Artur Xexéo
MEUS LABRADORES
Convivi, nos últimos 14 anos, com uma entusiasmada família de labradores. O primeiro a chegar foi Sultão. Veio de São Paulo. Desembarcou na esteira do Santos Dumont para deleite dos passageiros que esperavam suas bagagens. Era um pouco maior que a palma da minha mão. Mas já se mostrava uma estrela.
Eu sei que todo dono de animais de estimação acha que seu bicho é especial. Mas o Sultão era especial mesmo. Tinha uma cara quadrada que eu nunca vi em outro cachorro da raça. Nos quatro primeiros meses de vida, ele ficou no apartamento do Bairro Peixoto. Foi o tempo necessário para ser educado. Ficou educadíssimo. Nunca fez suas necessidades fisiológicas em casa. Sempre na rua. Mesmo que para isso me acordasse às 3 da manhã, exigindo uma voltinha no quarteirão. Fazia isso quase todo dia. Eu nunca reclamei. Afinal, era a maneira que ele tinha de mostrar seus bons modos. Com o tempo, ele desenvolveu um insaciável interesse por pés de mesa e sapatos. Um interesse gastronômico. A mesa de jantar ficou manca e os sapatos... bem, houve um dia em que simplesmente não tinha nenhum para calçar. Sultão comera todos.
Sultão abria portas. E as fechava também. Teve uma noite em que ele nos trancou do lado de fora do apartamento. Ele gostava de mostrar que sabia usar os trincos. Quando, enfim, foi transferido para uma casa com quintal em Vargem Grande, passou a demonstrar habilidades de saltar. Saltava muros, grades e qualquer obstáculo que pretendesse prendê-lo em algum lugar. Sultão era adepto da liberdade. Provou ser hábil nadador também, transformando a piscina, que supostamente era de todos, em seu playground particular.
Depois veio a Nega. A ideia era casá-la com Sultão. Ela aceitou, mas eles nunca foram apaixonados. Nega também teve seu período de ajuste no Bairro Peixoto. Graças a Deus, ele não se interessava por pés de mesa ou sapatos. Preferia sofás. Comeu um inteirinho. Quando, enfim, também foi deslocada para Vargem Grande, ela mostrou preferir as áreas internas aos jardins, já ocupados por Sultão. Foi na sala que ela resolveu fazer seu parto. Sim, eles não eram apaixonados, mas nunca deixaram de cumprir suas obrigações sexuais. Da união, nasceram oito labradorezinhos.
Na época, acreditávamos que ficaríamos ricos com nosso canil. Mas os bichinhos foram crescendo, nós nos adaptando a eles, e nada de aparecer compradores. Alguns, a muito custo, foram vendidos. Outros foram dados. E sobraram Capitu e Lorelei. Na verdade, elas tiveram sinomose, uma doença quase sempre fatal nos cachorros. Foram para a clínica, tomaram soro e, quando esperávamos a notícia de que tinham morrido, elas reapareceram. Magérrimas, inapetentes, tristes. O veterinário disse que elas tinham que comer de qualquer jeito. Mas como convencê-las?
Elas minguavama a cada dia. E nada de comer. Até que _ era noite de Natal – minha mãe experimentou oferecer-lhes peru. Capitu e Lorelei comeram o peru inteiro. No dia seguinte, já aceitavam ração. E, vendo-as se recuperarem, nunca tivemos coragem de passá-las adiante.
Foi assim que ficamos com quatro labradores: Sultão, Nega, Capitu e Lorelei. Da sinomose, Capitu se recuperou sem sequelas. Com Lorelei, foi mais complicado. Teve problemas neurológicos, não desenvolveu parte do corpo, o veterinário não lhe dava muito tempo de vida. Fazia acupuntura, natação e, de vez em quando, era hospitalizada com doenças pulmonares. Mas era guerreira. Sempre voltava para casa animadíssima.
Capitu era sonsa. Bonita, a mais bonita da família, se fazia de boba para conseguir o que queria. Um dia apareceu grávida. O diagnóstico foi gravidez psicológica. Acreditamos, e, dois meses depois, tínhamos mais oito cachorrinhos em casa. Tratamos de dar todos rapidinho. Não acreditávamos mais na fortuna que ganharíamos com nosso canil.
O primeiro a partir foi Sultão. Foi de repente. Nunca ficara doente, só uma ou outra manifestação alérgica quando a gente tentava equilibrar o orçamento oferecendo a ele ração nacional. Sultão reagia com falhas no pelo. Só aceitava ração importada. Aos 10 anos, começou a mancar de uma perna, foi diagnosticado um câncer ósseo, chegou a ter a perna amputada, mas não sobreviveu à cirurgia. A piscina de Vargem Grande nunca mais teve a alegria dos tempos em que ele a cruzava com velocidade de campeão.
Um ano depois, foi a vez de Nega. A situação dela foi mais complicada. Ela também teve câncer, mas reagiu bem a todos os tratamentos. Viveu quatro anos com a doença, sem demonstrar qualquer fragilidade. A gente só percebeu que havia alguma coisa errada quando ela começou a esbarrar nos móveis. Nega estava cega. A doença não tinha mais cura. Tudo aconteceu rapidamente, como com Sultão.
As ausências de Sultão e Nega fizeram com que Capitu e Lorelei tornassem-se muito apegadas. Dormiam juntas, alimentavam-se juntas, uma estava sempre atrás da outra. Há 20 dias, foi a vez de Capitu ir embora. Ela sofreu de um mal que é muito comum em labradores: displasia. Tinha dificuldade para se levantar, para andar e, isso é que era pior, não conseguia subir escadas, o que a afastava da sala e do hábito de ver televisão com a gente. Ela pesava 30 quilos e, duas ou três vezes por dia, a gente a carregava pela escada para que pudesse manter o costume. Mas Capitu não resistiu à interrupção de sua função renal.
Ficou só Lorelei. A mais magrinha, a mais fraquinha, a mais doente, aquela que teria dois ou três anos de vida, completou 12 anos, sobrevivendo ao resto da família. E continuava serelepe como sempre. Faz pouco mais de uma semana que Lorelei partiu. O veterinário diagnosticou uma trombose. Mas acho que ela morreu de saudades de Capitu.
Tenho certeza de que meus cachorros foram felizes no tempo em que passaram aqui. Mas o mais feliz da família fui eu, que tive o privilégio de conviver com eles por 14 anos.
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