Animus/Anima
“Esse outro estranho que me habita...”
(II)
A fim de que o leitor possa se situar adequadamente, sugiro que leia a parte introdutória do meu último artigo: “Animus/Anima: esse outro estranho que me habita... (1),” visto que este é uma continuação daquele.
Lembrando que o objeto do presente artigo trata da relação do homem com sua anima, retomaremos a seguir as palavras de Jung sobre a anima:
“Cada homem carrega dentro de si a imagem eterna da mulher, não a imagem desta ou daquela mulher em particular, mas uma imagem definitiva do feminino. Esta imagem é fundamentalmente inconsciente, um fator hereditário de origem primordial incrustado no sistema orgânico vital do homem, um imprint de todas as experiências ancestrais do ser feminino, um depósito de todas as impressões deixadas pela mulher - em suma, um sistema herdado de adaptação psíquica.” (JUNG, 1981).
Em sua manifestação individual, o caráter da anima, via de regra adota a forma da mãe, a qual corresponde à primeira experiência que o homem tem da mulher com todas as sensações, emoções e sentimentos que isto envolve, permanecendo num nível pré-consciente. FRANZ (1995) afirma que a mãe marca não só os aspectos femininos do filho, como também a imagem que ele cria da mulher - suas aspirações, exigências e temores face às mulheres. Essa imagem, vaga e mítica, que oscila entre a deusa e a prostituta, evolui ao contato com as mulheres reais que encontra ou ama.
As manifestações mais frequentes da anima, todavia, tomam a forma de fantasias eróticas, nutridas através de filmes, romances e espetáculos, geralmente de caráter sensual. Todos esses aspectos da anima podem ser projetados, visto que são inconscientes, de modo que apareçam ante o homem como as qualidades de alguma mulher determinada. O confronto com a anima favorece o desenvolvimento psicológico, pois traz consigo a possibilidade de integrar aspectos inconscientes e obscuros da personalidade à vida consciente (JUNG et al., 1969).
Referente à pesquisa prática realizada, para os fins deste artigo serão apresentados dois casos de homens - Arquimedes e Diógenes[1] - que se submeteram à aplicação da técnica de imaginação ativa acompanhada.
Para Arquimedes, a figura feminina tomou a forma de uma “linda bailarina deslizando sozinha num palco de gelo”. Esta imagem parece ser uma expressão genuína de sua anima, servindo-lhe de guia interior - psicopompo [2] - em sua caminhada rumo ao self e ao processo de individuação.
A dança da bailarina não possuía uma finalidade artística, mas simplesmente a de sintonizar-se com os ritmos do universo, executando com perfeição o “balé da vida”, observou Arquimedes. A dança, segundo CIRLOT (1984), é a imagem corporificada de um processo, devir ou transcurso. Assim aparece com este significado na doutrina hindu a dança de Shiva em seu papel de Natarâjâ - rei da dança cósmica, união do espaço e do tempo na evolução, o que se coaduna perfeitamente ao balé da vida a que Arquimedes se refere.
GONDA (1976) reitera o acima exposto ao afirmar que Shiva é o rei dos dançarinos, atores e musicistas, e como tal é ainda hoje venerado em diferentes partes da Índia. Dançando o devir da vida no universo e suas criaturas, o deus é também seu primordial e eterno propulsor. Qualquer que seja a origem de suas várias danças, elas são uma imagem extremamente clara de seu ser e sua função. Sua dança selvagem é tão graciosa, que uma famosa beleza é conhecida por possuí-lo, incorporando ao tom alegre e brincalhão de sua execução, o tremor e a agitação da serpente. Além disso, a dança é uma completa e inteligível parte do culto de deus, e serve para legitimá-lo no cumprimento de suas funções.
Arquimedes acrescenta que ao executar a sua dança, a bailarina sente-se em paz “como se estivesse no ventre de sua mãe”, isto é, tivesse reconectado sua ligação com a Terra-Mãe, a fonte primeva e arcaica de sua feminilidade. Segundo CHEVALIER & GHEERBRANT (1996), o ventre, símbolo da mãe, reflete particularmente uma necessidade de ternura e proteção; seu calor facilita todas as transformações, das quais é a sede por excelência, mas é preciso que tenha para cada um e a cada momento de sua evolução, o grau e a intensidade adequados. Neste caso, o grau e a intensidade para Arquimedes estão na suavidade e na leveza do bailado executado pela bailarina, que na condição de psicopompo, conhece todos os mistérios para iniciá-lo em sua feminilidade inconsciente e conduzi-lo ao self.
Arquimedes permanece observando; só ele pode ver a bailarina, o que sugere que o mesmo permanece oculto para a imagem ou não deseja ser visto. Segundo EMMA JUNG (1995), quando um conteúdo do inconsciente vem à superfície (no caso a anima de Arquimedes, personificada na imagem da bailarina), ele está tão pouco coordenado com o eu consciente que torna a mergulhar na primeira oportunidade. Que seja preciso tão pouco para que isto ocorra mostra como tais conteúdos são frágeis e voláteis, afirma a autora (daí o cuidado de nosso protagonista por não ser visto). Esta ideia é corroborada também pelo fato de Arquimedes ter associado logo em seguida a imagem da bailarina à figura de um anjo, por si mesma etérea, volátil e translúcida.
Na alquimia o anjo simboliza a sublimação, a ascensão de um princípio volátil (espiritual). Os anjos aparecem na iconografia artística desde a origem da cultura, no quarto milênio antes de Cristo, confundindo-se com as divindades aladas. A arte gótica expressou em numerosíssimas imagens prodigiosas o aspecto protetor e sublime do anjo, enquanto a românica acentuava melhor seu caráter supraterrenal (CIRLOT, 1984).
Outros ainda vêem nos anjos símbolos das funções divinas, símbolos das relações de Deus com as criaturas ou, ao contrário, símbolos de funções humanas sublimadas ou de aspirações insatisfeitas e impossíveis. De modo ainda mais amplo, o anjo simboliza a criatura na qual já surge realizada a transformação do visível em invisível (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996).
Na fantasia de Arquimedes, a bailarina continua dançando como se quisesse ser uma só com o cosmos; ela o faz indefinidamente sem interrupção, de forma a manifestar o aspecto da dança que encarna a energia eterna: o círculo de chamas que circunda o Shiva dançante da iconografia hindu. Sua dança a faz sentir-se “realizada”, isto é, tendo alcançado a unidade com o cosmos, vibra agora em consonância com ele, de forma que pode sentir o universo como sendo o próprio paraíso, tal como afirma Arquimedes.
Desta forma, a anima de Arquimedes, com sua dança, levou-o a aproximar-se da instância do numinoso, o que lhe possibilitou alcançar indiretamente as dimensões dos Jardins do Éden. Segundo CHEVALIER & GHEERBRANT (1996), o paraíso representa o desejo de superar de uma maneira natural a condição humana e de recuperar a condição divina. O retorno ao estado edênico é, com efeito, a obtenção de um estado central - o self - a partir do qual se pode fazer simbolicamente a ascensão espiritual ao longo do eixo terra-céu.
Quanto a Diógenes, a imagem da anima personificou-se na forma de uma flor, mais especificamente uma orquídea. Ele relata que a mesma é de cor arroxeada e está meio escondida na ponta de uma árvore, bem no alto. Há outras flores desta espécie em outras árvores, mas nesta ela é única, ressalta. Esta dificuldade de acesso e de visibilidade, assim como seu caráter singular confirmam a noção popular de que a orquídea se trata de uma flor rara e incomum, portanto valiosa (a anima de Diógenes).
Segundo Cirlot (1984), no simbolismo geral da flor pode se considerar dois aspectos: - a flor em sua essência; - a flor em sua forma. Por sua natureza, a flor é símbolo da fugacidade das coisas, da primavera e da beleza. Considerando-se a sua forma, corresponde a uma imagem do centro e, por conseguinte, uma imagem arquetípica da alma.
Jung (1987) assevera que a linguagem das flores revela uma relação de ordem simbólica que tem por meta realizar o processo de individuação. Segundo Chevalier & Gheerbrant (1996), de maneira geral a flor é símbolo do princípio passivo. O simbolismo tântrico taoísta da Flor de Ouro revela o alcance de um estado espiritual: a floração é o resultado de uma alquimia interior, da união da essência e do sopro, da água e do fogo; é também o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. No caso das lendas celtas, a flor parece ser um símbolo não de uma versatilidade que seria própria da mulher, mas da instabilidade essencial da criatura, voltada a uma perpétua evolução e, em especial, símbolo do caráter fugidio da beleza.
As orquídeas, especificamente, muito apreciadas e inigualáveis, são comumente conhecidas como flores exóticas, produto de estufas e de climas quentes, mas existem muitas espécies menores que crescem nos campos como flores silvestres. Todas elas têm manchas, que são sua marca peculiar de beleza. Como diferentes subespécies têm flores variadas de formatos curiosos, a orquídea foi chamada de língua-de-serpente, dedos-de-mortos, chifres-de-carneiro, além de ser associada à fêmea do ganso com sua ninhada, devido à maneira como as flores se agrupam em torno do talo (Pickles, 1992).
Na China antiga, as orquídeas eram associadas às festas da primavera, onde eram utilizadas para expulsão de influências perniciosas, sendo a mais ameaçadora, a esterilidade. A orquídea, como seu nome indica, é um símbolo de fecundação, sendo que também na China favorece a geração e é uma garantia de paternidade. A beleza da flor faz dela, entretanto, um símbolo de perfeição e de pureza espirituais (Chevalier & Gheerbrant, 1996).
Diógenes permanece embaixo da árvore admirando à distância a beleza da flor, como quem anseia o estado supraterrenal e sublime do Ser perfeito, mas que no momento, é inacessível para si. Ele cobiça para si a orquídea, como quem ousa possuir, num passe de mágica, atributos que se lhe manifestariam espontaneamente somente com o lapidar paciente do espírito através dos anos.
Num repente e sem pestanejar, Diógenes resolve subir na árvore a fim de tomar para si objeto tão valioso. Nosso protagonista faz isto sem dificuldade e colhe não só a flor, mas toda a planta, e a leva consigo. Desta forma, Diógenes precisou passar pela árvore, galgá-la, para enfim alcançar sua tão cobiçada flor. Referindo-se ao simbolismo da árvore, Chevalier & Gheerbrant (1996) reputam-na como símbolo da vida, em perpétua evolução e em ascensão ao céu, evocando todo o simbolismo da verticalidade. Por outro lado, serve também para simbolizar o aspecto cíclico da evolução cósmica: morte e regeneração. Sobretudo as frondosas evocam um ciclo, pois se despojam e tornam a se recobrir de folhas todos os anos. A árvore põe igualmente em comunicação os três níveis do cosmos: o subterrâneo, através de suas raízes sempre a explorar as profundezas onde se enterram; a superfície da terra, através de seu tronco e de seus galhos inferiores; as alturas, por meio de seus galhos superiores e de seu cimo atraídos pela luz do céu. Desta forma, pelo fato de suas raízes mergulharem no solo e de seus galhos se elevarem para o céu, a árvore é universalmente considerada como símbolo das relações que se estabelecem entre a terra e o céu. A árvore foi, pois, o instrumento ou o caminho de que se valeu Diógenes para ultrapassar as esferas ctonianas, que o mantinham prisioneiro às imperfeições e aos limites de sua condição humana, para desta forma ascender às alturas e colher então a preciosa flor, símbolo do que há de mais belo, exótico e perfeito no universo. Intuitivamente, Diógenes segue as pegadas do caminho de seu processo de individuação.
Já em sua casa, ele acondiciona a planta num vaso, e somente para seu deleite, dispensa-lhe todos os cuidados necessários, expondo-a à influência revitalizadora dos raios solares, regando-a com regularidade, e ocasionalmente expondo-a à ação regeneradora da chuva. Estando sempre atento às suas necessidades, Diógenes cuida para que a flor mais preciosa e bela, agora sob seu poder, mantenha-se sempre viçosa e bela. A orquídea parece ter se aclimatado bem à nova casa e ao vaso, diz ele.
Tendo-a somente para o regalo de seus olhos, Diógenes parece encantado contemplando a beleza da flor, pois a mesma parece-lhe muito distinta das demais orquídeas. Ele afirma que o que torna a orquídea tão especial é “seu modo de ser”, isto é, sua singularidade, sua individualidade. Enlevado e magnetizado, Diógenes começa então a tocá-la e a acariciá-la. A planta responde positivamente tornando-se mais bonita e atraente. Nesse ponto já se pode ver uma planta com sentimentos humanos, tornando possível engendrar-se uma relação de intimidade e de cumplicidade de um para com o outro.
Todos estes elementos corroboram que uma flor tão peculiar, pela qual Diógenes se sente impelido a viver todas essas peripécias, trata-se de uma expressão de sua anima. A orquídea permanece agora sua fonte de eterna inspiração e de reabastecimento de energias, um arauto, sempre a lembrá-lo do seu “propósito último”.
Nem todos os homens conseguem estabelecer contato com sua anima, tal como ocorreu com Arquimedes e Diógenes, assim como nem todas as mulheres conseguem ativar a ponte animus/anima. Todavia, quando isso acontece, sua ação é altamente terapêutica.
Neste caso, cada qual pode perguntar a si próprio: “Terei eu me conectado ao meu propósito último?”
Notas
[1] Os nomes dos participantes são fictícios a fim de preservar suas identidades.
[2] SAMUELS et al. (1988) refere-se ao psicopompo como a figura que guia a alma em ocasiões de iniciação e transição. A palavra também era utilizada por Jung para descrever a função da anima e do animus, isto é, conectar uma pessoa à percepção de seu “propósito último”, sua “decisiva vocação”, em termos psicológicos, atuando como um intermediário ligando o ego e o inconsciente (self).
Referências
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. - Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1996. 996 p.
CIRLOT, J.E. - Dicionário de símbolos. São Paulo, Editora Moraes, 1984. 614 p.
FRANZ, M.L. von - O feminino nos contos de fadas. Petrópolis, Editora Vozes, 1995.
GONDA, J. - Visnuism and sivaism: a comparison. London, The Athlone Press University of London, 1976.
JUNG, C.G. - Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. In: Obras completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis, Editora Vozes, 1987. vol. XVI, t. II, 220 p.
JUNG, C.G. - A prática da psicoterapia. In: Obras completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis, Editora Vozes, 1981, vol. XVI, t.I. 128 p.
JUNG, C.G.; VON FRANZ, M.L.; HENDERSON, J.L.; JACOBI, J.; JAFFÉ, A. - El hombre y sus simbolos. Madrid, Aguilar Ediciones, 1969.
JUNG, E. - Animus e Anima. São Paulo, Editora Cultrix, 1995. 112 p.
PICKLES, S. - A linguagem das flores. São Paulo, Editora Melhoramentos, 1992. 111 p.
SAMUELS, A.; SHORTER, B.; PLAUT, F. - Dicionário crítico de análise junguiana. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988. 236 p.
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