terça-feira, 18 de junho de 2019

Anton Tchekhov / A esposa

Anton Tchekhov

A ESPOSA

Trad. Tatiana Belinky

Eu já lhe pedi que não arrumasse a minha mesa - dizia Nicolai Ievgráfitch. - Depois das suas arrumações nunca mais se pode encon­trar nada. Onde está o telegrama? Onde foi que o jogou? Queira procu­rá-lo. É de Kazan, marcado com a data de ontem.
A arrumadeira, pálida, muito magra, de rosto indiferente, encon­trou na cesta debaixo da mesa alguns telegramas e entregou-os em silêncio ao doutor, mas eram todos telegramas urbanos, de pacientes. Depois, procuraram na sala de visitas e no dormitório de Olga Dmitriev­na.
Já passava da meia-noite. Nicolai Ievgráfitch sabia que sua mulher não voltaria para casa tão cedo, no mínimo lá pelas cinco horas. Ele não confiava nela, e quando ela demorava a voltar, não dormia, sofria, e ao mesmo tempo detestava a mulher, e a sua cama, e o espelho, e as "bombonières", e essas campainhas e jacintos que alguém lhe mandava todos os dias, e que espalhavam pela casa inteira um perfume adocicado de loja de florista. Em tais noites ele se tornava mesquinho, enjoado, implicante, e agora lhe parecia que precisava muito do tele­grama recebido ontem do irmão, se bem que este telegrama não contivesse nada além de cumprimentos de festas.
No quarto da mulher, na mesa, sob a caixa de papel de cartas, ele encontrou um telegrama qualquer e lançou-lhe um olhar de passa­gem. Estava endereçado ao nome da sogra, para ser entregue a Olga Dmitrievna, era de Monte Carlo, e assinado: "Michel"... Do texto, o doutor não entendeu uma só palavra, porque estava em língua estran­geira, inglês, ao que parecia.
Quem é esse Michel! Por que de Monte-Carlo? Por que em nome da sogra?
No decorrer de sete anos de vida matrimonial, ele se acostumara a desconfiar, a procurar provas, e mais de uma ver lhe passou pela cabeça que, graças a esta prática doméstica, ele hoje já poderia ser um ótimo investigador. Voltando ao escritório e pondo-se a raciocinar, ele se lembrou imediatamente que seis meses atrás, estivera com a mulher em Petersburgo e almoçara no "Cubas" com um companheiro de escola, engenheiro de vias de comunicação, e que este engenheiro apresentara, a ele e à sua mulher, um jovem de uns vinte e dois, vinte e três anos, chamado Micail lvánitch; o sobrenome era curto, um tanto estranho: Ris. Dois meses depois, o doutor viu no álbum da sua mulher uma fotografia deste jovem, com uma dedicatória em francês: "Em recordação do presente e na esperança do futuro." Mais tarde, ele o encontrara um par de vezes em casa da sua sogra... E foi justamente naquela época em que sua mulher começou a se ausentar com freqüência e a voltar para casa às quatro e cinco horas da madrugada, e a viver lhe pedindo um passaporte para o estrangeiro que ele recusava; e na sua casa, o dia inteiro, havia tamanha guerra, que dava vergonha diante da criada.
Seis meses atrás, os colegas médicos decidiram que ele estava com um principio de tuberculose e aconselharam-no a largar tudo e ir para a Criméia. Ao saber disso, Olga Dmitrievna fingiu que ficara muito assustada; começou a ficar carinhosa com o marido, e sempre insistia que na Criméia era frio e aborrecido, e que seria melhor ir para Nice, e que ela o acompanharia e lá se ocuparia dele, trataria, cuidaria...
E agora ele compreendia porque a sua mulher tinha tanta vontade de ir para Nice: o seu "Michel" mora em Monte-Carlo.
Ele apanhou o dicionário inglês-russo e, traduzindo as palavras e adivinhando-lhes o sentido, pouco a pouco construiu uma frase assim: “Bebo saúde minha bem-amada mil vezes beijo pezinho pequeni­no. Impaciente espero chegada”. Ele imaginou que papel ridículo e lamentável teria feito, se tivesse concordado em viajar para Nice com a mulher, por pouco não chorou com o sentimento de humilhação, e, presa de forte agitação, pôs-se a andar por todos os quartos. Dentro dele revoltou-se o seu orgulho, os seus melindres plebeus. Crispando os punhos, o rosto contraído de asco, ele se perguntava como é que ele, filho de um cura de aldeia, educado no seminário, homem reto e rude, cirurgião de profissão — como é que ele pôde entregar-se à escravidão, submeter-se tão ignominiosamente a esta criatura fraca, insignificante, venal e baixa?
— Pezinho pequenino — balbuciava ele, amarrotando o telegra­ma. — Pezinho pequenino!
Daquele tempo, quando ele se apaixonara e fizera o pedido, e depois vivera sete anos, ficou apenas a lembrança da longa cabeleira perfumada, da massa de rendas macias e do pezinho pequenino, realmente muito pequeno e bonito; e ainda agora, parecia que dos ample­xos passados permanecia nas mãos e no rosto a sensação da seda e das rendas — e nada mais. Nada mais, se não se contarem as crises histéricas, os guinchos, os reproches, as ameaças e as mentiras, menti­ras cínicas e traiçoeiras... Ele se lembrava como, em casa do seu pai na aldeia, acontecia por vezes um pássaro entrar voando, sem querer, pela janela, e começar a debater-se freneticamente contra as vidraças e a derrubar os objetos; assim também essa mulher, de um meio totalmente estranho, invadiu a sua vida e estabeleceu nela verdadeira des­truição. Os melhores anos da vida passaram como num inferno, as esperanças de felicidade desbaratadas e escarnecidas, a saúde perdida, nos quartos e salas um ambiente vulgar de "cocotte", e dos dez mil que ganha por ano, ele nunca consegue enviar a sua mãe, viúva do cura, nem ao menos dez rublos, e já deve uns quinze mil em letras de câmbio. Parecia que, se em sua casa vivesse um bando de salteado­res, mesmo assim sua vida não estaria tão desesperada, tão irremedia­velmente destruída, como com essa mulher.
Ele começou a tossir e a ofegar. Seria preciso deitar-se na cama e aquecer-se, mas ele não podia e só andava pelos quartos ou se senta­va à mesa, e riscava, nervoso, o papel com o lápis, e escrevia maquinal­mente:
"Prova da pena... pezinho pequenino..."
Pelas cinco horas ele enfraqueceu e já se culpava de tudo a si mesmo, e lhe parecia agora que, se Olga Dmitrievna tivesse casado com outro, que pudesse ter sobre ela uma boa influência, então — quem sabe? no fim de tudo, talvez ela se tornasse uma mulher boa e honesta; mas ele é mau psicólogo e não conhece a alma feminina, e ainda por cima é desinteressante, rude...
“Eu já tenho pouco tempo de vida — pensava ele — sou um cadáver e não devo atrapalhar os vivos. No fundo, agora seria estranho e tolo reivindicar não sei que direitos próprios. Terei uma explicação com ela; que se vá para o homem amado... Dar-lhe-ei o divórcio, toma­rei a culpa sobre mim...”
Olga Dmitrievna chegou afinal, e como estava de “rotondeau” branco, chapéu e galochas entrou no gabinete e deixou-se cair na pol­trona.
— Moleque gordo e repugnante — disse ela, respirando penosa­mente, e soluçou. — Isto é até desonesto, é horroroso. — Ela bateu o pé. — Eu não posso, não posso, não posso!
Olga Dmitrievna chegou afinal, e como estava de “rotondeau” branco, chapéu e galochas entrou no gabinete e deixou-se cair na pol­trona.
— Moleque gordo e repugnante — disse ela, respirando penosa­mente, e soluçou. — Isto é até desonesto, é horroroso. — Ela bateu o pé. — Eu não posso, não posso, não posso!
Ela chorava a sério mesmo, como uma menina, e não só o lenço, mas até suas luvas estavam molhadas de lágrimas.
— Que se há de fazer! — suspirou o doutor. — Se perdeu, está perdido, e que vá com Deus. Acalma-te, eu preciso conversar contigo.
—  Não sou milionária, para não me importar assim com dinheiro. Ele diz que vai devolver, mas eu não acredito, ele é pobre...
O marido pedia-lhe que se acalmasse e o escutasse, mas ela só falava do estudante e dos seus quinze rublos perdidos.
— Ora, eu te darei vinte e cinco amanhã, mas cala-te, por favor — disse ele com irritação.
— Eu tenho de trocar de roupa! — chorava ela. — Não conversar seriamente, de casaco de peles! Que coisa estranha!
Ele tirou seu casaco e galochas, e, neste momento, sentiu cheiro de vinho branco, aquele mesmo que ela gostava de tomar quando comia ostras (apesar de toda a sua vaporosidade, ela comia muito e bebia bastante). Ela foi para o seu quarto e pouco depois voltou, com outra roupa, o rosto empoado, os olhos inflamados de chorar, sentou-se e sumiu toda no seu leve penteador rendado, e na  massa de ondas róseas o marido só distinguia a cabeleira solta e o pequenino chinelo.
— De que é que tu queres falar? — perguntou ela, balançando-se na poltrona.
— Eu, sem querer, vi isto aqui... — disse o doutor e estendeu-lhe o telegrama.
Ela leu e deu de ombros.
E que tem isso? — disse ela, balançando-se com mais força.
É um simples telegrama de Ano Novo e nada mais. Aqui não há segredos.
— Tu contas com o fato de eu não saber inglês. Sim, mas tenho um dicionário. E um telegrama do Ris, ele brinda de à saúde de sua amada e beija-a mil vezes. Mas deixemos, deixemos continuou o doutor, apressado. — Eu não quero em absoluto recriminar-te ou fazer uma cena. Já tivemos suficientes cenas e recriminações, é tempo de acabar... Aqui está o que eu quero te dizei: tu és livre e podes viver como quiseres.
Fez-se um silêncio. Ela começou a chorar baixinho.
Eu te liberto da necessidade de fingir e de mentir — continuou Nicolai Ievgráfitch. — Se amas aquele moço, podes amá-lo; se queres ir ter com ele no estrangeiro, vai. Tu és jovem, forte, e eu já sou ruína, sobra-me pouco tempo de vida. Numa palavra... tu me compreendes.
Ele estava emocionado e não podia prosseguir. Olqa Dmitrievna, chorando e com voz de quem tem pena de si mesma confessou que amava Ris, que saíra a passear       ele fora da cidade, que estivera no seu apartamento, e que, de fato, agora ela tinha muita vontade de ir para o estrangeiro.           
  — Esta vendo, eu não te oculto nada — disse ela com um suspiro.
— Abro-te toda a alma. E  novamente te suplico, sê generoso, dá-me o passaporte!
Repito: és livre.
Ela mudou de lugar, para mais perto dele, a fim de poder ver-lhe a expressão do rosto. Não acreditava nele, e agora tentava adivinhar os seus pensamentos ocultos. Ela nunca confiava em ninguém, e por mais nobre que fossem as intenções, sempre suspeitava nelas motivos mesquinhos ou baixos e fins egoístas. E quando ela lhe fitava o rosto com ar perscrutador, pareceu-lhe que nos seus olhos, como nos olhos de uma gata, brilhara uma faísca verde.
Mas quando é que eu receberei o passaporte? — perguntou ela em voz baixa.
Ele teve vontade, de repente, de responder “nunca”, mas se conteve e disse:
Quando quiseres.
Eu vou só por um mês.
Tu vais ter com Ris para sempre. Eu te darei o divórcio, tomarei a mim a culpa, e Ris poderá casar-se contigo.
Mas eu não quero o divórcio! — disse Olga Dmitrievna vivamente, fazendo uma cara admirada. — Não te peço divórcio! Dá-me o passaporte, e é só.
Mas porque tu não queres o divórcio? — perguntou o doutor, começando a ficar irritado.  És uma mulher estranha. Como és estranha! Se estás seriamente enamorada, e ele também te ama, na vossa situação ambos não podereis inventar nada melhor que o matrimônio. Ou será que tu ainda preferes escolher entre o matrimônio e o adultério?
Eu já compreendi o senhor — disse ela, afastando-se dele, e o seu rosto assumiu uma expressão maldosa e vingativa. — Eu o compreendo perfeitamente. O senhor está cansado de mim, e o senhor quer simplesmente livrar-se de mim, impingir-me este divórcio. Agradeço, mas não sou tão tola como o senhor imagina. Não aceitarei o divórcio e não o deixarei, não deixarei, não deixarei! Em primeiro lugar, não desejo perder a minha posição social — continuou ela, depressa, como que receando que ele a impedisse de falar, — em segundo lugar, já estou com vinte e sete anos, e Ris tem vinte e três; daqui a um ano ele se cansará de mim e me abandonará. E em terceiro lugar, se deseja saber, eu não garanto que esta minha paixão possa durar muito tempo... Está aí! E eu não deixarei o senhor.
Neste caso vou expulsá-la da minha casa! — gritou Nicolai Ievgráfitch, batendo os pés. — Toco-te para a rua, mulher baixa e ignóbil.
Veremos! — disse ela e saiu.
Lá fora já clareava o dia, mas o doutor continuava sentado à mesa riscando o papel com lápis e escrevendo maquinalmente:
“Prezado senhor... Pezinho pequenino...”
Ou então punha-se a andar e parava na sala de visitas diante de uma fotografia, tirada havia sete anos, pouco após o casamento, e fitava-a longamente. Era um grupo familiar: o sogro, a sogra, sua mulher Olga Dmitrievna quando tinha vinte anos, e ele mesmo, na qualidade de marido jovem e feliz. O sogro, escanhoado e rechonchudo conselheiro secreto, astuto e ávido por dinheiro; a sogra, senhora opu­lenta de feições miúdas e rapaces como de uma doninha, que amava a filha loucamente e a ajudava em tudo; se a filha estivesse estrangulan­do um ente humano, ela não lhe diria uma palavra, mas apenas a esconderia atrás da sua saia. Olga Dmitrievna também tem traços fisio­nômicos miúdos e rapaces, mas mais expressivos e atrevidos do que os da mãe; esta já não é uma doninha, mas uma fera bem mais graúda! Já próprio Nicolai Ievgráfitch parece nesta fotografia um homem tão simples, bom rapaz, sujeito sem maldade; um sorriso bonachão de se­minarista espalhou-se pela cara toda, e ele crê ingenuamente que este bando de rapinantes, no meio do qual ele caiu por um capricho do destino, lhe dará a poesia e a felicidade e tudo aquilo com que ele sonhava quando, ainda estudante, cantava a canção: "Não amar e perder a vida tão jovem..."
E de novo, perplexo, ele se perguntava como foi que ele, filho de um cura de aldeia, educado no seminário, homem simples, rude e reto, pôde entregar-se tão desamparadamente às mãos desta criatura insignificante, falsa, vulgar, mesquinha, e, pela própria natureza, para ele totalmente estranha.
Quando, às onze horas, ele vestia o paletó para ir ao hospital, a criada entrou no escritório.
— Que deseja? — perguntou ele.
— A patroa levantou-se e pede os vinte e cinco rublos que o senhor lhe prometeu.

1895.


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