quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Alan Pauls / Sobre a areia

Garabato
La Bocana, Colombia, 2012
Foto de Triunfo Arciniegas

Alan Pauls
SOBRE A AREIA

Em ‘A vida descalço’, ensaio autobiográfico de 2006 que chega hoje às livrarias brasileiras, escritor argentino une experiências pessoais no litoral ao pensamento sobre a praia como espaço transparente, que nos convida a projetar imagens e conspira contra o erotismo 


A praia, para Alan Pauls, é vazia, não é erótica nem exatamente estimulante. Apesar disso, o escritor argentino não consegue imaginar suas férias longe dela. As férias são a própria praia, onde ele sonha e lê muito. Foi na praia de Villa Gesell, na Argentina, onde Pauls criança, doente e impossibilitado de sair ao sol, descobriu o prazer de ler. Foi na modesta livraria da vila que comprou os primeiros livros por conta própria, edições de Julio Cortázar com as quais começou a montar sua biblioteca, e nela permanecem, há 45 anos. Foi o Cine Atlantic, de Villa Gesell, que exibiu para o menino loiro de “rubores terríveis” a imagem de Ursula Andress saindo do mar, observada por Sean Connery-James Bond em “007 contra o satânico Dr. No”. E é na praia uruguaia de Cabo Polonio, onde não há luz elétrica e “nada para ver”, onde ele mais tem sonhos à noite. A cidade não lhe permite sonhar, porque ela já é sufocada demais por imagens. 


— Há três superfícies básicas na praia: a areia, o mar e o céu. E essas superfícies tendem a ser lisas, como três telas — diz Pauls, de um celular de Ilha Grande, onde passou duas semanas de férias, antes de chegar ao Rio esta semana. — A praia é um lugar onde projetamos imagens. Cabo Polonio, onde não há publicidade, televisores ou monitores tecnológicos de nenhum tipo, é um lugar particularmente projetivo. Você tem que produzir as imagens por si e projetá-las sobre a areia, sobre o mar ou sobre o céu. 

Dos 3 aos 17 anos, Pauls “veraneava” em Villa Gesell. Adulto, passou 13 férias seguidas em Cabo Polonio. Seu pensamento elaborado sobre a praia — o espaço de superfícies nas quais se projetam imagens —, porém, não existia até que sua editora em Buenos Aires, Sudamericana, decidiu lançar uma coleção sobre lugares. Ele, que imaginara discorrer sobre museus, bibliotecas ou estações de trem, aceitou um tema que até então lhe era pouco atraente e escreveu “A vida descalço”, ensaio autobiográfico que, publicado na Argentina em 2006, chega hoje às livrarias brasileiras em edição da Cosac Naify. Apesar de ser um ensaio, ele tem a prosa intimista dos romances de Pauls, mais conhecido pelo cultuado “O passado”, adaptado para o cinema por Hector Babenco, e pela trilogia sobre a Argentina dos anos 1970. 
— Queria um livro com registros, vozes e tipos de análise muito diferentes. Em que pudesse falar sobre mim mas também tomar distância e funcionar como uma espécie de narrador cultural. Comecei a trabalhar, e apareceu uma arqueologia pessoal da praia. Fui descobrindo camadas e camadas de lembranças, impressões e experiências que fizeram dela um verdadeiro objeto para mim — conta ele, que no dia 14 lança o livro na Livraria Cultura do Centro, às 19h30m.




“O cenário do erotismo é fora da praia” 


Para transformar a praia num objeto cultural como desejava, Pauls releu livros como “O estrangeiro”, de Albert Camus, e “À sombra das raparigas em flor”, de Marcel Proust, e reviu filmes, desde o “007” de sua infância a obras de François Ozon e Eric Rohmer, que aparecem no livro misturadas às suas lembranças — e às fotos de infância em Villa Gesell, entre um capítulo e outro. “A vida descalço” une desde o início memórias e reflexões sobre a praia. Depois de relatar a intensidade de seus sonhos em Cabo Polonio, “para compensar os efeitos de certa síndrome de abstinência” de imagens, Pauls conta sobre sua experiência com o pai no drive-in de Villa Gesell, em 1967. A ansiedade do menino de quase 8 anos foi substituída pela decepção com a “evidência instantânea” de que “o espetáculo, o verdadeiro, o único que o mundo da praia não rejeitava (...) era o da tela em branco, espécie de cinema virgem, passivo, que não fascinava pelo que irradiava, mas por todas as imagens que era capaz de suscitar”. 
A nudez que Pauls credita à praia não é a dos corpos, mas a tal lisura das superfícies que não permite que nada se esconda. Já a nudez dos corpos, em vez de transgressão, representa para Pauls um modelo de convivência cívica, mesmo nas praias mais vulgares e abarrotadas de gente: 

— Quando era criança me espantava que todos estivessem quase nus e fingissem que era natural. As pessoas estão acostumadas a vestir roupa e de repente, durante 15 dias, estamos quase completamente pelados. Se pensarmos bem, é uma situação muito pouco natural. Os homens não avançam nas mulheres (risos). 

Pauls destrói o mito da sexualidade da praia, e com ele reforça sua ideia de objeto cultural, apontando para aquilo que está além da praia-natureza, aquilo que se projeta sobre ela ou se vive a partir dela. Se o desejo sexual “não tem nada a ver com a natureza, nem com a minha nem com a do mundo”, ele só pode surgir longe do mar, da areia e do céu. Como nos filmes de Rohmer, a praia é “o que deve ficar fora do quadro para se tornar erótico”: 

— Sempre me pareceu que a praia conspirava contra o erotismo, e era muito mais interessante o que se passava no fim do dia, com o sal do mar em cima, o sol, quando se chegava ao espaço escuro do hotel ou da casa. Sexo na praia sempre me pareceu completamente trabalhoso, complicado. Nem a areia nem a água salgada nem o sol contribuem ao erotismo. Já os quartos, com a energia e a vitalidade descarregadas pela praia, se tornam um espaço mais de sombra. Ali sim há um erotismo muito potente — afirma. — Os filmes de Rohmer mostram como na praia nascem certas coisas que têm a ver com a relação erótica, mas o verdadeiro cenário do erotismo sempre é fora da praia.

A praia da infância de Pauls, uma vila fundada por alemães que no verão leva 35 graus a casas de arquitetura alpina, foi tomada pelos hippies nos anos 1960 e depois pela especulação imobiliária. Ele voltou algumas vezes, mas diz que o lugar se tornou um “subúrbio comercial à beira-mar”. Em sua infância, porém, Villa Gesell tinha apenas três pequenos hotéis e quatro quadras de comércio, areia e mar. Ainda assim, Pauls se perdia e adorava se perder na praia: 


— Era muito angustiante e dramático, mas ao mesmo tempo uma experiência de formação. Nas praias argentinas, há um ritual. Um adulto põe a criança perdida nos ombros para procurar os pais. Eu via a praia nos ombros de adultos que não conhecia desde cima, de uma posição de superioridade. Era um momento épico. 

Depois de seguidos verões em Cabo Polonio, que se mantém preservada pela ausência de eletricidade, Pauls começou a diversificar suas férias e este ano decidiu se isolar em Ilha Grande, com a mulher. Não foram férias como as outras. A praia, para o escritor, é sempre aberta. Já Ilha Grande é “selva, rochas e mar”, une os estímulos do mato — bichos, ruídos e cheiros — com o enclausuramento da ilha. Ele está perto do mar, mas não na praia, sempre mais associada à secura da areia, ao deserto, do que à água — que não lhe faltou em 15 dias de chuva e goteiras na casa.


Ainda assim, como em todas as suas férias, Pauls leu muito, com a concentração herdada do dia em que, de cama, trocou o sol por um livro. O escritor não lembra que obra era, nem se a cena aconteceu exatamente como relata em “A vida descalço”, mas não importa. No ensaio autobiográfico, Pauls na cama é a única foto do menino num espaço fechado, e não sem razão. 


— Acho que escrevi o livro inteiro sobre a praia para chegar a essa cena. É uma espécie de momento mítico, mais do que uma descrição fiel do que aconteceu num momento particular. Eu me lembro muito da sensação da penumbra, da cama e sobretudo de descobrir um livro que havia estado muito perto de mim durante todas as férias e para o qual não tinha olhado até então. Pela primeira vez, o livro adquire uma espécie de existência para mim. Da doença volta radioativo um objeto que até então tinha permanecido adormecido, quase invisível — diz ele, que não deixou tanta reflexão sobre o tema macular sua relação com a praia, pelo contrário. — Hoje sou mais inocente. Pus todas as ideias no livro e não tenho nada mais a pensar. Me tornei um pouco a praia. Eu sou a praia agora (risos).


http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/



Nenhum comentário:

Postar um comentário