Frequentemente, as drogas, os vícios são fuga da realidade, uma maneira de se proteger da mesma.
Quando o presente é percebido como ameaçador, lidamos com isto de forma presentificada e estruturante ou lidamos com isto através de filtros - medos, desejos, ansiedades, valores -, perdendo autonomia, gerando conflitos, vivenciando tudo como insuportável seja na família, seja na escola, no trabalho, entre os amigos ou nos relacionamentos íntimos.
Ilaria Del Monte, O gabinete Norman, 2013, óleo sobre tela |
Não se detendo no percebido, não se detendo na realidade, não integrando limites, o indivíduo cria deslocamentos, fugas que se expressam em sintomas, isolamentos e vícios (drogas lícitas ou ilícitas, trabalho, sexo, comida, redes-sociais, etc). A repetição imobilizadora - a tentativa de evitar tensões - configura o submisso, esvaziado, posicionado entre se sentir bem e evitar se sentir mal. Esta imobilidade adquirida cria pontos de tensão, dores equivalentes aos pontos criados por escaras. Quanto mais aumenta o processo de imobilidade, de subordinação, de falta de autonomia, mais se protege da dor, da frustração e mais atinge a impossibilidade de qualquer ação. Esta vivência atordoa, a realidade machuca. Drogas, vícios são os deslocamentos que se impõem para evitar a dor, para evitar o fracasso. Neste momento, a droga, a fuga da realidade, é transformada em proteção contra a realidade; é um amortecedor que permite conviver com humilhação, frustração, impotência, incapacidade, e assim se sentir capaz e operoso no “caça à droga” ou nos esconderijos perpetrados contra vigilâncias familiares ou policiais.
O drama humano começa quando as possibilidades de relacionamento ficam restritas, reduzidas às necessidades, desvitalizando o ser. Conceituar drogados como dependentes químicos é, paradoxalmente, uma generalização e uma redução (determinismo biológico), pois a partir desta conceituação, praticamente tudo pode ser entendido como droga: ecstasy, remédios, drinks socialmente compartilhados, café e alimentos diários, assim como sexo e a sensação de prazer advinda de aprovações e elogios. O organismo cria hábitos e dependências na busca de saciedade, de êxito, mas é a vivência psicológica, contextuada em bem-estar/mal-estar que vai estabelecer o vício. Viciados posicionados nas drogas ilícitas, no sexo, na comida, no trabalho, nos jogos, nas redes sociais, etc, restringem enormemente suas possibilidades, pois são fixados em seus desejos. Tudo converge para satisfazê-los e este objetivo passa a ser o estruturante do ser: as possibilidades de relacionamento ficam reduzidas à busca do que satisfaz, do que alivia dores e mal-estares, enfim, comer é ser, embriagar-se é ser, picar-se é ser, trabalhar é ser e assim por diante. O drogado, o fugitivo, é o esvaziado cheio de escudos, desculpas, alibis e propósitos. Fugir da realidade frustrante é uma tentativa de se proteger e de evitá-la. A dor, o medo, a dúvida são brumas que incapacitam a visão. Nada é distinto, nem distinguido. A droga (alcool, cocaína e outros) funciona como lanterna que evita buracos, embora faça submergir neles. Estas novas vivências, no nível de sobrevivência, no underground, colocam o mundo de ponta-cabeça ao devolver e criar novos paradigmas e sintaxes.
Ramon Bruin |
A reaprendizagem de situações vai permitir sobrevivência dentro deste emaranhado estrangulador. Fugir é uma maneira de encontrar novas portas, fechadas ou abertas a novas fugas. Fugir é o deslocamento por excelência, que destrói a individualidade, transformando o indivíduo em um braço a ser picado, uma boca para fumar, um nariz para cheirar. Esta desconstrução cria parcializações infinitas e muitas vezes, irrecuperáveis. As atitudes transformadoras iniciam quando alguma força de coesão surge. Buscar polarizantes, deter a fuga, é necessário para desencadear mudanças nestes casos e sempre. Como costumo dizer, se considerarmos droga como sinônimo de remédio, como sinônimo de alívio, precisamos verificar seus efeitos colaterais; se pensarmos em droga como fonte de prazer, teremos que arrancar o homem do vazio das gratificações e satisfações, teremos que humanizá-lo; e enfocando droga como índice de transgressão, é necessário verificarmos o que foi transgredido.
Independente do aspecto orgânico do vício (dependência química reforçada pelo núcleo acumbente) sua vivência é psicológica e qualquer psicologia que reduza o ser humano à sua condição biológica ou à sua condição social, cultural, econômica, falha, pois parcializa, limita o humano às contingências e necessidades satisfeitas ou insatisfeitas, oferecendo apenas soluções adaptadoras. A fuga da realidade é transformada quando existe questionamento, aceitação, vivência do presente, ou seja, quando existem estruturantes de autonomia, estruturantes de possibilidade de relacionamento.
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