Rony Maltz
FOTOLIVROS
Exposição dedicada aos fotolivros latino-americanos reúne a partir da próxima semana, no IMS, 80 obras de alguns dos principais expoentes do gênero no Brasil e no exterior, jogando luz sobre um ramo fértil mas ainda pouco conhecido da história da fotografia.
Por Rony Maltz, especial para O GLOBO, de Nova York
A narrativa começa sobrevoando a selva amazônica. Cada página virada abre um horizonte saturado de cores e texturas exuberantes, e a sensação é de avançar pela topografia, explorando a natureza da região: o céu azul espelhado nas águas lisas do rio, chapadas ocultas sob o colchão de nuvens. A imagem pousa na mata fechada logo abaixo: estamos entre os Yanomami. Em poucas fotografias, o olhar percorre da longínqua paisagem aérea aos rostos dos indígenas em close-up, intimidade que levou anos para ser conquistada.
— Quando fui lá pela primeira vez, não pensei em livro nenhum. A edição foi a continuação do ato de fotografar. Comecei em 1971, com uma bolsa da Fundação Guggenheim, e virou a minha vida — conta Claudia Andujar, suíça naturalizada brasileira e coautora de “Amazônia” com George Love, seu marido na época.
O livro raro de Andujar e Love é uma das 80 obras selecionadas para a exposição “Fotolivros latino-americanos”, que estreia em 9 de março no Instituto Moreira Salles, no Rio. A mostra, que conta ainda com trabalhos de Miguel Rio Branco, Rosângela Rennó, José Medeiros, Boris Kossoy, Cássio Vasconcelos e Claudia Jaguaribe, entre outros, já passou por Madri, Paris e Nova York antes de chegar à cidade, de onde segue para São Paulo e Buenos Aires.
Na edição original, de 1978, “Amazônia” tinha prefácio do poeta Thiago de Mello. Mas o regime militar censurou o texto, o livro foi recolhido e nunca foi a público, lembra Claudia, que no mesmo ano foi expulsa da área pela Funai. O Brasil vivia o auge da ditadura e a região Norte era alvo de diversas obras desenvolvimentistas, entre elas a construção da estrada Perimetral Norte, que cortaria uma imensa área de reserva.
— Eles achavam que eu estava lá para denunciar os maus tratos aos índios, embora não fosse o foco nesse trabalho — diz Andujar, por telefone. — Hoje é quase impossível encontrar o livro.
Foi na seção de turismo de uma livraria que o fotógrafo e historiador espanhol Horacio Fernández encontrou seu exemplar de “Amazônia”. Curador da exposição e autor do livro homônimo em que ela é baseada, publicado no Brasil em 2011 pela Cosac Naify, Fernández começou a pesquisar fotolivros há mais de dez anos, quando lançou “Fotografía pública” (2000, inédito no Brasil), obra seminal sobre o gênero.
Desde então, vários autores se debruçaram sobre o tema, dedicando-se a mapear uma produção que, como escreveu a historiadora de arte Shelley Rice em “The book of 101 books” (2001, inédito no Brasil), representa “uma história secreta embrenhada na conhecida cronologia da história da fotografia”.
“Fotolivros latino-americanos” é o resultado de pesquisas feitas em 19 países, de Cuba à Argentina, por quatro anos, e abrange a produção do continente de 1920 a 2012. Fernández contou com o apoio de um conselho de curadores composto pelo argentino Marcelo Brodsky, o brasileiro Iatã Cannabrava, os ingleses Martin Parr e Lesley Martin, e o espanhol Ramon Reverté.
— Há pouco mais de um ano, a principal diferença entre os fotolivros latino-americanos e os de outras regiões era seu total desconhecimento. Tanto que já se disse que era um dos segredos mais bem guardados da história da fotografia. Pode ser exagero, mas a verdade é que quando comecei a trabalhar no tema não existia nenhum estudo, apenas listas sem comentários ou ilustrações — conta Fernández, por e-mail, destacando um aspecto particular da produção do continente: — Chamam a atenção os fotolivros do período das ditaduras militares, que às vezes encontrávamos em duas versões (uma oficial e outra clandestina), sobretudo no Chile.
Fotolivro x “livro com fotos”
Um dos critérios de seleção foi o de contemplar apenas projetos nos quais o fotógrafo tem papel ativo na realização do livro, em conjunto com o designer gráfico e o editor. “O livro é mais do que a soma de suas partes” explica Martin Parr em “The photobook: a history (vol. I)” (2004, inédito no Brasil). “O conteúdo, a edição, a escolha do papel, a qualidade da impressão, a fonte do texto, a encadernação, o design da capa, as dimensões — todos esses elementos precisam se encaixar harmoniosamente” escreve Parr, ávido colecionador de fotolivros.
A diferença entre “fotolivro” e “livro com fotos” pode ser ilustrada pela comparação que Miguel Rio Branco faz entre duas obras suas publicadas na mesma época: “Silent book” (Cosac Naify, 1997) e “Miguel Rio Branco” (Companhia das Letras, 1998). O primeiro, incluído na exposição, ele considera um “ensaio acabado”; o outro, uma retrospectiva da carreira, é rechaçado como “catálogo fajuto, meu pior livro”.
— A edição é mais importante que o ato fotográfico — diz Rio Branco, por telefone. — Qualquer cretino faz uma boa foto. O livro tem que ter uma construção. Tudo nasce da edição das imagens — explica o fotógrafo, que tem dois outros títulos na exposição: “Nakta” (Fundação Cultural de Curitiba, 1996) e “Entre os olhos, o deserto” (Cosac Naify, 2001).
Destacado pelos curadores da mostra como “um dos mais importantes fotolivros do século XX”, “Silent Book” foi lançado em uma tiragem pequena, esgotou-se rapidamente e permanece quase desconhecido do público brasileiro — a Cosac Naify lançou uma segunda edição em 2012, após a publicação de “Fotolivros latino-americanos”. Sem qualquer texto exceto o título (“livro silencioso”), o fino volume é composto por uma série de fotografias coloridas, cada uma ocupando por inteiro suas páginas quadradas, algumas delas dobradas para se abrirem em trípticos. As imagens díspares — um boxeador anônimo, um torso nu feminino, garrafas quebradas, um pé calejado — não formam uma unidade narrativa fechada, mas criam relações em virtude do seu encadeamento.
— Onde e para quê as fotos foram feitas não interessa, o que importa é o todo, o discurso — conclui Rio Branco.
Meio impresso em tempos digitais
Para a artista mineira Rosângela Rennó, “o livro é um espaço de exposição”. Muitas de suas obras impressas nasceram como documentação de outros trabalhos, o que não as impediu de ganharem vida própria. É o caso de “O arquivo universal e outros arquivos” (Cosac Naify, 2003), incluído na mostra.
— Quase todos os meus livros foram pensados como projetos autônomos, com características especificas — diz Rennó.
Pelo menos até a década de 1990, toda fotografia possuía uma existência material. Mesmo as que circulavam na internet 1.0, antes da popularização da fotografia digital, tinham que existir em papel, metal, tecido ou celuloide antes de aparecerem na tela do computador. É relativamente recente que imagens possam circular exclusivamente no mundo virtual, sem nunca deixarem de ser códigos binários. Entretanto, o crescente tráfego virtual parece não ameaçar — como muito se especulava — a demanda pela publicação impressa: a produção e oferta de fotolivros se encontra em franca expansão.
— Acho até que muita internet, blog, iPad e Instagram têm cansado o leitor. Vejo muita gente querendo pegar em imagem impressa em papel, sem depender de bateria — opina Rennó. — Gosto de objetos, de cheiro de papel impresso, de biblioteca e livro empoeirado.
Autor de “Rio” (DBA, 2004), também incluído na mostra, e de vários outros fotolivros desde a década de 80, Cláudio Edinger também prefere imagens que possam ser experimentadas com outros sentidos além da visão.
— A internet tem seu lugar, mas sem aparecer no papel a fotografia é como uma refeição em um livro de culinária: linda, mas inútil se temos fome — compara o fotógrafo carioca.
Andujar gostou de ver “Amazônia” digitalizado e editado em vídeo na estreia da exposição em Madri, no ano passado.
— É um novo modo de apresentar para um público muito maior — diz a artista. — Com o livro normalmente você está sozinho, leva o tempo que quiser para penetrar nos pensamentos do autor, do fotógrafo. No vídeo isso é dado. O livro tem uma intimidade.
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/
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