sexta-feira, 10 de maio de 2013

Coetzee / A infância de Jesus / Resenha




Novo romance do escritor sul-africano vira do avesso alusões à religião para tocar em temas universais e urgentes, como crença, liberdade e tolerância

Por Kelvin Falcão Klein

Um homem e um menino chegam a uma cidade chamada Novilla, vindos de um campo de refugiados. Chegaram ao campo depois de atravessarem o mar, e foi no navio que se conheceram — o menino tinha uma carta que explicava sua origem, mas ela se perdeu. Em Novilla, recebem novos nomes (o homem se chamará Simón, o menino, David), novas datas de nascimento e devem sempre falar em espanhol, a língua comum desse estranho mundo que J.M. Coetzee constrói em “A infância de Jesus”.

Não há dúvidas de que se trata do relato de uma infância, a de David, mas seria ele, em um universo alternativo, o Jesus que conhecemos? Talvez um dos objetivos de Coetzee seja justamente questionar aquilo que conhecemos da História, aquilo que vem de forma automática ou instintiva quando se pensa no passado. Porque a leitura de “A infância de Jesus” oferece um contínuo jogo entre expectativa e realização, um jogo exasperante, no qual Coetzee arma uma série de atrasos e adiamentos que carregam de tensão o romance.

Existem muitos elementos reconhecíveis, ainda que o período histórico da narrativa não seja especificado. O cenário lembra o dos regimes totalitários: comida racionada, controle estatal, maquinário defasado, vestuário simples, generalizada falta de humor, ironia e afeto nas relações entre os indivíduos. Mas essa é apenas a moldura para aquilo que se crê o mais importante, ou seja, a infância de Jesus. David é sensível e inteligente, mas sofre com dificuldades para aprender a ler, escrever e contar. Alguns meninos da escola e da vizinhança o recebem mal (“todo mundo acha que ele é maluco, até os grandes”, conta um deles), outros o encaram com devoção (“ele era o favorito, o favorito de todos”, diz a professora a Simón).

Em uma das cenas do romance, Simón e David estão conversando, “atravessando o playground vazio”. “No tanque de areia”, escreve Coetzee, “o menino se agacha, alisa a superfície, e começa a escrever com o dedo”. Só que Simón não entende nada, pois David escreve com caracteres aleatórios, em um idioma inventado por ele. “Sei que você é muito inteligente e aprendeu sozinho a ler e escrever”, fala Simón, “mas na vida real você precisa escrever igual aos outros”. Além dessa passagem da areia, que evoca o Evangelho de João, várias remissões bíblicas vão dando ao romance sua feição alegórica — desde a presença constante do pão, até o amor do menino pelos animais, os episódios em que ele deseja salvar, curar e ressuscitar e, finalmente, uma série de tentações com um personagem (o señor Daga) que, com suas insinuações obscenas e seus oferecimentos materiais, lembra muito Satanás.

Usando um procedimento recorrente em sua poética, Coetzee recusa posições fixas para seus personagens ou o andamento da história. Todos os elementos, desde as características de um indivíduo até a materialidade do ambiente descrito, são virados do avesso e postos em dúvida. Este é o romance mais dialógico de Coetzee, contando com capítulos formados só por falas. A baixa interferência do narrador contribui para o tom de fábula que o romance por vezes adquire, já que se percebe mais uma interlocução de ideias sobre o mundo do que uma representação realista desse mesmo mundo. Mais um exemplo da recusa de fixidez em Coetzee, que mescla tanto o registro realista (a arquitetura repetitiva, o sistema de sucção dos grãos do navio) quanto a torção imaginativa de uma escritura que se reconhece como artifício (os estivadores que param o trabalho para um debate filosófico).

Em “A infância de Jesus”, sob a capa temática de um homem empenhado em proteger e amar uma criança, confluem temas ao mesmo tempo universais e urgentes para nosso presente, como aqueles que dizem respeito a crença, honra, liberdade e tolerância. Coetzee não faz uso nem da paródia, nem da ironia, recursos comuns na ficção contemporânea, mas sim de uma aguda solenidade, uma espécie de ética do trabalho ficcional. Ao mesmo tempo em que está ligado a seus temas e obsessões, e a um deliberado exercício de não se repetir de um romance ao outro, Coetzee cultiva um contato estreito com a tradição literária ocidental, especialmente com grandes romancistas como Musil e Tolstói. A atualização de Coetzee passa pela forma e pelo conteúdo, mas se resolve sobretudo em uma noção de permanência, em seu desejo de extrapolar, a partir da literatura, a duração restrita de uma vida e de uma noção de tempo e História.

Kelvin Falcão Klein é crítico literário e doutor em Teoria Literária pela UFSC







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