sábado, 29 de junho de 2019

Cervantes / ‘Dom Quixote’ e seus números





‘Dom Quixote’ e seus números

O cálculo mental que Sancho faz perto do fim da segunda parte do livro é só um exemplo de como Cervantes completava seus personagens com os mínimos detalhes


MONTERO GLEZ
17 FEV 2019 - 18:58 COT

Sabe-se que Albert Einstein lia Dom Quixote. Era o romance que levava em suas viagens e sempre o tinha em sua mesa de cabeceira. Sentia atração pelo personagem cervantino; um fidalgo de La Mancha para quem a cavalaria era “uma ciência que encerra em si todas ou a maior parte das ciências do mundo”.

Para Einstein, por sua vez, a literatura não seria apenas uma maneira de se relacionar com o acaso, mas também uma forma de se identificar com a matemática pura, que ele definiu, em sua forma, como a poesia das ideias lógicas.
De um ponto de vista sempre criativo, Einstein manteve sua falta de respeito por estruturas rígidas. Fez isso da maneira quixotesca, criando a irreverente Academia Olímpia com um grupo de amigos. Uma irmandade com rituais típicos dos romances de cavalaria, da qual o cientista foi nomeado presidente.
Da forma como correram as coisas, pode-se dizer que a aventura científica de Einstein foi quixotesca, já que teve de enfrentar os moinhos do mundo acadêmico de sua época. “Agora eu também sou um membro oficial da guilda das prostitutas”, escreveu em uma carta, depois de conseguir seu cargo de professor na Universidade de Zurique.
Quixotismos à parte, é possível que, levado por sua condição científica, Albert Einstein tenha se indagado alguma vez sobre a velocidade das pás dos moinhos que aparecem no romance de Cervantes. É possível, inclusive, que tenha feito cálculos sobre o valor da força normal entre Rocinante e o solo de La Mancha, que, ao ser tão horizontal, coincidiria com o peso do cavalo somado aos ossos de seu cavaleiro, no momento exato de investir contra os gigantes. Certamente Einstein analisava os episódios do romance a partir das abstrações propostas pelas leis da física. É possível também que gostasse da maneira rústica que Sancho Pança tinha de fazer operações aritméticas.






Ilustração de Gustave Dourei para 'O Quijote'.
Ilustração de Gustave Dourei para 'O Quijote'.


O cálculo mental que Sancho faz quase no fim da segunda parte do livro nos mostra que Cervantes era um autor que completava seus personagens com os mínimos detalhes. Neste caso, Quixote propõe a seu escudeiro que defina um preço para cada açoite com que deve punir a si mesmo. Sancho responde “um quartilho”, ou seja, a quarta parte de um real para cada açoite. Fazendo contas, Sancho diz que não ganhará menos de três mil e trezentos quartilhos. Em seguida, expõe seu cálculo mental, separando milhares de centenas, os três mil dos trezentos, para depois começar a fazer metades e meias metades, o que resulta em um jogo numérico:
(3.300 : 4) = (3.000 + 300) : 4 = (3.000 : 4) + (300 : 4) = 750 + 75 = 825
“São ao todo oitocentos e vinte e cinco reais”, replica Sancho, esperando chegar à sua casa com o dinheiro, “rico e contente, embora bem açoitado”.
O romance de Cervantes não está repleto somente de questões aritméticas como a citada, mas também algébricas, geométricas e inclusive lógicas. Serve como exemplo o famoso paradoxo do enforcado, quando chega até Sancho, governador da ínsula Barataria, um forasteiro com uma história que, no fim, contraria toda a lógica por apresentar duas opções iguais em relação à sua possibilidade.
Segundo o forasteiro, um rio dividia duas partes de um mesmo terreno, e sobre esse rio havia uma ponte e uma forca. A lei dizia que se alguém queria atravessar a ponte tinha de dizer primeiro, sob juramento, aonde ia e o que ia fazer. Se dizia a verdade, era autorizado a passar. Se mentia, morria enforcado.
Então, aconteceu que um homem foi cruzar a ponte jurando que ia morrer naquela forca. Se sua passagem fosse liberada, teria mentido em seu juramento e, por mentir, deveria ser enforcado. Mas, se fosse enforcado, teria dito a verdade e, por isso mesmo, por dizer a verdade, deveria ter ficado livre.
Sancho acabou deixando o homem com vida. Fizesse o que fizesse, se o enforcasse ou se o deixasse livre, em qualquer dos dois casos, Sancho violaria a lei.
Por isso, teve uma saída lógica na qual demonstrou sua habilidade na hora de resolver o paradoxo. A mesma lógica que combinou com astúcia no caso do açoitamento. Em vez de atingir seu corpo, açoitou o tronco de uma árvore.

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