domingo, 10 de julho de 2016

Vargas Llosa / ‘England your England’

Fernando Vicente

‘England your England’

Europa vai sofrer um descrédito considerável com o 'Brexit', mas o dano maior recairá sobre o Reino Unido com a ameaça de desmembramento e uma lenta decadência


MARIO VARGAS LLOSA
10 JUL 2016 - 10:16 COT

Vivi muitos anos em Londres e ali aprendi a admirar as virtudes inglesas: o pragmatismo que vacina seus cidadãos contra os fanatismos ideológicos, seu individualismo, base dos seus excêntricos, seu espírito tolerante e democrático, seu respeito pelas instituições, as leis e as tradições. Nos dias anteriores ao referendo estive lá e todas aquelas virtudes brilharam por sua ausência, tanto que me pareceu estar em outro país. Um país inflamado, presa da demagogia nacionalista mais ridícula e xenófoba, vertida em abundância pelos defensores do Brexit. Estes apresentavam a saída do Reino Unido da União Europeia como “a recuperação da independência da nação”, uma panaceia com a qual a Grã-Bretanha obteria a prosperidade e o absoluto controle de uma imigração que Nigel Farage, o líder do Partido da Independência do Reino Unido, mostrava em um cartaz racista como uma invasão enlouquecida de subdesenvolvidos negros, mulatos, africanos e asiáticos, ao mesmo tempo em que o ex-prefeito de Londres Boris Johnson expressava seu temor de que a Turquia, cuja incorporação à Europa pressagiava iminente, teria o direito de inundar o Reino Unido com 78 milhões de turcos.
A demagogia, o nacionalismo mais chauvinista e estúpido, os preconceitos racistas pareciam ter transformado a Grã-Bretanha, da noite para o dia, em um paizinho terceiro-mundista. E essa impressão alcançou para mim seu apogeu quando Boris Johnson, o despenteado e falastrão líder conservador, batia o recorde de todas as mentiras protestando porque, segundo ele, os euroburocratas de Bruxelas –os inimigos a abater para devolver a liberdade ao Reino– gastavam os impostos dos esgotados cidadãos britânicos subsidiando as cruéis touradas na Espanha!




Enquanto os defensores do Brexit, com bom apoio dos meios de comunicação, inundavam o país com exageros, falsidades, calúnias e uma patriotada de cartazes e baixo estofo, os defensores de que a Grã-Bretanha continuasse na Europa –penso, sobretudo, no Partido Trabalhista– mostravam uma languidez e pessimismo tais, a começar por seu letárgico líder, Jeremy Corbyn (agora questionado por boa parte de seus camaradas, que exigem a sua renúncia por não ter defendido melhor a que era a política oficial do trabalhismo), que, seria possível dizer, se resignavam de antemão a uma derrota que pelo menos alguns deles secretamente desejavam. Não é de estranhar, por isso, que nas cidadelas operárias da Inglaterra o voto em favor da saída da Europa atropelasse o da permanência.
O único que defendia essa opção com energia era o primeiro-ministro David Cameron, ou seja, o mesmo que, com uma precipitação desnecessária e lamentável, convocou esse referendo, sem necessidade legal alguma, por um oportunismo político de circunstâncias, algo que pagou com o fim de sua carreira política –e um erro do qual dificilmente a história futura da Inglaterra o desculpará.



Grã-Bretanha se tornou um país inflamado, presa da demagogia nacionalista mais ridícula e xenófoba

E agora? A Europa vai sofrer um descrédito considerável com o distanciamento do Reino Unido, o país, vale a pena recordar agora mais do que nunca, que com heroísmo sem igual salvou o velho continente de Hitler e dos nazistas. E não só porque a Grã-Bretanha é a segunda potência industrial europeia, mas porque ela era, dentro da Europa, a defensora mais enérgica das políticas de livre comércio e da integração de todos os mercados do mundo. O triunfo do Brexit estabelece um péssimo precedente e é uma contribuição inestimável aos partidos, movimentos e grupúsculos antieuropeus, geralmente fascistoides, como a Frente Nacional, de Marine Le Pen, na França, a Alternativa para a Alemanha, a frente encabeçada por Geert Wilders na Holanda e aqueles que na Polônia, Áustria, Hungria e países escandinavos quiseram, em nome do nacionalismo, dar o golpe final à mais ambiciosa empreitada democrática do Ocidente nos tempos modernos.
Mas, provavelmente, como escreveu Chris Patten em um dos artigos mais lúcidos que li sobre os resultados do referendo britânico, o dano maior recairá sobre o próprio Reino Unido. Que a Grã-Bretanha desapareça, com a secessão da Escócia e da própria Irlanda do Norte– que, em consequência do Brexit, perderá suas fronteiras abertas com a República da Irlanda–, é uma perspectiva perfeitamente possível, sobretudo tratando-se da Escócia, onde mais de 62% dos eleitores defenderam a opção europeia.
Porém, mais grave ainda que seu possível desmembramento, o que ameaça agora a Inglaterra é uma lenta decadência, vítima de um nacionalismo político e econômico ultrapassado, que vai contra a tendência dominante no restante do mundo e, sobretudo, no Ocidente, uma tendência que precisamente o Reino Unido estimulou nos anos dos governos de Margaret Thatcher, John Major e Tony Blair e que agora renegou de maneira pouco menos que suicida.



A decepção dos vencedores do referendo será muito próxima e muito grande no que concerne à imigração

Uma análise superficial dos resultados do referendo mostra uma divisão geracional e intelectual inequívoca: os ingleses mais jovens e mais bem-educados, mais conscientes do risco que o isolamento significava para o seu futuro, votaram pela Europa; os mais velhos e menos preparados, pela saída. A nostalgia de um mundo que se foi e não vai mais voltar prevaleceu sobre o realismo; e preferir a irrealidade e os sonhos ao mundo verdadeiro só traz benefícios no campo da arte e da literatura; no da vida política e social, o mais comum é gerar catástrofes.
A decepção dos vencedores do referendo será muito próxima e muito grande no que concerne à imigração, quando perceberem que sua vitória não vai impedir, nem diminuir um pingo sequer, a chegada dos temidos forasteiros, pois o que Orwell em um de seus melhores ensaios chamou ironicamente de England your England simplesmente já não existe, salvo na fantasia passadista de alguns sonhadores. (Em meio à campanha se descobriu, por exemplo, que o albiônico Boris Johnson, caudilho do nacionalismo britânico, tinha ancestrais turcos.) E que não é a União Europeia que traz essas ondas de imigrantes a suas praias, mas a necessidade que a Grã-Bretanha tem deles para prover os trabalhos que os ingleses já não fariam nem à força e as leis sociais que, com mais generosidade que realismo, foram feitas em épocas de bonança para favorecer essa imigração, que então parecia tão necessária. (Continua sendo, mais que nunca, se os países desenvolvidos aspiram a manter seus altos níveis de existência, embora as ramelas nacionalistas impeçam que se veja isso agora.)
Em O Leão e o Unicórnio, Orwell fala com muito carinho da Inglaterra e destaca, com justiça, as virtudes de sua gente comum, seu amor à liberdade, sua sobriedade, o respeito pelo outro, sua crença em que as leis foram feitas para favorecer o bem e o bom e que, portanto, têm de ser cumpridas. E resume assim suas ideias (cito de memória): “É um bom país, com as pessoas erradas no controle”. Lembrei muito desse belo ensaio nestes dias deprimentes. Porque se o “controle” da Inglaterra ficará agora nas mãos dos homens do Brexit, como pede o pequeno führer Nigel Farage, a terra de Shakespeare será, sim, transformada de tal modo que muito em breve nem sequer a boa mãe que a pariu a reconhecerá
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