A poesia perdida dos sambas de enredo
Por Alberto Mussa*
Forjado por versos sofisticados e melodias criadas para emocionar, tom épico do gênero foi substituído pelo estilo previsível e engessado das composições do carnaval de hoje
Na história das literaturas universais, sempre que é possível observar a evolução dos gêneros poéticos entre períodos sociais arcaicos e a emergência das civilizações, verificamos um fenômeno geral: a rápida decadência da poesia épica e a ascensão da lírica, com a subsequente valorização do indivíduo e de sua expressão subjetiva. É o que ocorreu entre gregos, árabes, hindus, babilônios, maias, japoneses, islandeses.
Quando a épica ressurge (como, por exemplo, nas modernas literaturas europeias), é sempre uma imitação de padrões antigos, obra cerebral de literatos. Por isso, tem enorme relevância, como fato estético, o caso do samba de enredo — gênero surgido no Rio de Janeiro, cidade predisposta a subversões da ordem lógica. Em vez de precedê-los, o samba de enredo se formou a partir de seus congêneres líricos; e num processo absolutamente espontâneo, sem copiar nenhum outro modelo épico, nacional ou estrangeiro.
No princípio, essas composições seguiam a versificação já consagrada nos sambas de então: estrofes fundadas na redondilha maior (verso de sete sílabas característico da poesia ibérica), cortadas por um ou dois refrões. Com as contribuições de Cartola, Carlos Cachaça e Nelson Sargento, os compositores foram abandonando a armadura portuguesa, preterindo a redondilha, variando o número de refrões e alongando os sambas — até que Silas de Oliveira, em 1951, deu ao gênero seu formato clássico.
Silas — gênio insuperável, autor de “Aquarela brasileira” (1964) e “Os cinco bailes da história do Rio” (1965), por exemplo — não fazia versos de metro fixo, punha rimas em posição aleatória, entortava a relação entre sintaxe e verso. Se havia regra de composição, era a da imprevisibilidade. Depois de Silas, o samba de enredo passou a ser inconfundível; passou a constituir um gênero.
Essa amplitude formal permitiu uma extrema sofisticação da linha melódica, nos anos 1950. E, na década seguinte, com o progressivo abandono dos enredos de exaltação a vultos históricos, despontam as grandes obras-primas, que têm seu marco em “Seca do Nordeste”, da modestíssima Tupi. O espectro temático se amplia, com destaque para a cena popular e regional, a mitologia indígena e a recriação literária (de que é exemplo máximo “Invenção de Orfeu”, milagre de Paulo Brazão para a Vila Isabel, sobre o hermético poema de Jorge de Lima).
E o samba de enredo continua épico, mesmo com melodias mais leves, como as de Martinho da Vila, David Correa e Didi — criador de um estilo tipicamente insulano, que fez da União da Ilha a escola atualmente detentora de quatro dos cinco sambas mais executados durante o carnaval.
As escolas de samba foram ainda capazes de narrar, num modo épico, assuntos mais triviais, mais aptos a uma abordagem lírica ou satírica — como a viagem de trem da Em Cima da Hora; a feira livre da Caprichosos; o domingo da União da Ilha.
Nenhuma linha temática, todavia, foi tão fecunda, tão fundamental quanto a afro-brasileira. É a vertente de enredo que justifica a existência do Salgueiro. Desde seu desfile inaugural, em 1954, quando foi a primeira agremiação a pôr num samba palavras de origem africana, o Salgueiro contagiou outras escolas, abrindo caminho não apenas para a difusão de toda uma mitologia do candomblé, mas para uma nova história da escravidão e do negro no Brasil, minando estereótipos arraigados na consciência brasileira.
Como o Rio é mesmo uma cidade de subversões, o tom épico dessa linhagem de sambas e enredos, em sua época áurea, inverteu os pressupostos do próprio carnaval. As escolas de samba não pretendiam servir a um extravasamento irracional de emoções reprimidas — mas desfilavam para emocionar, para provocar reflexão. No turbilhão de Momo, eram um oásis intelectual.
Nesse sentido, foi inestimável a contribuição do samba de enredo na reconstrução da autoestima das comunidades populares, ligadas às escolas de samba.
Hoje, infelizmente, só temos na memória sambas de 20, 30 anos atrás. A arte do samba de enredo está morrendo. Vivemos a era do “samba funcional”, decorrente do mesmo tipo de mentalidade rasa que forjou o “futebol de resultado” (e que levou o Brasil à vexaminosa posição que ocupa). O samba de enredo passou a ser um quesito quase irrelevante para a avaliação do desfile. Com o sistema de som da passarela, não é necessário que público e componentes cantem — basta saltitarem, alegres, alienados, na hora do refrão. O samba não precisa ser aprendido, muito menos estimado. Os julgadores (rigorosos nos “quesitos de carnavalesco”, como alegoria, fantasia ou comissão de frente) são muito complacentes com os compositores; e qualquer boi-com-abóbora de escola poderosa sai da apuração com seus 9,9. As composições são melodicamente cada vez mais similares; e têm reincidido na velha simetria estrófica e nos refrões fixos. As safras anuais têm hoje, quando muito, dois grandes sambas. Para 2013, temos apenas um: o da Portela.
Desfiles alegóricos e espetaculares, embalados por poesia e música, sempre existirão em nossos carnavais. Mas as agremiações talvez não sejam necessariamente de samba. Esse é o horizonte. Alguém se importa?
*Alberto Mussa é escritor, autor de “O senhor do lado esquerdo” e coautor, com Luiz Antonio Simas, de “Sambas de enredo: história e arte”
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