segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Vera Felicidade de Almeida Campos / Caráter, força e debilidade

Caráter

Força e debilidade

4 JANEIRO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS

Noções de caráter, temperamento, vocação, índole, enfim, situações prévias determinadoras de comportamento e motivação humana são uma constante no pensamento leigo e infelizmente, também no pensamento psicológico. A tentativa de entender os problemas humanos, em geral, baseia-se em idéias de causa, de elementos determinantes da realidade, de anterioridade e substancialidade como fundamentos explicativos dos acontecimentos presentes, gerando tipificações, preconceitos e justificativas.
Perceber e entender o que existe, através de sua evidência, é atitude fenomenológica defendida por Edmund Husserl, mas que foi pouco compreendida e aceita neste universo de causalismo elementarista. Para Husserl, o que existe aparece, se evidencia e isto traz toda a configuração, toda fisionomia que o identifica, individualiza e caracteriza.
Entender caráter como estígma criou teorias preconceituosas, classificações nada científicas, embora adotadas desde muito tempo pela ciência, como é o caso de Cesare Lombroso, que decidia a superioridade e inferioridade de seres e raças pela variação das medidas lobo frontal, lobo occipital e outras medidas do crânio, criando uma classificação responsável por traços de caráter. Seus estudos influenciaram, durante décadas, a criminologia e sistemas jurídicos ocidentais, com a priori, com explicações a respeito de “personalidades criminosas” e “caráter predisposto ao crime”.
A idéia de temperamento também é responsável pela explicação apriorística de comportamentos humanos. Atualmente, o conceito de temperamento é um dos pilares das DSMs (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), manual que é referencia mundial para tipificação e diagnóstico de transtornos psiquiátricos, que nos últimos anos vem recebendo inúmeras críticas e acusações de que suas definições das desordens mentais variam em função dos melhores encaixes mercadológicos para ampliação da venda de medicamentos.
A diferença entre os homens não consiste em seu aspecto físico, racial, tampouco em sua condição social e econômica. A diferença entre os homens consiste na sua humanização e desumanização. Tornar-se cruel, desumano, acontece em qualquer lugar do mundo, em qualquer sistema social e econômico; resulta sempre de transformar possibilidades relacionais em contingências necessárias, onde a sobrevivência se impõe e este processo se verifica tanto na pessoa mais lúmpen (miseráveis, escória social), quanto nas detentoras das maiores riquezas, geralmente fortunas construídas pelo uso e apropriação do outro. Atualmente ainda vemos, em vários quadrantes do planeta, o tráfico de pessoas, indivíduos que aproveitam a fome, o medo, a ignorância, que utilizam seres humanos transformando-os em resíduos, em matéria-prima e meio de ganhar dinheiro, transportando-os em balsas, vendendo seu trabalho, transformando-os em escravos, prostitutas, doadores de órgãos etc. Crueldades como estas não decorrem de “traços de caráter”, de “caráter fraco”, de variações temperamentais ou de aspectos inatos; decorrem sim, da desumanização criada pela ganância focada na sobrevivência e satisfação de necessidades.
A força ou fraqueza humanas não resultam de um dom, de uma característica inata (caráter, temperamento). Elas resultam de como nos relacionamos uns com os outros e com o mundo. Aceitar limites, integrar possibilidades, questionar usos e abusos cria novas perspectivas, estabelece relações configuradoras de ânimo, consistência, aceitação das frustrações e transformação das mesmas.
Ser forte é se aceitar como humano, ser fraco é querer ser reconhecido como humano, é instrumentalizar este reconhecimento, esta marca humana. Viver a contingência, a ferocidade de sistemas enquanto continuidade, sem posicionamentos fragmentadores, impede a construção de bunkers que isolam o indivíduo e dificultam a participação do semelhante, criando espelhos despersonalizadores.
Força é aceitar o impasse, por exemplo; fraqueza é dele fugir, criando justificativas e deslocamentos impeditivos da antítese que transforma, que traz o novo quando os impasses, os limites, as dificuldades são enfrentadas.

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