Aurora Bernardini
Finnegans Wake, que se autodefine como chaosmos e Microchaosmos. constitui o mais aterrador documento de instabilidade/formal e ambiguidade semântica de que já se tenha tido notícia. Joyce começou-o em 1923, 17 anos antes de publicá-lo definitivamente. (Há redações sucessivas).
O livro é a contínua poética de si mesmo, de modo que não cabe procurar textos de poéticas fora dele. Joyce conta à mulher que se tratará de Tim Finnegan, personagem de uma balada de vaudeville, que cai de uma escada de mão e é dado por morto.
Há um velório para ele com comida e bebida, e um dos presentes verte whisky sobre o cadáver. De repente Tim levanta-se e se une aos presentes. Daí o título: Finnegans Wake (o serão dos Finnegans, ou a vigília dos Finnegans). Ou seja, os protagonistas da história são muitos, embora o personagem emblemático seja Finn Mae Cool – um mítico herói irlandês que viveu 283 anos, no III século dC. Segundo Joyce, o livro deveria ter sido o sonho desse Finn, adormecido ao longo do rio Liffey e de forma onírica teria se desenvolvido toda a História da Irlanda e de toda a humanidade. Desta vez, a reencarnação atual do arquétipo de Finn, (Thor, Cristo, Buda) deveria ter sido um taberneiro de um subúrbio de Dublin: H.C. Herwicker, ou H.C.E. (Here comes everydody), com sua mulher, Anna Livia Plurabelle, que seria a encarnação do fluxo do rio Liffey, e com seus filhos: Shen, o “penman” e Shaun – o “postman”.
Esses arquétipos, porém, mudam-se em avatares contínuos, ao longo do livro. H.C.E peca por voyeurismo consumado quando desencadeia uma espécie de processo, no qual comparecem 4 anãos (4 evangelistas, mas também os 4 mestres da História Irlandesa (século XVII) e, no processo, aparecem também várias testemunhas, uma carta difícil de ser interpretada de Anna Livia – na verdade escrita por Shen e trazida por Shaun e encontrada por uma galinha que ciscava no lixo. Tudo se passa à noite e, com a chegada do novo dia termina o sonho e há uma espécie de ressureição de tudo, enquanto a narrativa termina com a palavra do começo.
Segundo Joyce é a construção de um moh jung puzzle (cf. carta de Joyce a Harriet Shaw Weaver, em 2 de outubro de 1923):
“Cheguei ao limite do idioma inglês. Pus a língua para dormir. Durante a noite, não poderia usar as palavras em seus nexos diários.” Esta é a introdução à leitura que o autor fornece. A lógica é a do sonho não apenas para os fatos, mas também para as palavras. Cada forma se multiplica e se prolonga, as visões passam do trivial ao apocalíptico, o cérebro usa as raízes dos vocábulos para criar outros, capazes de nomear seus fantasmas, suas alegorias, suas ilusões. (Helmann, J. J. p. 55a)
A poética dos ciclos de Vico
Se Ulisses era um exemplo de equilíbrio paradoxal entre as formas de um mundo recusado e a substância desordenada do novo, Finnegans Wake tentará ser uma representação do caos e da multiplicidade no interior dos quais Joyce irá procurar módulos de ordem mais adequados. A experiência cultural que apertou o gatilho dessa decisão foi a leitura de Vico, que – conforme foi visto – estimulava sua imaginação e lhe dava novas aberturas. (Numa carta de 1º de 1927 a Harriet Shaw Weaver, ela associa o nome de Vico ao de Einstein). O que chama sua atenção em Vico é a exigência de uma ordem já não de fora dos eventos, mas no interior deles: a visão de uma história com a alternância de cursos e recursos.
O que ele faz com essa teoria? Ele a associa, com total desenvoltura, às concepções orientais da circularidade do todo, à noção esotérica do “eterno retorno”, o repropor dos arquétipos originários.
Vico serve-lhe, inclusive, para dar um esquema geral de desenvolvimento a suas persuasões vindas de Giordano Bruno e a fazer mover a dança dos opostos no interior de um quadro dinâmico. E – principalmente – Vico serve-lhe para mostrar-lhe a importância do mito e da linguagem, a visão de uma sociedade primitiva que – através da linguagem , através de figuras –, cria suas próprias imagens do mundo. O trovão da Nova Ciência já aparece na primeira página do Finnegans, reduzido a linguagem, linguagem que ainda não passou pelo raciocínio, todo ele feito de onomatopeias. O trovão de Vico coincide com o barulho da queda de Finnegan e dessa queda parte a tentativa de dar nome ao caos e ao desconhecido, tal como acontecera aos primeiros gigantes.
De Vico também colheu a exigência de uma “língua mental comum a todas as nações”, tal como o russo Velímir Khlébnikov, mas realizada no poliglotismo do Wake: o valor da ciência da linguagem na qual se encontra a origem das coisas, “segundo a ordem das ideias, ordem essa da qual deve proceder a história das línguas”, daí a interpretação filológica do mito e a descoberta do vocabulário mental comum. E, ainda, o estudo das antigas tradições como repertório de verdades milenares e o gosto por uma coleção de “Grandes casos da antiguidade”.
Ainda de Vico poderá ter vindo a justificação de uma lógica poética primordial em que não se fala segundo a natureza das coisas, mas usa-se “uma fala fantástica para substâncias animadas”; principalmente via metáfora.
E o desejo atribuído por Vico ao homem que “deseja alguma coisa superior que o salve”. Eis que Joyce desenha uma imagem do ciclo terreno que se torna caminho para a salvação através da aceitação da circularidade em que ele se desenvolve infinitamente.
Ao mesmo tempo, assimila a criação natural à criação cultural e reconhece o mundo apenas na dialética dos tropos e das metáforas e só através deles confere às “coisas insensatas” senso e paixão.
A poética do trocadilho
Depois que o homem tornou sensatas essas coisas sem sentido (sem experiência) ele procura amalgamá-las com os mitos, os fragmentos, as tradições, as palavras, no mundo do sonho.
Nesse mundo tenta Joyce encontrar uma nova ordem do universo.
Após a queda inicial, tudo escorre num fluxo primordial e confuso, cada coisa é o seu oposto, cada coisa se liga a qualquer outra, algo de semelhante já ocorreu (recurso), qualquer relação é possível, tudo pode ser permitido e cada evento é simultâneo: passado, presente e futuro coincidem. Só que, como cada coisa só existe se é nomeada, todo esse jogo de metamorfoses só poderá acontecer nas palavras e a mola desse processo será o trocadilho. (pun)
Em cada palavra se realiza aquilo que Joyce quer realizar num nível mais amplo; e a obra inteira é um discurso sobre Finnegans Wake.
Os nomes de Adão e Eva que surgem no comecinho do livro, seguem um conceito de polaridades que atravessa o livro através da dialética das “coisas” que aparecem:
Shen/Shaun; Mult/Jute; Bwtt/Taff; Wellington/Napoleão; etc. (amor/ódio; guerra/paz; dissonância/harmonia; introversão/extroversão etc.)
Cada uma dessas parelhas estabelece uma chave interpretativa, mas cada escolha de chave não exclui outra, mas permite vibrações, “harmônicas” das várias co-presenças simbólicas. Esta situação de indeterminação consubstancia o universo joyceano, tanto como crise, quanto como vitória sobre a crise: perda dos centros tradicionais e legalidade de uma nova visão.
Finnegans Wake apoia-se sobre o fato de não dizer nada de novo, mas de desenvolver-se como citação ininterrupta de toda a cultura passada, constituir-se numa imagem de relações possíveis entre os eventos do universo.
Há duas orientações contraditórias no livro, já visíveis no primeiro período: a solução cósmico-metafísica e a erudita-alexandrina; o renascimento e a dissolução, ou melhor: o renascimento através da aceitação da dissolução transposta em chaves linguísticas.
O aparato linguístico torna-se imagem das relações possíveis entre os eventos do universo, substituto verbal das conexões que a ciência usa operativamente para explicar os eventos.
A poética da obra aberta
A ordem tornou-se presença de várias ordens, sendo que cada ordem depende de nossa escolha. Finnegans Wake é uma obra aberta: doublecrossing twofold truths e devising tingling tailwords. A definição mais completa da obra é dada – sem dúvida – na tal carta ilegível encontrada junto às galinhas. Ilegível por seus muitos sentidos de leitura, ilegível como o livro, como o universo do qual o livro é imagem. Aqui é o tempo, graças ao qual se estabelecem releituras sucessivas que condicionam mudanças na fisionomia da obra, um tempo que intervém para mudar a obra um tempo de evolução.
A “coincidência oppositorum”: Niccoló Cusano e Giordano Bruno
Joyce não estabelece nenhuma hierarquia de valores: o único valor é a oposição.
Querendo dar estatuto filosófico à poética de Finnegans Wake é oportuno recorrer às definições da realidade cósmica dadas por Niccoló Cusano e Giordano Bruno. F.W. é a obra em que a coincidentia oppositorum se assimila à identidade dos contrários: “…by the coincidance of their contraries reamalgamerge in that identity of undiscernibles…”.
Para Bruno, que Joyce conhecia desde os dezesseis anos, existe um “sentido interno” em cada corpo e, por isso, cada ser finito e limitado participa da vida do todo sem perder sua individualidade, atraído e rechaçado por outros corpos. Diz Bruno:
“Tu descobrirás dentro de ti estar realizando progresso quando conseguirás chegar a uma unidade distinta, partindo de uma pluralidade confusa… partindo de partes múltiplas e sem forma, chegar a adaptar a si o todo que teve forma e unidade.” (Libri physicorum Aristotelis explanati, Opera Latina III.)
Da multiplicação da pluralidade, à alma unitária que rege o todo. F.W. consegue realizar isso e tornar-se a poética de si mesmo: não se pode chegar a esclarecer de um termo a sua relação com outros sem uma explicação possível do todo e – todavia – cada palavra esclarece o todo, numa das direções possíveis.
É aqui que entra a doutrina cusana da complicatio: “em cada coisa se atua o todo e o todo está em cada coisa. Cada coisa aparece, enfim, como uma perspectiva sobre o universo e como uma contração do universo; mas, justamente o realizar-se da contração faz com que não possam existir dois entes iguais, cada um conservando sua singularidade irredutível que lhe permite refletir o cosmos em medida inédita e individual.” (E. Santinello – Il pensiero de N. Cusano nella sua prospettiva estetica, Padova, Liviana, 1958).
Joyce cita Cusano várias vezes: com ele se esboça uma pluridimensionalidade do real, inúmeras perspectivas possíveis, uma Forma Universal que possa ser vista por diferentes ângulos. Wake é um conjunto de inúmeros mundos, unido ao axioma da natureza metamórfica de cada palavra, de cada étimo, pronto a se tornar imediatamente “outro”.
Epifania e ciência
Em F.W. é possível reconhecer uma crise das noções de tempo, identidade e conexão que leva a pensar a certas hipóteses cosmológicas que vão além das perspectivas da teoria da relatividade.
Pensemos numa cadeia causal onde de A nasce B e se estabelece uma sucessão segundo uma ordem temporal. Chama-se “CADEIA CAUSAL ABERTA”, ou seja, ao percorrê-la não somos nunca obrigados a voltar ao ponto de partida. Ou seja: os eventos obedecem a uma ORDEM FECHADA, em que as conexões procedem segundo uma ordem dada que não se pode alterar. Isso é o que a Ciência estabelece. Mas, caso se estabeleça uma CADEIA CAUSAL FECHADA (ou seja, uma cadeia causal em que um evento pode tornar-se a causa de outros), não é mais possível fixar nenhuma ordem à sequência temporal, e o princípio de identidade não tem mais valor.
No romance tradicional tínhamos CADEIAS CAUSAIS ABERTAS. O que temos em Finnegans Wake?
Dependendo de como um termo é entendido, muda totalmente a situação que se esboçara nas diferentes páginas e muda e é deformada a identidade de uma aparição remota. O livro começa naquela maneira porque termina naquela maneira. A frase final condiciona a inicial. No livro a copresença de personalidades históricas atua-se pelo fato que existem precisas condições estruturais e semânticas através das quais é negada a ordem causal à qual estamos acostumados e são instauradas cadeias semânticas fechadas, em virtude das quais a obra total aparece como “aberta”: não há nenhum nexo referencial preciso que obrigue o leitor a respeitar nenhuma ordem causal.
A experiência emotiva e a linguagem
As coisas diferentes que os críticos encontraram em F.W. estão lá, mas não podem ser reduzidas a uma unidade sistemática. Esse material todo sugere uma condição comum à cultura contemporânea: a sensação de estar diante de uma imagem do mundo que não é mais a de antes e que está mudando diante de nossos olhos, colocando em desacordo inteligência e imaginação, os sentidos, a razão as formas de fantasia e as fórmulas da lógica. Nesse sentido, Finnegans Wake desempenha o papel de mediador e adverte que as fórmulas de uma nova lógica podem encontrar uma figura correspondente. Entretanto, como nem sempre uma figura pode traduzir a forma abstrata de uma proposição, temos – às vezes – figuras ambíguas que propõem do algo que tentam expressar, seu EQUIVALENTE EMOTIVO, uma espécie de persuasão difusa que acompanha o que se aprende. A arte, em casos como o de F.W., produz uma forma, uma estrutura concreta. Uma vez que é captada em toda sua complexidade, esta forma sugere a existência de uma estrutura análoga que até agora pensávamos por fórmulas, mas não imaginávamos de modo icônico. No momento, porém, em que se entrevê uma possível figura dessas realidades, inicia-se um processo de participação emotiva.
A experiência emotiva encontra uma espécie de recipiente na estrutura linguística. Através da obra se vê uma nova forma do mundo, mas a obra não pretende contar esta forma: ela é esta forma. É como se Joyce dissesse: “A forma do universo mudou, mas nem vocês nem eu a compreendemos. Só percebem que não dá mais para se mover de acordo com os critérios milenares consagrados por toda uma cultura:“ muito bem, eu dou a vocês um ERSATZ do mundo. … um whorled without aimed, um mundo sem fim e um torvelinho (whirl) sem finalidade; mas – pelo menos – é coisa nossa, é estabelecida na ordem humana da linguagem, não na ordem incompreensível dos eventos cósmicos, e, no âmbito da linguagem, podemos enfrentá-la e compreendê-la”. Qual é a relação entre esse mundo e o mundo real? Mis uma vez, quase irreconhecível, pode nos socorrer a poética das epifanias: mais uma vez o poeta recortou de um contexto de eventos aquilo que lhe parecia mais significativo (o universo das relações linguísticas) e nos ofereceu aquela que ele achava ser a essência compreensível, a quidditas da experiência real. Finnegans Wake é a grande epifania da estrutura cósmica resolvida na linguagem.
“Diante desse mundo – diz Hermann Broch, citado por Eco, em James Joyce und die Gegenwart – a filosofia retirou-se, por vários caminhos, à Lógica pura, e se viu obrigada a excluir de suas atribuições os reinos da Ética e da Metafísica. Sua universalidade teve um fim, teve que afastar as suas questões mais urgentes do seu espaço lógico, ou – como diz Wittgenstein – remetê-las à mística. É aqui o ponto em que começa a missão do poético. Missão de conhecer a totalidade, colocando-se acima de qualquer condicionamento empírico ou social, missão de atingir um conhecimento para o qual é indiferente se o homem vive na época do feudalismo, da burguesia ou do proletariado: esse é o dever da literatura diante do caráter absoluto do conhecimento, simplesmente.”
A medievalidade
O que move James Joyce quando ele decide retirar-se do mundo das coisas para o mundo da página e nela reconstruir a forma do mundo?
O discurso não se move apenas nos três níveis letra-livro-mundo mas possui igualmente um referente erudito-arqueológico e constitui uma espécie de análise minuciosa do Livro de Kells, o famoso manuscrito irlandês do século VII e VIII de nossa era, e exemplo da impressionante arte irlandesa medieval que continua nos chocando pela fantasia labiríntica e invenção paradoxal que constituem as primeiras manifestações daquele gênios irlandês cristão e culto que, contra o paganismo que reconquistou a Inglaterra, contra a barbárie que deprime as Gálias, tenta a primeira revanche para fazer com que a cultura e a arte voltem a circular. (Veja-se a respeito do florescimento da civilização irlandesa na Alta Idade Média livros como o de EDGARD DE BRUYNE Études d’Esthétique Mediévale, 1946; ou de ÉTIENNE GILSON La philosophie au Moyen Age, 1952 ; ou o de MAIRE E LIAN DE PAOR, Antica Irlanda Cristiana, 1959; etc.)
O trabalho dos monges e das cortes locais irlandeses desenvolveu-se segundo os modos de uma composição erudita e fantástica, tresloucada e lúcida, civil e bárbara, numa atividade contínua de decomposição e recomposição da linguagem falada e das formas figuradas. Esses miniaturistas recriavam, em silencio e com astúcia, os emblemas de sua raça. “Não há mais limite entre animal, espiral e entrelac: tudo se confunde com tudo e, todavia, emergem do fundo figuras ou acenos de figuras, e cada página conta, mesmo assim, uma história inconcebível, irreal, abstrata, fabulosa, feita de personagens proteicos dos quais se perde continuamente a identidade: é este o meanderthale sobre cujo modelo Joyce construiu seu livro. E fez isso porque o medievo era e é, ainda e sempre, para ele, uma vocação e um destino. Finnegans Wake pulula de referências aos Padres da Igreja e aos escolásticos; o capítulo de Anna Livia é feito sobre o modelo do mistério medieval e, a propósito do Livro de Kells, Joyce dizia que em qualquer lugar aonde fosse, ele levava-o consigo e dele estudava a técnica por horas e horas: “… vocês podem comparar muita de minha obra a essas miniaturas intrincadas…”
Leitura do Finnegans Wake
Uma vez que Joyce não pode contar com ninguém que saiba traduzir suas alusões e saiba improvisar sobre seus acordes (a parte musical é importantíssima na obra de Joyce), consequentemente o leitor está livre de qualquer responsabilidade e pode preparar-se a desfrutar dos prazeres superficiais que a obra lhe oferece, os fragmentos compreensíveis segundo as congenialidades pessoais de cada um, as alusões que o tocam, o jogo que ele mesmo sabe jogar, individualmente, no interior do grande jogo.
Mas a redução do mundo à linguagem, o experimento no nível dos nomina, a luta das oposições culturais, o que pode realmente nos dizer, hoje, no mundo contemporâneo?
Para passar do rigor definitório de Tomás de Aquino ou da escolástica tardia e chegar às definições de Galileu, igualmente lúcidas e rigorosas, mas aplicadas sobre o material mutável da observação experimental e portanto aberta a revisões e complementações – para atuar esses dois saltos de inteligência — , a cultura moderna teve que atravessar a floresta mística em que vaguearam entre símbolos e telegramas, Lullo e Bruno, Pico e Ficino, Hermetes Trismegisto, os decifradores do Zahar e os alquimistas combalidos entre experimentalismo e magia. Eram os primórdios da consciência moderna de um universo tal como será visto pela nova ciência, que substituirá a ideia do mistério aludido pelas figuras, do desconhecido a ser esclarecido pela pesquisa e pela definição matemática.
Nesse intrincado momento histórico os modernos descobrem, graças à imaginação, antes do que à formulação matemática, que o universo é algo de móvel e de mutante, onde a contradição e a oposição não representam um mal a ser reduzido através de fórmulas abstratas da ordem, mas representam a mola de uma vida que nos demanda explicações sempre novas, que se conformam às formas mutáveis que tudo vai assumindo à luz das indagações.
É nesse sentido que Finnegans Wake se apresenta como o livro de uma época de transição, onde a ciência e a evolução das relações sociais estão propondo ao homem contemporâneo uma visão do mundo velho, enchendo-a de todas aquelas explicações que antigamente se excluíam umas às outras e que agora adverte-se que poderiam coexistir numa oposição da qual algo novo terá que nascer.
F.W. tem a orgulhosa pretensão de dobrar a linguagem a explicar “tudo” e por isso a recheia de termos e de referentes que podem fazer coexistir qualquer afirmação feita sobre o mundo, unificando todas elas – graças ao tecido conectivo de uma linguagem que – por violência etimológica – liga entre si os referentes mais disparatados.
Diante da crise do mundo contemporâneo, a possibilidade de uma ordem que Joyce vislumbra, é algo como “assumir em bloco a sabedoria da humanidade e atribuir-lhe uma ordem nova no âmbito da linguagem: organizar o mundo segundo regras que não são válidas no que se refere às coisas, mas apenas nas palavras que expressam essas coisas.
Finnegans Wake quer ser a fundação, no transcendental da linguagem, das possibilidades formais através das quais definir nosso universo. Tal fundação foi possível, para Joyce, apenas no retrair-se das coisas à linguagem, ou seja, na escolha de um âmbito operativo no qual formular um modelo da realidade.
*Professora da USP.