Cultura de alto a baixo
ENTREVISTA COM CAMILLE PAGLIA
Enquanto trabalha em livro sobre o carnaval baiano, a escritora americana fala sobre sua nova coleção de ensaios, uma análise panorâmica da história da arte que vai do Egito Antigo a ‘Guerra nas estrelas’
Por Mariana Timóteo da Costa, de São Paulo
O canto do carnaval de Salvador transformou Camille Paglia. Em 2009, a convite de Daniela Mercury, a escritora americana subiu num trio elétrico do circuito Barra-Ondina para vivenciar “um exemplo muito raro de um trabalho artístico monumental realizado por uma mulher”, como ela diz em entrevista por telefone de sua casa, na Filadélfia (EUA).
O encantamento por Daniela, o contato com o povo baiano e com o “passado e o presente do Brasil em Salvador” renderam, além de viagens subsequentes ao país, o tema do próximo livro da autora de “Vamps e vadias” (Francisco Alves, 1996) e “Sexo, arte e cultura americana” (Companhia das Letras, 1993).
— Pena que não poderei ir para o carnaval deste ano, queria fazer mais pesquisas — diz Camille, professora da Universidade das Artes da Filadélfia.
Um dos ícones do movimento feminista, com o qual rompeu mais tarde, Camille se mantém perto da polêmica aos 65 anos, como mostra seu livro mais recente, lançado no fim de 2012 nos Estados Unidos, mas ainda inédito no Brasil, “Glittering images: A journey through art from Egypt to Star Wars” (“Imagens brilhantes — Uma jornada pela arte do Egito a Guerra nas estrelas”, em tradução livre).
No livro, ela defende a tese controversa de que nenhum estilo artístico relevante surgiu desde a arte pop. Para isso, analisa 29 obras de períodos diversos, de uma ilustração da rainha egípcia Nefertari, nascida em 1290 a.C., até o filme “A vingança dos Sith”, dirigido por George Lucas em 2005, parte da série “Guerra nas estrelas”.
— Nada do que vi nas artes visuais nos últimos 30 anos foi mais emocionante do que a cena do vulcão de “A vingança dos Sith” — diz Camille.
Na entrevista, ela defende as afirmações mais incisivas do livro, como a de que “as artes plásticas estão definhando” por culpa da falta de criatividade e da voracidade do mercado. Fala também sobre sua relação com o Brasil e o carnaval e comenta o sucesso da literatura erótica dirigida às mulheres, que demonstra que “o sexo ficou muito chato”, provoca.
A senhora diz querer que seu livro seja o primeiro passo para transformar a percepção que “pessoas comuns” têm da arte. Por que essa transformação é necessária?
Ensino arte há 40 anos e estou muito preocupada com a dominância da cultura popular. Adoro a cultura popular, defendo-a desde os anos 1960, quando ela era muito controversa. Fui uma das primeiras na academia americana a ressaltar a importância dos Rolling Stones e da Elizabeth Taylor. Mas o que acontece hoje é que os jovens não conhecem nada além dessa “cultura imediatista”. Eles devem ser educados sobre as grandes pinturas, as grandes escolas e os grandes estilos artísticos. Porque sem conhecimento a cultura se perde, e a imaginação começa a faltar. A cultura está em crise, e as pessoas estão nervosas, ansiosas, distraídas, a mente delas não está focada.
A senhora argumenta, na introdução de “Glittering images”, que Jackson Pollock foi o último grande pintor, a arte pop foi o último estilo significativo, e o trabalho do fotógrafo Robert Mapplethorpe, a última arte essencialmente de vanguarda. Diz ainda que o terceiro episódio da saga “Guerra nas estrelas”, o filme “A vingança dos Sith”, é a manifestação artística mais poderosa, incluindo obras literárias, dos últimos 30 anos. Como defende essas declarações? Nenhum artista se salva?
Não. Me pediram para escrever um material para a exposição que o (museu londrino) Victoria and Albert fará sobre David Bowie. Pesquisei muito e fiquei impressionada: ele é um poeta verdadeiro, um artista visual genuíno, tanto quanto um músico. Pensei: “como éramos inspirados!” Mas quem existe hoje? Katie Perry? Taylor Swift? Lady Gaga? Pensar que milhões e milhões de meninas seguem essa música, que não é muito boa, me preocupa. A imagem delas é tão medíocre. Até Madonna, que foi revolucionária nos anos 1980 e 90, ainda é muito popular, e as pessoas vão aos seus shows. Mas Madonna não faz um trabalho memorável há muito tempo, e isso me preocupa. Não queria incluir um filme no meu livro, mas analisei o de George Lucas porque realmente não achei outra coisa que refletisse a arte contemporânea. Há bons trabalhos sendo feitos, mas, quando olho para eles, consigo pensar em outros dez iguais ou parecidos.
Mesmo na arquitetura e no design?
Há pouco trabalho original sendo feito, exceto na arquitetura comercial. As obras da (arquiteta iraquiana) Zaha Hadid surpreendem, e há outras incríveis. O design industrial também está desabrochando. Mas nas artes plásticas, desculpe, nada. Você pode até ter a sensação de que Damien Hirst está fazendo alguma coisa, com aquelas vacas e caveiras. Mas será que ele acha que aquilo é arte? É fraude! E o pior é que os críticos de hoje, que tendem a mimar o artista, gostam. Daí a obra é vendida a preços exorbitantes e se torna mais importante do que realmente é.
E por que não se produz boa cultura popular hoje em dia?
Acho que é uma mistura de falta de educação e excesso de mercado. Ensinando melhor esses jovens a olharem para a arte, teremos, sim, bons artistas no futuro. Nas artes plásticas, parte do problema é que há muito dinheiro circulando. O mercado se internacionalizou e se tornou um sistema insano, muito materialista. Gente que não conhece nem ama arte passou a investir nela como se fosse a bolsa de valores. As consequências são muitas: hoje, a arte só vira notícia quando um quadro é roubado ou vendido por preços recordes, o que para mim é desastroso. Nas escolas de arte, os jovens já sabem que há muito dinheiro para ser ganho. Existe muita pressão para eles fazerem um tipo de arte que “venda” ou produza “imagens”. Ser hip ou cool virou fundamental, e isso não é bom, porque um artista precisa de um longo tempo para se desenvolver, precisa ficar sozinho e amadurecer.
A senhora fala sobre a importância de se estudar a arte sacra, mas não inclui nenhuma pintura de Cristo no livro. Por quê?
Preferi usar a “Maria Madalena” de Donatello, para mim é uma imagem muito mais impactante. Sou ateia, mas respeito todas as religiões. Hoje o que domina é o humanismo secular, que nos levou a um beco sem saída. Abomino quem desqualifica a religião e a arte religiosa, que sempre disseram muito sobre a relação do indivíduo com o universo e contêm a história de milênios de pensamento humano. Sou uma humanista secular, mas acho que a religião deve ser estudada.
A senhora gosta muito da Bahia, vai muito lá, e é amiga da Daniela Mercury, com quem trabalhará num livro sobre o carnaval. A forma como o brasileiro lida com a arte é diferente?
Acho que a sensibilidade do brasileiro é maior. Sou apaixonada pela Bahia, pelo candomblé, pela relação do povo com a religião, é tudo cheio de simbologia. No chamado mundo desenvolvido ocidental, houve uma redução dessa capacidade de imaginar. O humanismo secular não apenas descartou a importância da religião como diminuiu a importância da arte. Não ofereceu nada em troca aos jovens, que estão sendo criados por pais liberais e progressistas que não querem impor um “antigo moralismo”. Mas em troca não se tem nada. Há um vazio, todo mundo está tomando remédio para ficar bem porque o humanismo secular não é suficiente. Para o humanismo secular funcionar, você precisa oferecer alguma coisa em troca. Você tem que oferecer arte.
E como vai ser o livro sobre carnaval? Por que Daniela Mercury?
Quero escrever um pequeno livro sobre a participação dela na criação do circuito Barra-Ondina no carnaval de Salvador. O livro será escrito em parceria com o historiador baiano Gunter Axt e se baseará na minha experiência do carnaval de 2009, quando fiz o circuito a bordo do trio elétrico de Daniela, a convite dela. Argumentarei que a rota Barra-Ondina é um exemplo muito raro de um trabalho artístico monumental realizado por uma mulher. Pertence também a importantes gêneros de arte moderna, incluindo arte performática, arte de instalação, land art e arte interativa. É uma excelente experiência de imersão popular na arte de rua, que atinge milhões de pessoas.
Como uma das mais atuantes feministas americanas vê o sucesso de “Cinquenta tons de cinza” (Intrínseca) e do filão erótico que pega carona nele? Por que as leitoras fantasiam com um personagem dominador, que controla e sustenta a mocinha?
O sucesso estrondoso de “Cinquenta tons de cinza” me lembra o de “História de O” nos anos 1950 e 60. Só que o segundo era mais lido pelos intelectuais, e o atual, pelas massas. É uma versão mais estilosa dos “Sabrinas” e “Julias” da vida, que atraíam um público de donas de casa e jovens mulheres que normalmente não liam ficção. Como em “Jane Eyre” ou “O morro dos ventos uivantes”, os personagens masculinos são fortes, viris e poderosos, mas ao mesmo tempo feridos de alguma maneira, e são tirados do sério por uma mulher. Há muita diferença e tensão sexual no ar. “Cinquenta tons” é uma versão contemporânea disso. O fato de as mulheres fantasiarem com um personagem que gosta de sexo selvagem sugere que o sexo se tornou muito chato. Depois da revolução sexual na minha geração, o sexo foi banalizado. Critico o fato de o feminismo não ter preservado as diferenças sexuais, elas tornaram-se turvas. As mulheres e os homens de hoje cresceram com a ideia de que a diferença de gêneros não é real. O que isso gerou, e é óbvio pelo sucesso deste livro, é que as mulheres querem mais eletricidade sexual, querem a diferença de novo.
E no Brasil, o que observa?
Acho mais difícil entender a sexualidade no Brasil. Mas sempre me surpreendo como as mulheres aí são poderosas, além de lindas, elas falam num tom de voz baixo. Já os homens se vestem muito mal, são bonitos quando jovens, mas, aos 40 e 50, se largam, ficam com uma barriga imensa. Não entendo muito. As mulheres reclamam também de desinteresse masculino, apesar de serem muito mais sensuais do que as mulheres americanas.
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/
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