O estranho mundo de Edward Gorey
Mestre do ‘nonsense’, do humor macabro e do desconforto, o ilustrador e escritor americano, uma das principais influências do diretor Tim Burton, tem seu primeiro livro publicado no Brasil
Por Odilon Moraes *
“Fui uma criança à qual parecia divertido simular um ataque epilético dentro de um ônibus”. Essa declaração feita por Edward Gorey a respeito de sua infância nos dá a chave para compreender grande parte de sua obra. Para alguns, ela é difícil, indecifrável, chegando, em alguns momentos, a causar profundo incômodo. Em algumas de suas conhecidas histórias trágicas, utiliza-se de personagens crianças para acentuar nosso desconforto de leitor. “Elas têm a marca da vulnerabilidade”, disse ele certa vez. Dono de um traço inconfundível e um humor não menos singular, o ilustrador, escritor, cenógrafo, figurinista e outras coisas mais é considerado o gênio do nonsense macabro e uma influência mais que direta de outro gênio, o diretor Tim Burton.
Embora nascido nos Estados Unidos, em 1925, é evidente, tanto em sua obra como em suas declarações, a profunda ligação com o estilo vitoriano/eduardiano do século XIX e início do XX na Inglaterra, assim como a influência da Era do Jazz. Gorey foi um garoto prodígio, que aprendeu a ler sozinho, aos três anos e meio. Aos cinco leu “Drácula”, e aos sete, “Frankenstein”. Só se poderia esperar algo excêntrico vindo de uma alma como essa.
Em Harvard, onde estudou francês, era tido como um jovem estranho. Muito alto, tinha os dedos das mãos sempre cheios de anéis, e frequentemente era visto a caminhar descalço, com as unhas dos pés pintadas de verde. Dividiu a mesma habitação durante dois anos com Frank O’Hara, que foi considerado posteriormente o mais célebre poeta da Escola de Nova York. Ambos dândis extravagantes do campus, decoraram o aposento com móveis brancos de jardim e usaram uma lápide de cemitério como tampo de mesa. No final dos anos 40, com o apoio de alguns professores da faculdade e outros jovens como eles, formaram o Poets Theater de Cambridge. Alguns escreviam, outros atuavam, e Gorey fazia cenários e figurinos.
Em 1953 mudou-se para Nova York, onde trabalhou como desenhista de capas de clássicos modernos como Kafka, Proust, Conrad e Gogol. Além das capas, chegou a ilustrar livros de autores como Edward Lear, de quem herdaria o nonsense; Beckett, de quem herdaria o absurdo; Dickens, de quem herdaria o sofrimento; e Wells, de quem herdaria a ficção. Foi nesse mesmo ano que escreveu e ilustrou sua primeira obra, “The unstrung harp” (“A harpa não tocada”), já com seu estilo inconfundível em preto e branco, mas que não encontrou muitos leitores. Em 1967, Andreas Brown, grande admirador de Gorey, comprou a legendária livraria nova-iorquina Gothan Book Mart, e ali começou a difundir sua obra. Vendia não somente livros, mas também pôsteres, objetos e organizava lançamentos e exposições. Chegou a editar 15 títulos do escritor.
Apaixonado por balé, Gorey admirava profundamente as ideias do coreógrafo de origem russa George Balanchine. Quando este morreu, em 1980, ele se sentiu privado de seu principal interesse cultural pois, entre 1956 e 1979, assistiu a todas as temporadas do New York City Ballet, incluindo muitos dos ensaios. Mudou-se então para um casarão de 200 anos em Cape Cod, conhecido como The Elephant House, que encheu de livros, filmes, discos, pedras, garrafas, objetos, bonecos e gatos (uma de suas grandes paixões). Ali viveu sozinho até o final da vida, escrevendo, desenhando e fabricando marionetes para pequenos teatros da região. Publicou em vida mais de 100 livros, e deixou outros 70 escritos, sem ilustrações. Morreu em abril de 2000, e quem o conheceu o descrevia como um homem extremamente culto, inteligente e afável.
Gorey constrói sua narrativa com imagens e palavras. É alguém que trabalha no encontro de linguagens. Podia passar mais tempo lendo, vendo filmes e televisão do que escrevendo e desenhando. Lia de Agatha Christie a Borges. Seus livros nos incomodam, mas nos cativam. Encantam, enquanto nos chocam. Abrem mistérios e perguntas, para não respondê-las. Quando há uma sequência lógica, ela caminha para o desastre ou o nonsense, como é o caso de “A bicicleta epiplética”, de 1969, onde duas crianças encontram uma bicicleta misteriosa que vai conduzi-las para um final absurdo. Com essa pequena pérola, a editora Cosac Naify tenta introduzir Gorey e seu universo tão peculiar no Brasil, onde até então ele permanecia inédito.
Gorey finge, como aquela criança que simula o ataque epilético apenas para se divertir. Ele nos conduz através do assombro. É aí que exerce um fascínio, completamente acidental, em um certo público infantil. Gorey nunca escreveu para crianças. Casos como esse acontecem às vezes dentro da chamada literatura para crianças e jovens, quando uma obra é acolhida dentro de um universo à revelia da intenção do autor. O trabalho de Gorey pode não ser para todos, mas não se divide entre infantil e adulto, e sim entre tipos de pessoas: as que conseguem rir ou se sentir atraídas por um humor misterioso e às vezes macabro, e as que se sentem indiferentes ou profundamente incomodadas por terem sido tomadas pelo desconforto. Mas até esse desconforto é explicado pelas palavras do autor: “Por algum motivo, minha missão na vida consiste em produzir o maior incomodo possível, porque assim é o mundo.”
Veja abaixo um vídeo com uma animação de Edward Gorey:
* Odilon Moraes é ilustrador e escritor, autor, entre outros, de “A princesinha medrosa” e “Pedro e a Lua” (ambos premiados pela FNLIJ)
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