traduzida para 45 idiomas, propagou-se por todo o mundo com o reconhecimento de prêmios como o Príncipe de Astúrias (2007) e o Goethe (2008). Mas, embora seu nome figurasse anualmente nos bolões de aposta de Estocolmo, nunca recebeu o maior reconhecimento de todos, o Nobel de Literatura. “Acho que já tive minha cota de prêmios literários”, disse numa entrevista ao EL PAÍS em 2015, “e se não receber o Nobel não vou morrer insatisfeito”.
Sua vida foi um romance. Trocou seu sobrenome paterno, Klausner, pelo de Oz, e abandonou sua família de imigrantes judeus da Europa Oriental para ingressar em um kibutz aos 15 anos. O relato de sua experiência nas fazendas coletivas, que marcaram os primeiros anos do Estado judaico, foi o eixo central de uma obra de juventude que evoluiu para a descrição de personagens arquetípicos, com os quais a sociedade israelense se identifica e que atraíram a atenção de leitores de todo o planeta.
A relação familiar vivida por Amos Oz durante sua infância foi complexa. Esforçou-se para ser “o mais diferente possível” do seu pai, um bibliotecário nacionalista judeu, em busca do sonho do socialismo comunitário no campo. Mergulhada em uma depressão, sua mãe se suicidou quando ele tinha 12 anos. “Acho que há um gene fanático em quase todos nós. O ser humano tenta mudar os outros. Dizemos às crianças: ‘Você tem que ser como eu’”, declarou numa entrevista ao EL PAÍS poucos meses antes de morrer, quando apresentou sua última obra, Caros fanáticos, que definiu como “um legado”.
Pouco mais se sabe da vida privada do escritor mais reconhecido do Israel. Sua amabilidade era proverbial entre os correspondentes da imprensa estrangeira, a quem seduzia gerando manchetes sobre uma solução com dois Estados para o conflito palestino-israelense, ao mesmo tempo em que esmiuçava com habilidade ao longo das conversas a riqueza da obra que sua editora estivesse divulgando.
“Não tive remédio senão tentar superar a violência, o secretismo, o costume de guardar isso tudo para mim e o medo do que dirão”, confessa a filha do escritor em sua autobiografia. “Mas não consegui. Por isso tive que escrever.” Esperou a morte do pai. Alega que ele havia difundido inverdades entre os intelectuais israelenses para desacreditá-la, caso se atrevesse a revelar os maus tratos que diz ter sofrido. Analistas e críticos de sua obra citados pela imprensa local disseram enxergar no romance Conhecer uma mulher, de Oz, um paralelismo entre a filha obstinada e epilética do protagonista ―um ex-espião que acaba de enviuvar― e sua própria filha Galia.
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