sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Julio Cortázar / O menino dos 100 anos

Cortázar
Foto de José Gelabert
Cortázar, o menino dos 100 anos

Hoje completa o centenário de Julio Cortázar, autor de 'O Jogo da Amarelinha'


O escritor Julio Cortázar posa com seu gato em 1982. / ULLA 
O menino. Ele disse a Elena Poniatowska, em uma das quatro entrevistas que tiveram, que sentia-se mal na infância: “Sim, acho que fui um animalzinho metafísico desde os 6 ou 7 anos. Eu me recordo muito bem que minha mãe e minhas tias – meu pai deixou minha irmã e eu quando éramos muito pequenos –, enfim, as pessoas que me viam crescer se preocupavam com minha distração, com o fato de viver sonhando. Eu estava eternamente nas nuvens. A realidade que me cercava não tinha interesse para mim. Eu via os buracos, o espaço que existe entre duas cadeiras, se é que posso usar essa imagem. Por isso, a literatura fantástica me atraiu desde muito criança.”
As pessoas. Seu primeiro livro importante, ou ambicioso, Os prêmios(1960), está cheio de pessoas que viajam de barco de Buenos Aires à Europa. Pessoas vulgares, todo o tipo de gente. Assim que começa há esta advertência de Dostoievski: “O que um autor faz com as pessoas vulgares, absolutamente vulgares, para apresentá-las a seus leitores de modo a torná-las interessantes? É impossível deixá-las sempre fora da ficção, pois as pessoas comuns são em todos os momentos a chave e o ponto essencial na cadeia de questões humanas; se as suprimimos, perde-se qualquer probabilidade de verdade.” Para sintetizar Dostoievski, Os prêmios começa assim: “A marquesa saiu às 5h – pensou Carlos López – onde diabos eu li isso?”. Estavam na confeitaria London, de Buenos Aires, na esquina de Peru e Avenida, e a partir dessa pergunta em que intervêm os diabos as pessoas começam a delirar. O resultado é a loucura, que é a razão envolta em mistério.
A noite. Esse delírio de Cortázar e suas pessoas da ficção chega ao auge em O Jogo da Amarelinha (1964), que foi lido (é lido) como um breviário da solidão e da noite, um monumento literário ao amor, ao assombro e ao tempo. Tudo isso é presidido pelo jogo, pois Cortázar quer que você o leia como você bem entender, mas se despir essa imensa cebola literária de toda a paixão lúdica atribuída a Julio você o verá só, despojado, falando sozinho e à noite, em Paris mas também em Buenos Aires. Como se O Jogo da Amarelinha tivesse sido escrito diante do espelho de um homem solitário que (como diz Dostoievski) convoca muitas pessoas que, neste caso, se perguntam quanto tempo durará um menino. O menino se chama Rocamadour; os leitores de O Jogo da Amarelinha costumávamos enxergar-nos nessa criatura indefesa. E tampouco era difícil divisar no menino a metáfora que Cortázar atribuía à infância.
Múmias. A recepção dada a O Jogo da Amarelinha surpreendeu a Cortázar e a seu editor e amigo Paco Porrúa, porque na época (são palavras de Juan Carlos Onetti), “múmias infinitas” habitavam o mundo literário. Quando Félix Grande dedicou a Julio um número especial dos Cuadernos Hispanoamericanos (outubro-dezembro de 1980), Onetti disse em uma carta: “... sem prévio aviso, apareceu O Jogo da Amarelinha. Ali Cortázar se perdia e se encontrava. Se perdia da tradição novelística de nossos países, aceitava ou roubava o que se escrevia na Espanha ou França. Sua atitude foi vista como escandalosa por múmias infinitas, repúdio esse que não o afetou, pois ele procurava intencionalmente provocá-lo.” Quem não se surpreendeu foi Luis Harss, o grande escritor argentino que (com Los nuestros) levou ao conhecimento todos os que, em torno de Cortázar, fizeram parte do boom.
Jovens. Onetti continuava com seu entusiasmo secreto e veterano: “E o autor se encontrava, sem procurá-lo, sem procurar nada mais ou menos que um entendimento com ele mesmo, diante de uma juventude ansiosa por distanciar-se de tantos autores enfadonhos, de respirar um pouco mais de oxigênio, de entregar-se com felicidade à zona lúdica e sem resposta satisfatória de sua própria personalidade.” Esses jovens então formaram fila. Mas depois, trinta anos mais tarde, quando Cortázar voltou a ser presença dominante nas livrarias espanholas, após um interregno inaugurado com sua morte (em 1984), outros jovens deram várias vezes a volta da Fundação March de Madri para ouvir jazz e palavras em homenagem a Julio Cortázar. Para esse evento veio sua viúva, Aurora Bernárdez, e o pintor Eduardo Arroyo desenhou o capítulo 7 de O Jogo da Amarelinha, que foi como um gancho da ternura que existe dentre desse livro de pessoas perdidas na noite. Já se passaram 20 anos desde então, e O Jogo da Amarelinha continua a ser como que novo.
O senhor. O editor que acreditou nele, que o conduziu, foi Paco Porrúa, que há pouco tempo vive em Barcelona. Estavam trabalhando na revisão de Os prêmios, era março de 1960, e ele ainda chamava seu editor de “o senhor”. E quase brincando chega outro livro, que oferece a ele. “Duas semanas atrás terminei a revisão de Os prêmios, que já mandei para a Sudamericana. Me lembrei então que do o que o senhor me havia dito sobre os cronópios e comecei a procurar esses papéis que estavam espalhados pela casa, como costuma ser o caso com coisas de cronópios. Mas finalmente eles apareceram, alguns manchados de sopa e outros com evidentes manchas de taco de borracha (...) Agora que juntei todos esses textinhos e eu e Aurora os estivemos lendo e criticando, tenho a impressão de que não se excluem de maneira alguma, embora reflitam épocas e intenções diferentes. (...) Se o senhor ainda tiver vontade de publicar essas coisas, será questão de me escrever primeiro dizendo com sua franqueza habitual (que é a razão (uma das razões) de minha simpatia pelo senhor) os méritos e deméritos do monstrinho.”
Riso. Assim se iam fazendo os livros; diante de Plinio Apuleyo Mendoza (o escritor colombiano), Cortázar se assombrou em Paris, quando já tinha 64 anos e continuava a parecer um menino com os dentes separados, com a quantidade de livros que já tinha publicado. Tinha certeza, dizia, que isso devia ser um erro, “não são meus”. Ele os ia fazendo assim, como se fossem monstrinhos pintados desde dentro, mas com risadas. Assim fez La vuelta al día en ochenta mundos (1967); com a ajuda de seu amigo e pintor Julio Silva (que criou a capa e os interiores), não apenas escreveu mas o construiu, como quem desenha um jogo da amarelinha. Tudo o que ele tocava ou recortava, tudo o que via viajando ou sentado, tudo o que inspirava por fora converteu-se em literatura. Como se o menino que ele sempre foi o conduzisse pela mão e tornasse as coisas recortáveis. Assim Cortázar também criou, com as fotos fantásticas de Antonio Gálvez, Prosa do observatório (1972). Nesses dois livros estão suas descobertas e as pessoas, vistas de modo a continuarem sendo comuns ou extraordinárias.
Fim. O fim chegou depois de várias tristezas, a morte de Carol Dunlop, sua própria doença. Mario Muchnik, seu amigo e editor, o convidou para seu moinho em Segóvia. Cortázar podia ser circunspecto ou alegre, mas nas duas atitudes conservava o olhar do menino que foi, assustado ou curioso. Mas em sua última viagem espanhola, seu olhar era essencialmente de tristeza. Muchnick o retratou na fotografia inesquecível em que Julio aparece escrevendo sem dizer como o tempo com sua noite o haviam pego de surpresa. Aquele garoto que ele sempre foi se foi com ele, um bichinho metafísico à procura da fenda.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Prêmios Emmy / A fórmula do sucesso na televisão

Breaking Bad

A fórmula do sucesso na televisão

Os cinco prêmios Emmy para 'Breaking Bad' são a recompensa a um projeto pensado do início ao fim como uma totalidade



Aaron Paul e Bryan Cranston, ganhadores do Emmy, em uma cena de 'Breaking Bad'.
The Wire não ganhou nenhum Emmy. Em suas cinco temporadas só recebeu duas indicações, ambas de melhor roteiro de um capítulo, ambas para David Simon em colaboração (com Pelecanos e Burns). The Wire é, para muitos, a melhor série da história da televisão; e ainda assim continuamos acreditando no poder do Emmy, uma superstição coletiva tão histérica quanto a dos spoilers.
O Oscar da TV foi muito mais generoso com Breaking Bad, outra obra-prima de cinco temporadas, que se despediu em grande estilo. Melhor série dramática, melhores atuações, melhor roteiro. Os prêmios para os três atores principais apontam para a importância radical dos personagens naserialidade contemporânea. Particularmente relevante é o segundo Emmy para Anna Gunn, cujo papel de Skyler White foi visceralmente odiado pelos fãs (em níveis comparáveis apenas aos de Joffrey Baratheon em Game of Thrones), colocando a antipatia, a não-identificação, a rejeição moral dos protagonistas no centro do fenômeno serial. Nesse sentido, o triunfo de Breaking Bad sobre True Detective é o da obscuridade absoluta sobre a possibilidade do bem. Rust, o personagem de Matthew McConaughey, é um herói, atormentado, mas herói. Walter White, no entanto, é o vilão mais vilão já concebido pela televisão.

O Emmy não levou em conta essa questão temática ao privilegiar uma obra e não outra, mas sim outras questões de natureza artística, industrial e simbólica. Bryan Cranston tornou-se um monstro consagrado pela atuação na telinha, enquanto McConaughey, como tantos outros, é um turista brilhante que já tinha conquistado a fama, ainda que com um tipo de personagem diametralmente oposto, do cinema, seu país de origem. Na verdade, seu Oscar por Dallas Buyers Club deveu-se em pequena parte a O Lobo de Wall Street e em grande parte a True Detective. No roteiro da cerimônia, houve ironias sobre a relação entre as duas linguagens e indústrias, talvez pela primeira vez o Emmy esteve tão importante como o Oscar. Se não mais.
Outro conflito entre as séries de Vince Gilligan e Nic Pizzolatto passa pelos selos que as amparam. A AMC tornou-se nos últimos anos a marca das obras-primas, após a predominância da HBO com Six Feet UnderThe SopranosDeadwood e The Wire. Esta segunda década está sendo a de Mad Men e Breaking Bad, enquanto não se reconhece o poder de Game of Thrones e True Detective não se consolida. Porque premiar as cinco temporadas de Gilligan, em vez da única de Pizzolatto significa reconhecer a consolidação mais que o surgimento.

Esta década é a de Mad Men e Breaking Bad, enquanto não se reconhece o poder deGame of Thrones
E esse é o grande argumento, na minha opinião, para defender o grande vencedor de ontem. Vimos com Masters of sex, Ray Donovan e Rectify, para citar três exemplos recentes, como excelentes primeiras temporadas se convertem em segundas temporadas de menor qualidade. A renovação é, muitas vezes, uma condenação. Ao contrário de Pizzolatto, que aparentemente não tem um plano de longo prazo e nem sequer sabia o sexo dos protagonistas da segunda temporada quando a assumiu, Gilligan (assim como Simon) concebeu sua história com a antecipação e o rigor necessário para que, em seu conjunto, fosse uma obra-prima.

Sua equipe de roteiristas e ele mesmo foram escrevendo temporada por temporada, como é comum na indústria, mas souberam transformar os obstáculos em desafios e encaixar todas as peça. No excelente livro que a editora Errata Natura e dedicou à série, seu criador explica que Gus Fring surgiu porque o ator que sobre o qual recairia o peso da segunda temporada encontrou trabalho em outra série, ou que o carro que Walter dá a seu filho ou o videogame que Jesse usa para se distrair foram soluções criativas para o imperativo do product placement, tão fundamental para o financiamento como o público. Isolados em Albuquerque, sob a batuta de Gilligan, a orquestra de atores e técnicos soube criar a bolha de dedicação e obsessão que leva ao sucesso duradouro. Prova do trabalho em equipe é que foram indicados ao Emmy de melhor roteiro dois episódios de Breaking Bad, um escrito por Gilligan e outro por Moira Valley-Beckett: ganhou Ozymandias, o dela. Mas, na realidade, ganhamos todos.
Jorge Carrión é escritor e autor do estudo sobre a nova televisãoTeleshakespeare.



Angelina Jolie e Brad Pitt se casam em segredo

Angelina Jolie e Brad Pitt 

se casam em segredo

Um porta-voz do casal informa que eles se casaram neste fim de semana na França



EL PAÍS
Madri 28 AGO 2014 - 11:21 COT


Depois de nove anos fazendo o papel de casal perfeito de Hollywood, neste fim de semana os atores trocaram o “sim”. Ou, pelo menos, foi o que divulgou a agência de notícias AP. Primeiro chegou um tuíte breve: “Última notícia: Angelina Jolie e Brad Pitt se casaram no sábado na França, segundo um porta-voz do casal”. Pouco depois a informação ganhou mais detalhes: a cerimônia aconteceu no Chateau Miraval, onde Brad Pitt produz seus vinhos, em Correns (no sul do país). E os filhos do casal participaram da cerimônia privada e íntima, que foi acompanhada apenas por alguns poucos amigos e familiares, segundo a mesma fonte. Jolie caminhou até o altar acompanhada de seus filhos Maddox e Pax, enquanto Zahara e Vivienne jogavam pétalas de flores e Shiloh e Knox eram encarregados de levar as alianças.
Pouco depois de sair a notícia do casamento de “Brangelina”, Brad Pitt teve que participar de um evento promocional hoje em Dorset (Reino Unido). Na apresentação de seu próximo filme, Fury – sobre a Segunda Guerra Mundial –, todas as atenções estavam voltadas às mãos de Pitt, para captar uma imagem em que se visse com perfeição a aliança que confirmava a informação.

Embora parecesse que seu amigo George Clooney fosse adiantar-se a eles na passagem pela igreja, o casal de atores finalmente formalizou sua união, depois de passar mais de dois anos como noivos. Em 2012, Pitt tinha dado a Jolie uma aliança criada pelo joalheiro Robert Procop, que fez um trabalho seguindo as diretrizes do ator.
Os planos de casamento de Pitt e Jolie vêm de muito tempo. Dois anos atrás o ator explicou por que eles ainda não tinham se casado. “Gostaríamos de fazê-lo, e além disso, significa muito para nossos filhos. Declaramos algum tempo atrás que não nos casaríamos enquanto todo o mundo não pudesse se casar [alusão ao casamento gay]. Mas acho que não podemos esperar muito mais tempo. Significa muito para nossos filhos, e eles nos perguntam constantemente sobre isso. E também significa muito para mim me comprometer dessa maneira”, Pitt declarou à revista The Hollywood Reporter em 2012.
O casal de atores tem seis filhos. Jolie deu à luz aos gêmeos Vivienne e Knox em julho de 2008 numa clínica de Nice (França) e tem outra filha biológica com o ator, Shiloh Nouvel Jolie-Pitt, nascida em 2006 na Namíbia. Além disso, Jolie tem três filhos adotados: Maddox, do Camboja, Zahara, da Etiópia, e Pax, do Vietnã. Posteriormente os três foram adotados também por Pitt.
Nos últimos dias eles foram vistos juntos desembarcando em Malta, onde está sendo rodado um filme dirigido e escrito por Jolie, intitulado By the Sea, em que os dois vão contracenar juntos pela segunda vez. Eles filmaram juntos Sr. e Sra. Smith, onde se conheceram e iniciaram sua relação. Para Pitt, é seu segundo casamento (ele já foi casado com Jennifer Aniston), e para Jolie, é o terceiro: ela foi casada com o ator britânico Johnny Lee Miller e depois com o também ator Billy Bob Thornton.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Popeye, chefe dos pistoleiros de Escobar, é libertado após 23 anos de prisão

Pablo Escobar


Popeye, chefe dos pistoleiros de Escobar, é libertado após 23 anos de prisão

John Jairo Velásquez, um dos matadores de aluguel mais sanguinários do cartel de Medellín, sai da cadeia depois de cumprir 60% de sua pena


Popeye com um livro sobre Pablo Escobar. / AP
Quatro dias depois de um juiz da Colômbia expedir sua liberdade condicional, o homem que comandava os matadores de aluguel do chefão Pablo Escobar, e ficou conhecido pelo apelido de Popeye, foi solto após passar 23 anos na prisão. Às 21h da terça-feira (23h em Brasília), John Jairo Velásquez Vásquez, de 52 anos, voltou às ruas escoltado por uma caravana de cinco carros blindados e acompanhado por funcionários da Defensoría del Pueblo (órgão colombiano encarregado de zelar pelos direitos humanos), a quem, pela manhã, ele havia pedido proteção, através de uma carta escrita de próprio punho.
Popeye, que admitiu em várias entrevistas ter matado mais de 300 pessoas e ordenado a morte de outras 3.000 no fim dos anos oitenta e início dos anos noventa, durante o período de violência protagonizado pelos cartéis da droga, teme a liberdade. Ele sabe que tem muitos inimigos por causa de seus crimes e por ter sido testemunha-chave de vários processos judiciais – como o que esclareceu o assassinato do candidato liberal Luis Carlos Galán Sarmiento em 1989, idealizado pelo político Alberto Santofimio Botero – e diz que eles já colocaram sua cabeça a prêmio.
A libertação de Popeye estava prevista desde a segunda-feira, mas foi retardada porque as autoridades queriam comprovar que o pistoleiro, que começou no submundo do crime aos 18 anos em pleno auge do cartel de Medellín, não tinha nenhum outro processo penal pendente. Enquanto isso, algumas vítimas do cartel afirmaram não entender como um dos protagonistas do narcoterrorismo que assombrou o país há mais de duas décadas poderia sair da prisão após ter cumprido 60% de sua pena.
A operação de libertação daquele que foi um dos homens de confiança de Escobar se tornou um mistério durante toda a terça-feira. Com o passar das horas, as câmeras de televisão foram se aglomerando nas portas da penitenciária de segurança máxima de Cómbita, a duas horas de Bogotá, para registrar sua saída.
Para escoltar Popeye, a polícia precisou montar um esquema de segurança. Em um pedágio na estrada que leva a Bogotá, conhecido pelo nome de Albarracín, a primeira escolta foi substituída por outra que o acompanhou até a capital. Não se sabe qual será seu paradeiro de agora em diante. A imprensa local noticiou que ele deve entrar para um grupo de reintegração e socialização.
Fez 14 cursos na prisão e se formou em recuperação ambiental
Popeye, que fez 14 cursos de nível superior enquanto esteve preso e se formou em recuperação ambiental, surpreendeu a opinião pública e as autoridades pela frieza com que descreveu seus crimes. “Se Pablo Escobar nascesse outra vez eu me juntaria a ele sem pensar duas vezes”, disse em uma entrevista. Apesar disso, ele também se declarou um “bandido aposentado que abandonou seu posto”. Em uma entrevista ao jornal El Tiempo, em fevereiro de 2013, Popeye afirmou que quando fosse libertado gostaria de ter uma chance de se redimir dos milhares de crimes que cometeu. “Sou um homem que procura uma oportunidade na sociedade. Um homem que está em paz consigo mesmo. Quando eu sair, repito, não quero fazer mal a ninguém. Não tenho medo da justiça porque percebi que até para um homem como Popeye pode haver justiça”, disse.
Este assassino, que se entregou à Justiça em 1991 com Pablo Escobar e acompanhou o chefão no tempo em que este ficou em uma prisão que ele mesmo mandou construir e da qual fugiu um ano depois, terá agora um período de quatro anos de liberdade condicional e terá que se apresentar às autoridades periodicamente, além de se comprometer a não voltar a cometer crimes. Sua saída reabre velhas feridas da guerra contra o narcotráfico que ainda não estão curadas na Colômbia.





segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Putas e políticos



Putas e políticos

Nós, as putas, insistimos que os políticos não são nossos filhos.



sábado, 23 de agosto de 2014

Catherine Deneuve faz memória



Catherine Deneuve faz memória

A atriz francesa repassa sua carreira atual ao estrear seu novo filme, “Em um Pátio de Paris”




A atriz Catherine Deneuve aos 18 anos. / SYGMA/CORBIS
Hoje a esfinge se levantou de bom humor. Já reina no cinema europeu há 50 anos, desde que estreou em 1964, Os Guarda-Chuvas do Amor. Havia outras atrizes com tanto talento em sua geração. Intérpretes mais jovens quiseram destroná-la. Mas com seus altos e baixo, Catherine Deneuve sobreviveu e triunfou durante todo este tempo. Inclusive superou a morte de sua irmã, em 1967, Françoise Dorléac, também atriz, mais linda, mais talentosa. Até hoje as comparações continuam. Deneuve inspirou Jacques Demy, Luis Buñuel, François Truffaut, Roman Polanski. Trabalhou com Manoel de Oliveira, Lars von Trier, François Ozon, André Téchiné e Tony Scott. Martin Scorsese disse: “Catherine Deneuve é o cinema francês.” Ela sempre gostou dos diretores que arriscavam, os auteurs mais auteurs. Por outro lado, recebeu poucos prêmios, mais dos honoríficos, dos de reconhecimento por sua carreira, que dos competitivos: só foi candidata uma vez ao Oscar, por Indochina. Ela não se importa: já deixou sua marca, a esfinge — um apelido que fala de sua fortaleza, de sua firmeza, apesar de se definir como “uma mulher vulnerável” — marcou o cinema mundial para sempre.

Roman Polanksi é muito preciso, um diretor-ator que diz aonde você deve ir
Assim que, acima do bem e do mal, hoje Deneuve decidiu mostrar sua melhor cara. Está promovendo Dans la cour(Em um Pátio de Paris, em tradução livre). Corridas pela sala. Uma assistente pede desculpas: “Estamos levando os doces.” A atriz está tomando um café na sala ao lado e tinha vontade de umas bolachas. Dois minutos depois, com um prévio aviso de outra assistente, ouve-se barulho no corredor e entra Catherine Deneuve, de vestido marrom, pulseira de diamantes, cabelo arrumado e 70 anos impecáveis. Sempre se falou de seu tratamento facial com fio de ouro, ou do extremo cuidado de seu cabelo, mas jamais exagerou nas cirurgias e por isso está tão bem no século XXI. No filme Dans la cour, uma comédia com tons escuros de Pierre Salvadori, diretor com boa mão para fazer rir, a atriz encarna, de forma prodigiosa, uma mulher não muito inteligente, talvez um pouco tonta, que vive na típica casa de apartamentos do centro de Paris. Ali começa a trabalhar como porteiro um músico em perpétuo estado de depressão e os dois se convertem em estranhos amigos.
Antes da entrevista, Salvadori deu algumas dicas: Deneuve é bastante cinéfila, mas de ir ao cinema, não de DVD: “Quando estreou meu filme anterior em 2010, Uma Doce Mentira, Paris estava colapsada pela neve. Eu estava muito deprimido porque as salas estavam vazias, as pessoas não saíam de casa. E recebi uma ligação de Catherine, que conhecia superficialmente, elogiando o filme. Sim, tinha visto no cinema. Depois, durante a filmagem de Dans la cour, Deneuve me falava de diretores chineses e japoneses desconhecidos para mim com uma paixão que eu só conseguia responder: “Sim, sim, ótimo, sim.” Assim que, para começar, a primeira pergunta para a atriz é: O que você tem visto nos cinemas ultimamente? “Tive sorte: vi dois grandes filmes, Um Toque de Pecado, de Jia Zhangke, e Tal Pai, Tal Filho, de Hirokazu Kore-eda, que é um cineasta que idolatro”.


Catherine Deneuve e Luis Buñuel nas filmagens de 'A Bela da Tarde', em 1966. / MANUEL LITRAN (PARIS MATCH/CORBIS)
Deneuve confessa estar um pouco cansada, mas em seguida conta um segredo: “Sou capaz de dormir sestas de 10, 15 minutos não importa onde estou. Como Napoleão. Inclusive com o vestuário, em um palco. Eu me sento, mantenho o equilíbrio para não estragar o penteado e durmo. Há uma foto em que estou tirando uma soneca com uma coroa porque interpretava uma rainha da França.” Não gosta que seus amigos a vejam durante as filmagens: “Minha personagem continua comigo, eu a mantenho. Minha espera é diferente das outras esperas, porque em poucos segundos terei que fazer algo muito diferente.”
A entrevista para: toca seu celular e sai para deixar a chave do quarto para sua filha, Chiara Mastroianni [filha de sua relação com Marcello; tem outro filho, Christian Vadim, fruto de seu romance com o diretor Roger Vadim aos 22 anos]. “Em cinco minutos estou de volta.” Regressa em um. O grupo de jornalistas respira aliviado: “Minha filha me mandou relaxar, tratá-los bem. Tem razão, por isso vamos continuar.” E continua falando do filme: “O complicado é trabalhar com alguém pela primeira vez. Por sorte, Pierre foi um amor. Nunca comparo diretores. Se me obrigarem digo que Roman Polanski, por exemplo, era muito preciso, é um diretor-ator que indica por onde você deve ir. Buñuel… era outra coisa, claro. Por outro lado, Salvadori é ligeiro.”

Por favor, grandeza... Continuo aprendendo de tudo; no cinema também
Um dos ícones da França — Salvadori conta que, na verdade, seu personagem perdido e confuso reflete em parte seu país hoje; ela, por outro lado, rechaça essa possibilidade — se recusa a ser qualquer tipo de grandeur ou de ícone da moda. “Por favor, grandeza... Hoje, continuo aprendendo de tudo. No cinema também, embora de maneira diferente, porque obviamente estou em uma posição diferente da de antes”. Assegura que se sente afortunada: “Tive muita sorte. Atrizes com mais talento desapareceram muito antes. Vivo rodeada de amigos diretores e roteiristas que me apoiam. O cinema é minha segunda natureza.” E isso de ser ícone? Salvadori aponta que na primeira vez que se reuniram, ela usava um moletom e que não parou de fumar seus eternos cigarros finos. “Não, por favor. Eu não influencio ninguém, apenas foram os designers que me influenciaram. Quando conheci Yves Saint Laurent, eu era muito jovem, e ele me mudou fisicamente. Foi um amigo muito querido e muito próximo durante duas décadas. Mas, claro, usou roupa de outros criadores. E jeans. Claro. Se estou no jardim, cuidando das plantas, eu uso jeans. Quando conto isto, as pessoas me olham de forma estranha. Por favor... Sim, Deneuve cuida de seu jardim usando jeans. Cada vez sinto menos vontade de ir a festas, coisas assim.”
Nem sequer os prêmios? “Voltei a ser candidata aos César. Não fui. Não estão pensados como espetáculo televisivo... e não gosto como é a votação. É um sistema pouco claro, não tenho certeza se as pessoas veem os filmes. Não vou voltar nunca mais.” Dito isto, acende outro cigarro. “Este é um lugar privado, não? Então posso fumar. Parei durante onze anos... Voltei a fumar também há onze.” Qualquer um se opõe a seus desejos! Quanto ao do jardim, não vai se dedicar muito mais tempo a isso. Deneueve colocou a venda seu castelo em Primard, situado a uns 75 quilômetros ao oeste de Paris, com sauna e até um cinema, por quatro milhões de euros. “É relaxante estar ali e levar minha mãe para passear pelo jardim.” Sim, a mãe de Deneuve, a também atris Renée Deneuve — suas irmãs, Danielle, François e Sylvie usaram para atuação o sobrenome do pai, outro intérprete, Maurice Dorléac — está viva, aos 103 anos. “Acho que devo continuar por aqui um bom tempo, não?”.
Nos últimos 15 anos, Deneuve foi fazendo cada vez mais papéis cômicos, chegando a esta Dans la cour. “Fiz de tudo. Na realidade, é difícil encontrar bons roteiros. Embora seja verdade que nestes anos colaborei com Ozon, que é muito bom neste gênero. Téchiné tem um roteiro estupendo de comédia, mas que não consegue financiar, e eu adoraria fazer este filme.” Não há papéis nem para quem os diretores como Salvadori fazem filmes específicos? “Pois, nem para essas. Há grandes atrizes na França, como Adèle Exarchopoulos [Azul é a Cor mais Quente]. E asseguro que todas temos o mesmo problema: a falta de roteiros.”

Os grandes filmes de Deneuve


Catherine Deneuve em ‘Repulsa ao sexo’, de Roman Polanski (1965).
Os guarda-chuvas do amor (1964). Não foi seu primeiro filme — ela já tinha trabalhado com seu então marido Roger Vadim —, mas Jacques Demy extraiu o seu melhor nesse musical no qual Deneuve encarna uma garota apaixonada por um soldado, mas presa a um casamento sem amor.
Repulsa ao sexo (1965). O lado obscuro de Deneuve, em plena luz. Roman Polanski, em seu primeiro filme em inglês, dirige a personagem, uma garota que vai sucumbindo pouco a pouco à esquizofrenia quando aumentam suas alucinações e ela se torna uma serial killer, com frieza absoluta.
A bela da tarde (1967). A colaboração da atriz com Luis Buñuel começa com essa dona de casa sensível que começa a dedicar suas tardes à prostituição. Um filme cheio de detalhes criativos, como os sapatos ou a caixa misteriosa. Sem dúvida, nem Buñuel conseguia explicar bem o final.
A Sereia do Mississípi (1969). Truffaut e Deneuve, lado a lado. Na vida real se tornaram um casal, e quando ela o abandonou, ele caiu em depressão profunda. Na tela quem sofre é Jean-Paul Belmondo, arrasado por essa femme fatale.
Tristana (1970). Dessa vez Buñuel transporta Deneuve para a Espanha mais profunda, nos anos 1930, quando fica sob a proteção de don Lope (Fernando Rey), um aristocrata que a transformará em sua amante. Mas uma mão lava a outra, e se ele propõe a liberdade do casal, ela sabe desfrutar disso.
O último metrô (1980). Truffaut de volta. Deneuve encarna uma mulher casada com o proprietário judeu de um teatro a quem ela deve esconder na Paris ocupada pelos nazistas. Gérard Depardieu vive outro ator, com quem ela inicia um triângulo amoroso.
Fome de viver (1982). A atriz teve suas aparições no cinema norte-americano, e nem sempre escolheu bem. Mas aqui acertou ao dar vida a uma vampira egípcia envolvida, em pleno século XX, em um triângulo amoroso com Susan Sarandon e David Bowie, sob a direção de Tony Scott.
Indochina (1992). Deneuve é uma das 12 atrizes francesas que já foram candidatas ao Oscar. Não ganhou, mas o filme com o qual concorria,Indochina, de Régis Wargnier, conquistou a estatueta de melhor filme de língua estrangeira. A Indochina do título ainda era colônia francesa e é onde mora a personagem de Deneuve, proprietária de terras. Sem dúvida, outro drama com triângulo amoroso.
Os ladrões (1996). Deneuve e o diretor André Téchiné sempre souberam se conectar e tirar partido na tela de sua ótima relação. Pode ser que em Os ladrões a atriz não seja tão protagonista como em Minha estação preferida, mas está soberba e o filme é, sem dúvida, um thriller incrível.
Dançando no escuro (2000). Movida por seu faro por novos talentos, cedo ou tarde Deneuve encontraria Lars von Trier. A atriz escreveu uma carta ao diretor dinamarquês, e, anos depois, ele lhe presenteou com o personagem da imigrante francesa amiga da protagonista. Obviamente, quando Von Trier foi banido de Cannes, Deneuve o defendeu com unhas e dentes.



Vargas Llosa / Elogio do qi gong

Elogio do qi gong
Fernando Vicente


MARIO VARGAS LLOSA

Elogio do qi gong

Uma técnica milenar chinesa facilita a quem a pratica a placidez física e mental e permite experimentar confiança e tranquilidade para enfrentar o que vier


23 AGO 2014 - 17:00 COT

Já faz 27 anos que Patricia e eu jejuamos, a cada verão, em uma clínica de Marbella. Fizemos isso a primeira vez por causa de uma amiga que falava com tanto entusiasmo da experiência que nos encheu de curiosidade. Gostamos e não poderíamos nos privar destas três semanas de água, exercícios, natação, caminhadas e sopas. Algo bom deve ter o jejum pois sua prática faz parte da história de todas as religiões ocidentais e orientais. Mas, talvez, associá-lo estreitamente ao espiritual seja um corte muito profundo e o desnaturalize. Se o que se trata de entender ou procurar é os transes dos místicos, melhor ler Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz do que vir até a Clínica Buchinger.
No meu caso, o jejum tem por finalidade desagravar meu pobre corpo das duras servidões às quais o submeto no resto do ano, com as viagens, jornadas de trabalho exageradas, compromissos sociais - os horríveis coquetéis - e culturais, assim como as demais tensões, preocupações, sobressaltos e vigílias da vida cotidiana. Aqui eu deito cedo e me levanto ao amanhecer, dedico todas as manhãs ao esporte e as tardes, a escrever e ler. Quando jejuamos, a concentração e a memória se debilitam, mas, mesmo assim, na paz destes suaves crepúsculos, debaixo da sombra da misteriosa La Concha, a montanha que permite o clima privilegiado de Marbella e a beleza de seus jardins, escrevi sempre com mais facilidade do que em qualquer outro lugar.
Perder os quilos que nos incomodam é uma das boas consequências do jejum, mas de jeito nenhum a mais importante. A principal, acho, é a sensação de limpeza e a equanimidade que costuma alcançar quem priva seu corpo de alimento e deste modo o induz a se alimentar daquilo que sobra. Para que isso ocorra, não basta apenas o jejum; é preciso uma intensa atividade física que estimule aquele processo. Aqui há exercícios para todos os gostos, pilates, aeróbicos, montanhismo, algumas variedades de yoga. Se eu tiver que escolher apenas uma entre essas várias atividades, fico com o Qi Gong.
Não o estudei e, para dizer a verdade, não tenho muito interesse em averiguar sua tradição e sua filosofia, pois tenho medo de que, se me aventurar a rastrear esse aspecto teórico do Qi Gong, vou me encontrar com uma dessas retóricas pegajosas, meio tontas e pseudorreligiosas com que se costuma dignificar as artes marciais. Para mim, basta saber que é uma prática chinesa milenar, que em algum momento remoto se separou do tronco comum do Tai Chi e que, além de ser exatamente o oposto de uma “arte marcial”, de algum modo difícil de explicar, mas evidente para quem treina todos os dias, tem a ver intimamente com o sossego individual e, como projeção máxima, com a civilização e a paz.



Não conheço melhor remédio para o mau humor ou a desmoralização

É preciso ter muita paciência e confiança a princípio para deixar-se seduzir por esses movimentos tão lentos e espaçados que, para o novato, não parecem, no começo, mais que uma forma diferente da respiração à qual estamos acostumados. Minha mulher, por exemplo, a impaciência e o dinamismo encarnados, ficava tão entediada nas sessões que o trocou por outros esportes mais belicosos. Mas essa infinita lentidão com que movemos os braços e as pernas, o tronco e a cabeça, enquanto vamos passando de uma postura para outra do Qi Gong é precisamente uma das técnicas que essa arte usa para conseguir que o praticante vá eliminando essas tensões instintivas e efervescentes que são a raiz da violência humana. Trata-se, como em qualquer outro empenho criativo, de buscar a perfeição. Por isso, convém treinar na frente de um espelho. Ali, a imagem nos revela que, por mais esforço que coloquemos a fim de alcançar a harmonia, a elegância, o equilíbrio e a beleza de um movimento sem erros, sempre estamos abaixo do ideal. E também, para se aproximar desse ideal e tentar alcançá-lo, a concentração mental é tão importante quanto a destreza física. Essa é uma maneira muito concreta e ao alcance de qualquer um de descobrir um princípio fundamental: que a forma cria o conteúdo, não apenas no domínio das artes e das letras, mas também no dia a dia das pessoas e que tudo aquilo que é realizado com serenidade e com a perfeição coreográfica das posturas do Qi Gong constitui uma forma sutil de beleza.
Digam o que quiserem, as artes marciais não são inocentes: querem aproveitar o que existe de primitivo e bestial no ser humano para convertê-lo em uma máquina de matar, aperfeiçoar sua inata violência bruta e transformá-la em uma força destrutiva organizada e capaz de aniquilar o adversário, assim como, de um único golpe, o braço musculoso do mestre pode partir em duas uma pilha de tijolos. O Qi Gong, por outro lado, quer liberá-lo dessa agressividade congênita e ajudá-lo a descobrir que a vida poderia ser melhor se, ao mesmo tempo em que descarregamos a ferocidade que nos habita, cada uma de nossas ações for realizada com a delicadeza e a calma com que executamos os movimentos que formam sua prática.



As artes marciais não são inocentes querem aproveitar o que há de bestial no ser humano

Esses movimentos têm, todos, belas metáforas para descrevê-los. Afastar as mãos é “separar as águas”, empinar-se com os braços levantados e os pés bem assentados no chão seria “segurar a terra e o céu para que não se choquem”, passar as mãos de cima para baixo na frente do corpo, “banhar-se com a chuva”, girar sobre si mesmo seria transformar-se em “uma árvore tocada pelo vento”, ou, bem quietos, o organismo invadido por uma terna sensação morna, “sentir” a coluna vertebral, as batidas do coração, o fluxo do sangue. Graças a essa dança quieta, o ar que respiramos não apenas chega aos pulmões, mas também circula por todo nosso corpo, da cabeça aos pés.
Uma sessão completa de Qi Gong não dura mais do que meia hora e pode ser feita por pessoas de qualquer idade e condição física, mesmo as mais desgastadas. Ao terminar, sentimos uma extraordinária serenidade física e mental, como se o maltratado corpo nos agradecesse ter-lhe dedicado, nesse breve espaço de tempo, tanta atenção, tanto carinho respeitoso. Não conheço melhor remédio para o mau humor ou a desmoralização, os nervos exaustos ou os acessos de fúria, esses estados de ânimo nos quais a vida parece não ter sentido nem justificativa. Curiosamente, de uma sessão de Qi Gong tampouco saímos exaltados e dançando de alegria, mas tranquilos, com a melhor disposição, mais equilibrados para enfrentar o que vier e, também, mais conscientes de que a vida, apesar do que há de incompreensível e doloroso nela, é a mais linda aventura.
Esse é, no final, o caminho da paz e da civilização: colocar um freio na besta sem piedade, ávida de desejos - alguns elevados e outros sanguinários, como explicaram Freud e Bataille -, que também arrastamos dentro de nós e que, quando escapa das grades em que é mantida pela civilização e a cultura, provoca os cataclismos que marcam o acontecer humano.
Meu primeiro professor de Qi Gong foi um médico cubano que o tinha aprendido na China e que passava todas suas férias ali, aperfeiçoando sua técnica. A segunda é Jeannete, uma jovem alemã, tão graciosa e flexível que, durante as sessões, parece, em meio a giros e evoluções, sempre a ponto de levitar e desaparecer. Acompanha as práticas com uma música chinesa discreta, lânguida e repetitiva, e sua voz vai, mais que ordenando, persuadindo os alunos a se abandonarem no absorvente ritual em prol da saúde, beleza e serenidade.
Conseguiu me convencer. A ponto de que me atrevo a sonhar que se os bilhões de bípedes deste planeta dedicassem meia hora a cada manhã ao Qi Gong talvez houvesse menos guerras, miséria e sofrimento, e comunidades mais sensíveis à razão que à paixão que - não é mais impossível - poderia terminar despovoando esta nossa terra.