Ilustração mostra Stálin com “pinta de malandro”, escreveu jornal na época
Daniel Luque
O retrato de Stálin que Picasso queria esquecer
Artista espanhol retratou líder soviético dez dias após sua morte e causou controvérsia entre os membros do Partido Comunista francês.
Quando recebeu um convite da revista literária “Les Lettres Françaises” para pintar um retrato de Stálin, o pintor espanhol Pablo Picasso ficou em um beco sem saída: a publicação, que era referência na época, era comandada pelo poeta Louis Aragono, também membro e colega do Partido Comunista da França.
Em março de 1953, apenas dez dias após a morte do líder soviético, o rosto de Stálin com os traços de Picasso estampava a página da revista francesa. E a figura, com bigode e olhos esbugalhados, atraiu atenção – negativa.
O jornalista Feliciano Fidalgo descreveu em 1983, no “El País”, que “pelo retrato de Stálin assinado por Picasso pode se imaginar um arruaceiro com pinta de malandro”.
Retrato dividiu críticos e adoradores do pintor (Foto: Wikipedia Commons)
Três dias depois, o Partido Comunista da França (PCF) expressou descontentamento com o trabalho. “O secretariado do PCF desaprova categoricamente a publicação do retrato do grande Stálin”, declararam.
Com a palavra, o biógrafo de Picasso
Para entender melhor o desenrolar dos fatos, a Gazeta Russa foi à cidade natal de Picasso, Málaga, onde mora o biógrafo do artista Rafael Inglada.
“O retrato de Stálin que Picasso fez após a morte do ditador soviético foi, penso eu, uma resposta às exigências do que deveria ser arte para uma potência como a Rússia. Foi o biógrafo e amigo de Picasso, Pierre Daix, que enviou um telegrama ao artista, em nome de Louis Aragon, para que participasse com um desenho da edição especial que seria dedicada ao falecido líder soviético na ‘Les Lettres Françaises’”, diz Inglada.
Picasso fez o desenho a carvão no dia 8, em Vallauris, e quatro dias depois a revista foi lançada.
O artista queria fazer um retrato de Stálin jovem (a partir de uma fotografia de 1903, que Françoise Gilot, então parceira de Picasso, havia achado em um jornal velho).
Dizia-se, porém, que ele e Françoise Gilot riram tanto ao terminar o desenho que Picasso ficou com soluço, pois o retrato guardava uma semelhança impressionante com o pai de Françoise. Ainda assim, a ilustração foi enviada.
Nem as flores que Picasso enviara a Moscou foram capazes de atenuar a polêmica entre as fileiras do Partido Comunista Francês e detratores e admiradores do artista.
O jornal “L’Humanité”, publicado em 18 de março daquele ano, divulgou em sua primeira página uma declaração categórica de desaprovação ao retrato.
“Sem questionar a integridade do grande artista, cujo compromisso com a causa da classe operária é conhecido por todos, o secretário do Partido Comunista Francês lamenta que o camarada Aragon, membro do Comitê Central e diretor da ‘Les Lettres Françaises’, que, por sua vez, conduz uma luta corajosa para o desenvolvimento da arte realista, tenha permitido a sua publicação”, escreveu o jornal.
Inglada: “Para Picasso, colaboração era uma coisa; outra era submissão” (Foto: Lola Durán/Valladolid)
Na época, os detratores e os defensores de Picasso se dividiram visivelmente em dois grupos. “Para Picasso, a situação parecia ridícula; mostrava que colaboração era uma coisa, e outra era submissão e exigência”, diz.
Segundo Inglada, o poder central do PCF considerou a arte uma “caricatura insultante e vulgar do grande guia dos povos”, e condenou Aragon e a redação da revista por terem publicado o retrato. Também foi exigido que toda a tiragem fosse destruída por “blasfêmia”, assim como a divulgação de uma nota de arrependimento público pelos responsáveis da publicação.
A queixa oficial foi recebida como uma ordem pelos comunistas gauleses. Aragon se viu obrigado a recuar e desculpar-se publicamente. Na edição seguinte, a publicação divulgou cartas com críticas de várias células do partido.
Comunista inveterado
O longo exílio de Picasso – por oposição ao regime de Franco –, combinado com as experiências brutais durante a ocupação nazista de Paris, levaram o artista a enxergar o comunismo como “um ideal de paz, a chave para um mundo livre do fascismo”.
Isso gerou, porém, protestos de grupos de direita em algumas de suas exposições, e os Estados Unidos negaram sua entrada no país.
O pintor realizava conferências públicas pelo mundo e doações para causas sociais, incluindo um milhão de francos para os mineradores de carvão franceses que estavam em greve. “Mais tarde, protestou contra a guerra na península coreana, à qual dedicou sua obra “Massacre na Coreia” (1951), crítica aos EUA e que tampouco agradou o PCF, que preferia, como no caso do retrato de Stálin, um trabalho mais simples.”
“Massacre na Coreia”, de 1951 (Foto: Wikipedia Commons)
Em 1962, Picasso recebeu o Prêmio Lênin da Paz entre os povos, mas mantinha uma relação complexa com o partido. Embora não aprovasse a repressão da revolta húngara, por exemplo, permaneceu fiel aos ideais marxistas até sua morte, em 1973.
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