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Rubem Fonseca
Guadalajara, 2007
Foto de Triunfo Arciniegas |
Um chope com Rubem Fonseca
O jornalista Alexandre Gaioto narra o encontro com o escritor
Alexandre Gaioto
Debaixo de um sol escaldante, num Leblon a quase 40 graus, o porteiro pergunta qual o meu nome e já vai ligando para o apartamento indicado. Após um breve interfone, indaga qual o motivo da nossa presença. Estamos, eu e minha namorada, às 13h de uma sexta-feira, na porta do luxuoso prédio de Rubem Fonseca, a poucos metros do mar. Resolvo abrir o jogo: somos leitores do Rubem, queremos pagar um chope para ele. O porteiro fica sem reação. Olha novamente o casal com mochilas nas costas e um isopor nas mãos, e dá um sorriso. Depois de explicar a situação por telefone a alguém do apartamento, ele libera o portão e nos acompanha até o elevador.
“Estão esperando vocês”, diz o porteiro.
A recepção surpreende uma carioca cinquentona que entra no elevador no mesmo instante em que a gente.
“Nossa, vocês estão com sorte, viu? A livraria aqui do Leblon está cansada de oferecer coquetel para os lançamentos do Rubem Fonseca, e ele nem responde os convites”, comenta, antes de descer num dos andares do prédio.
Para a decepção geral, quem está na porta do apartamento de Rubem Fonseca não é ele, mas a funcionária Dalva, uma negra simpática e atenciosa, de uns sessenta anos. Descalça, trajando um vestido azul, ela abre um sorriso e parece um pouco confusa.
“Vocês trouxeram uma encomenda, é isso?”
“Não, viemos pagar um chope para o Rubem Fonseca, queremos beber com ele”, vou dizendo, enquanto espio lá dentro a pilha de livros que ocupa uma parede inteira na espaçosa sala do apartamento.
“Ah, ele não está aqui no momento. Mas deixe um nome e um telefone. Quem sabe ele não liga?”, aconselha.
Agradeço a cordialidade e vou saindo, ao lado de minha namorada. Deixo com Dalva o meu nome e o número do celular, com o DDD do Paraná. Ela escreve tudo num bilhete. Já que a ideia amalucada de beber com Rubem Fonseca não deu certo, o jeito é pegar uma praia no Leblon, logo ali na frente. Por desencargo de consciência, coloco créditos no celular. E acho engraçado aquilo tudo: até parece que o Rubem Fonseca vai ligar.
Então, ele liga
Frio para danar, o mar do Leblon congelava qualquer mortal naquela tarde. Por sorte, tínhamos uma garrafa de Mojito, que matamos na areia, rapidamente, em goles desesperados. Meu celular tocou às 14h, interrompendo as doses de Mojito. Mergulhamos num silêncio tenso. Um olhando para o outro, sem reação. Peguei o celular na mochila. Vi, na tela do aparelho, que era o número de um amigo do Paraná. Para assustar a namorada, gritei “é ele, é ele, o Rubem está ligando!”. Atendi eufórico.
“Alô, Rubem?!”
Minha namorada arregalou uns olhos espantados.
“Rubem, é o Alexandre, sim. Tudo bem contigo, bicho?! Estou na praia, vamos encher a cara num bar aqui perto?”
Caímos na risada: a cena era improvável demais. Uma hora mais tarde, seria a vez do meu pai ligar. Atendi novamente, fingindo conversar com Rubem Fonseca. No diálogo com meu pai, que improvisou surpreendentemente bem o papel do escritor recluso, combinei que deixaríamos nossas respectivas mulheres em casa e, lá pelas 23h, partiríamos para uma noitada de esbórnia na Centaurus, a digníssima boate em Ipanema, famosa por suas acompanhantes de alto nível. Minha namorada já não deu bola para a piada nem para o itinerário noturno.
A bebida e os acepipes guardados na bolsa já tinham ido goela abaixo quando o celular tocou, novamente, às 16h. Desta vez, com um DDD do Rio de Janeiro. Não podia ser. Não mesmo. Devia ser o efeito alcoólico do Mojito. Conferi o número no painel. É ele, amor, é ele. Fui solenemente ignorado.
“Alô, é o Alexandre?”, indagou a voz rouca.
Rubem Fonseca tem uma voz rasgada. Entraria fácil numa banda de rock, blues ou num quarteto de jazz tocando Chet Baker. Também seria legal ouvir Rubem Fonseca cantando Bob Dylan.
“Olha, Alexandre, estou muito ocupado hoje. Mas se você passar aqui agora, eu posso te receber. Você consegue vir já?”
Mal tinha desligado o celular, já estava jogando o Mojito e a caixa de isopor no lixo, juntando a bolsa, gritando “é ele, é ele!”, e minha namorada só acreditou que era mesmo o Rubem Fonseca quando me viu, atabalhoado, correndo pela areia, pagando pelas cadeiras e pelo guarda-sol alugados na barraca da praia. Deu para tirar a areia do corpo, trocar o chinelão pelo tênis e pegar na bolsa uma edição de Amálgama, o último livro de Rubem Fonseca. Por sorte, estávamos a uma quadra de distância.
Conselhos de mestre
Não sabia que Rubem Fonseca recebia os leitores em seu apartamento. Sei, por experiência própria, que ele conversa com todo mundo em suas caminhadas diárias.
Foi assim, numa dessas caminhadas, que abordei Rubem Fonseca nas ruas do Leblon, há cinco anos. Passei alguns minutos em frente ao seu prédio e, quando ele saiu, ficamos por quase meia hora conversando sobre literatura, reclusão, as perseguições na ditadura e o processo criativo. Aproveitei que o clima estava bacana e mostrei alguns continhos meus ao Rubem Fonseca. Pedi que ele lesse depois, se poderia me dar um retorno por e-mail. Tudo o que eu queria era saber se eu deveria ou não insistir naquele papo de ser escritor. Sei que escritores odeiam esse tipo de coisa, mas, como eu disse, o clima estava bacana. Sentado ao meu lado num banco da Avenida Ataulfo de Paiva, Rubem Fonseca fez questão de ler os quatro continhos ali mesmo. Apontou erros que só ao seu lado pude ver claramente. Num dos contos havia a mistura de algumas gírias, inseridas na fala dos personagens, e a gramática normativa dominava o resto da narrativa.
“O seu texto está todo escrito na norma culta, pode tirar essas gírias aqui. O seu texto não precisa disso”, criticou, rasurando os termos no papel. Aconselhou-me, ainda, a estender as narrativas, todas excessivamente curtas. “Você tem que abrir gavetas no texto. É assim que funciona com o romance”, disse. Com os continhos em mãos, incentivou-me a escrever com dedicação, diariamente. “Seus contos são concisos, enxugados. Você tem voz própria, porra! Você não vai ser jornalista. Você vai ser escritor, porra!”, estimulou-me Rubem Fonseca.
Qual outro grande autor perde tempo lendo coisas inéditas, no meio da rua, redigidas por escritores desconhecidos? E, encorajador, ainda faz apontamentos, dá dicas valiosas, manda seguir em frente? Rubem Fonseca, além de gênio, é um cara generoso.
Além da dedicação diária e da necessidade de reescrever os textos, quem quiser escrever bem deve, também, ter sua proposta literária definida. “O escritor tem de escrever para provocar. Para escrever o que todos querem ler, existem os jornalistas”, ironiza Rubem Fonseca. Essa é a fórmula do sucesso. Depois disso, é abrir os braços e correr para o reconhecimento, para a fama – ou, no caso dele, se esconder de tudo isso, quieto no Rio de Janeiro.
A reclusão, no caso de Rubem Fonseca, não é garantia de anonimato. Enquanto estávamos sentados, ele foi reconhecido por uma moradora do Leblon. Era uma carioca muito branca, de uns sessenta anos. Fogosa, convidou o escritor para um jantar à noite, e ele recusou cordialmente. “Ela é muito velha para mim”, justificou, depois que a leitora saiu de cena.
Cinco anos depois daquele encontro, Rubem Fonseca está prestes a me receber, agora ao lado de minha namorada, em sua residência. Não pretendo pentelhá-lo, novamente, com um punhado de textos. O que eu quero mesmo é encher a cara com ele.
Fugitivo
“Vamos entrando, vamos entrando”, convida Rubem Fonseca, com um sorriso amigável, abrindo a porta de seu apartamento.
Ele não é alto, deve ter pouco mais de 1m60. Veste camiseta, calça jeans e, nos pés, sapatos. Caminha devagar, quase mancando, até um dos sofás impecavelmente brancos da sala, repleta de livros. Tudo é bem organizado, privilegiando o espaço dos cômodos. Na sala ao lado, outra penca de livros surge em fartas estantes.
“Hoje, o meu dia está uma correria. Acabei de voltar de um encontro com meu filho, à noite vou jantar com a minha filha e ainda tenho que encontrar uns documentos e enviá-los para o meu advogado. Ele já está me cobrando”, comenta, em tom de desabafo.
“A gente queria te pagar um chope no bar mais próximo”, eu explico. Ele dá uma boa risada. Rubem Fonseca é gente fina à beça.
“Ah, eu parei de beber há muito tempo. E vocês sabem: eu vivo fugindo das pessoas”, diz, rindo.
“É mais difícil escrever hoje em dia?”, pergunto ao escritor, estendendo o exemplar de Amálgama para ele autografar.
“Ah, sim. Toda essa correria de advogado e documentos atrapalha a rotina. Não sobra tempo para escrever”, reclama.
No livro, Rubem Fonseca faz uma dedicatória amigável. E minha namorada diz o quanto gostou do brutalismo e do humor negro do primeiro conto, “O filho”, uma das melhores histórias do Amálgama. No conto, escrito ao seu melhor estilo, Rubem Fonseca aborda o nascimento de uma criança que nasce aleijada, sem um braço.
“Que dó do bebê, que dó. Coitadinho dele”, responde Rubem Fonseca. O criador, para a nossa surpresa, tem, sim, piedade de suas próprias criaturas. “Mas você tem mais de 18 anos, não tem?”, pergunta Rubem Fonseca à minha namorada. “Este livro é só para maiores de idade”, avisa, rindo, enquanto estende o exemplar autografado.
Ele se levanta do sofá com um pouco de dificuldade. Justificável, afinal, para um senhor de 88 anos. Mas há uma dor no corpo, ele explica, culpa de um tombo recente.
“Só posso andar nas ruas com isso aqui”, comenta o escritor, seguindo para a outra sala. No canto da estante, ele pega uma bengala e exibe o seu novo acessório das caminhadas. “Sem ela, posso perder o equilíbrio”, justifica.
“E você continua charmoso”, elogia minha namorada. Eu engrosso o coro, também digo que ele está charmosão. Ele dá outra risada, abre um sorriso.
“E quando vem o próximo livro, Rubem?”, indago.
“Agora, estou trabalhando em um romance. A editora quer soltar só no próximo ano. Por enquanto, tenho só um working title, que pode mudar a qualquer momento”, diz.
“Quando você começa a escrever, sempre sabe como irá terminar a história?”, questiono.
“Não, nunca sei como vou terminar. As histórias mudam durante a escrita”, revela.
Já na porta do apartamento, agradeço a recepção e a rápida conversa. Ele está visivelmente feliz. “Da próxima vez, avisem antes que vocês virão e aí teremos mais tempo para conversar. E, se vocês forem à praia, tomem cuidado. Vão pela manhã, não fiquem lá à tarde. Olha a pele da sua namorada, Alexandre, é tão branquinha. Esse sol é perigoso. Cuide bem dela, viu? Porque ela é muito bonita; e você, muito feio”, aconselha Rubem Fonseca, arrancando uma boa gargalhada nossa.
Evitamos a praia, seguindo o conselho do escritor, e corremos pelas ruas do Leblon à caça da bodega mais próxima. Na mesa do Jobi, acalmamos os ânimos e tomamos um porre para celebrar o encontro com deus.
Alexandre Gaiotoé jornalista e trabalha no jornal O Diário de Maringá, Paraná. Tem 26 anos e é mestrando em literatura pela UEM