Julio Cortázar |
Cortázar forasteiro
As chaves da obra do autor de 'O Jogo da Amarelinha' e um roteiro para revisar seu universo
Desconhecido íntimo
Por seu impacto iniciático, costuma-se repetir que Cortázar é um descobrimento da adolescência. Essa afirmação, que contém uma dose de injustiça, omite no mínimo outra realidade: há, sobretudo, uma maneira adolescente de ler e recordar Cortázar. O que, definitivamente, não é culpa dele.
Sua proximidade do vínculo entre escrita e vida, herdada do romantismo, mas também das vanguardas, converte-o no tipo de autor que provoca uma imaginária relação pessoal com seus leitores. Para o bem e para o mal, Cortázar é contagioso. Por isso, aqueles que fingem desprezá-lo estão, na verdade, defendendo-se dele.
Duas forças complementares o mantêm em um estranho equilíbrio emocional. Uma força centrífuga, o humor, que lhe permite distanciar-se de si mesmo; e outra centrípeta, a ternura, que provoca adesão íntima. Seria esnobismo subestimá-las.
Outras mecânicas
Os contos fantásticos de Cortázar foram isolados em um cânone restritivo que tende a trair a variedade genuína de sua poética. As obras perfeitas (um dos epítetos mais recorrentes em sua prosa) ao estilo de Continuidade dos Parques, escritas durante os anos cinquenta e sessenta, eclipsaram uma extraordinária periferia que, contradizendo a opinião oficial, inclui sua obra tardia. Apesar dos superexplorados artifícios de inversão, como Axolotes, muitos de seus contos memoráveis (A Autoestrada do Sul, Casa Tomada) não condescendem ao malabarismo estrutural, nem terminam em surpresa. Em outras palavras, os contos de Cortázar, em sua maioria, operam à margem da simplificadora equação com que se costuma identificar sua narrativa breve, perseguindo em vez disso o que ele alguma vez denominou “mecânicas não investigáveis”.
Um exemplo dessa periferia é Queremos Tanto a Glenda, do livro homônimo, legível como parábola da reescrita, mas também da censura autoritária. Trata-se de um excelente conto político, sem carga panfletária. E principalmente Diário para um Conto, que encerra seu último livro, Fora de Hora. Nesse texto final, e entretanto fundacional, Cortázar declara sua intenção de escrever “tudo o que não é realmente o conto”, os arredores do narrável: o contorno de um gênero. Talvez por isso ele repita a frase “não tem nada a ver”, como um mantra digressivo. Para o êxtase do hermeneuta universitário, nesse conto é citado e traduzido, talvez pela primeira vez em uma obra de ficção latino-americana, um fragmento de Jacques Derrida.
Experiência autoficcional que se antecipa a atitudes literárias hoje percebidas como pós-cortazarianas, Diário para um Conto apresenta uma magistral reflexão sobre a história do estilo, sobre como o tempo afeta as formas de contar. O narrador cita várias vezes Adolfo Bioy Casares (cujo centenário, embora quase ninguém pareça ter percebido, também se celebra neste ano) como alguém capaz de descrever o personagem “como eu seria incapaz de fazer”. Além de uma homenagem, trata-se do estabelecimento de uma fronteira: o terreno em que Cortázar está se aventurando viola muitos códigos geracionais e estéticos. Essa última grande obra, conto e anticonto, decreta a velhice de uma tradição que ele mesmo havia levado ao ápice.
Amores duais
Horacio Quiroga esboçou uma divisão de sua própria narrativa em contos de efeito e contos a socos. Por mais anacronicamente viril que soe hoje essa nomenclatura (quase tanto quanto a lamentável distinção, em O Jogo da Amarelinha, entre leitores macho e fêmea), o matiz era pertinente: os textos de estrutura clássica frente aos que saem sem bússola em busca de um impacto visceral. De maneira análoga, seria factível agrupar os contos de Cortázar em função de dois conceitos mencionados pelo autor: aqueles com a milimétrica vocação de convergir em um golpe final, em um nocaute; e aqueles com preferência pela improvisação a partir de um tema apresentado, pelo efeito. Entre estes últimos poderíamos incluir epítomes como Carta a uma Senhorita em Paris, O Perseguidor, Histórias de Cronópios e de Famas, e títulos muito menos analisados, como Um Tal Lucas.
Os personagens femininos de Cortázar também não escapam desse tipo de amor dual. Por um lado, pululam diversas magas e figuras mais ou menos contagiadas pela nouvelle vague. Penso na Alana de Orientação dos Gatos, cruelmente elogiada como “uma maravilhosa estátua mutilada”, cujos encantos parecem transcorrer “sem ela saber”, graças a seu exegeta becqueriano. Por outro lado, sobressaem, por sua capacidade de contradição, retratos mais complexos de personagens femininos tradicionais. Isso ocorre com a mãe de A Saúde dos Doentes e a prostituta de Diário para um Conto, cuja foto aparece como inquietante (e talvez irônico?) marcador de página de um romance de Juan Carlos Onetti.
O tom e o túnel
Sempre me intrigou o conflito entre as imagens populares de Cortázar e Borges e seus respectivos tons como ensaístas. Borges costuma ser considerado (principalmente por quem não o leu) um clássico de sisuda seriedade. Mas sua escrita, particularmente a ensaística, está repleta de provocações, ironias risonhas e piadas hilariantes. Cortázar é considerado um autor lúdico, essencialmente ameno. Seus ensaios, porém, mantêm uma surpreendente correção professoral.
Esse é o caso de Teoria do Túnel, cujo árduo empenho em transcender a razão positivista e pensar historicamente o surrealismo acaba sendo curioso, se considerarmos que ditos objetivos são prazerosamente alcançados nos relatos de Bestiário, escritos ao mesmo tempo. Quando Cortázar afirma que a narrativa de ideias não existe, já que “as ideias são elementos científicos que se incorporam a uma narração cujo motor é sempre de ordem sentimental”, e que é preciso “fazer a linguagem para cada situação”, não dá para evitar pensar que frequentemente seus contos confirmam o que seus ensaios desdizem.
Uma observação parecida pode ser feita a respeito de Imagem de John Keats, uma minuciosa investigação sobre o maior poeta romântico de língua inglesa, que teria deixado o anglófilo Borges com vontade de diversão. Embora nesse ensaio haja momentos aforísticos capazes de sintetizar o próprio Funes: “Toda folha é uma lenta e minuciosa criação da árvore”. De maior vivacidade, talvez pela urgência de seu pulso jornalístico, resultam os textos compilados no livro Argentina: Años de Alambradas Culturales, livro em que Cortázar trabalhou pouco antes de morrer e de leitura fundamental para os leitores interessados em suas ideias políticas, mais matizadas e dialéticas do que às vezes se quer difundir.
‘Traduttore trovatore’
Um dos aspectos mais significativos e menos estudados de Cortázar é seu trabalho como tradutor. Não só porque o retrata como leitor e viajante, mas também porque ajuda a definir sua relação forasteira com a própria língua materna. O Cortázar que traduz Poe, Yourcenar ou Defoe é esteticamente o mesmo que luta com hipnótica dificuldade por pronunciar a letra erre, que cambaleia em O Jogo da Amarelinha ao reproduzir sua longínqua fala portenha ou que desconstrói o gênero do romance (e a certeza do idioma autoral) em 62 / Modelo para Armar.
Ele deixou escrito em francês o poeta equatoriano Alfredo Gangotena, recompensado com uma rima intraduzível: “J’apprends la grammaire / de ma pensée solitaire”. Em suas incursões como poeta menor, Cortázar ganhou a ambição linguística dos prosistas maiores. Alguém poderá pensar que algo semelhante ocorre com Roberto Bolaño. Mas a poesia de Bolaño transcorre sempre em diálogo com sua narrativa, como parte de um mesmo projeto. Se nele ou em Borges seu relegado corpus poético resulta totalmente reconhecível ao lado de suas grandes obras, no caso de Cortázar os poemas foram como um aprendizado, o testemunho inquieto de um narrador distinto. Em uma carta de 1968, incluída no fascinante livro Cartas a los Jonquières, ele anexa para seu amigo Eduardo um soneto eneassílabo com o seguinte comentário: “É totalmente o contrário do que penso e faço em prosa, e por isso é muito útil como polarização de forças”.
É precisamente em “Los Amigos”, incluído em Preludios y Sonetos, que encontramos um verso capaz de definir essa sensação de proximidade com que tantos leitores estão celebrando os cem anos do nascimento de Cortázar, que serão completados na terça-feira: “Os mortos falam mais, mas ao ouvido”. Muitos gritaram mais que Cortázar. Poucos souberam, como ele, levantar uma voz.
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