sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Hedonismo alienante / Desejos e barganhas

Toni Servillo em A grande beleza

Hedonismo alienante

Desejos e barganhas

4 MAIO 2015, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS

Tudo que se quer ou que não se quer é passível de ser desejado ou rejeitado pelo outro. Este é um dos contextos onde as trocas e relacionamentos ocorrem. A comercialização de bens, de mercadorias é sempre uma troca, geralmente viabilizada pelo dinheiro. A moeda, os padrões de aquisição permitem a circulação de produtos e idéias nas sociedades.
A comercialização foi ampliada, atingindo também os relacionamentos humanos. É cada vez mais frequente trocar afetos e experiências sexuais, transformá-las em objeto de consumo, onde o preço varia em função de habilidades e enganos admitidos. É uma prática existente no dia a dia das sociedades, evidente entre prostitutas e michês, menos explícita ou não rotulada em outros relacionamentos. Muitos casamentos, uniões estáveis, amizades inabaláveis, compromissos seculares são acertos estabelecidos em barganhas não explicitadas.

Anita Ekberg em La Dolce Vita

O mundo moderno, no século XXI, facilita o que antes era problemático, quebra tabus, mas possibilita distorções: o prazer, o desejo podem ser realizados em uma rápida discagem ou digitação, conseguindo o que se precisa, na hora que se quer. Esta facilitação, frequentemente, impede a vivência autêntica, a vivência legítima. Tudo é produzido, até mesmo o desejo. Ao indivíduo só resta administrar e criar recursos: desde o dinheiro, às motivações para ter desejos e para realizá-los. São máquinas desejantes, como falavam Guattari e Deleuze, só que não mais resultantes de traumas e experiências anteriores, mas sim, guiadas por selos de garantia, slogans de felicidade, de liberdade sem preconceitos. Estes paraísos anunciados criam demandas, motivam. Os protagonistas não são apenas os considerados pervertidos, são, principalmente, curiosos motivados por ter experiências sem continuidade, sem compromisso, quase anônimas, apenas marcadas por prazer, onde o outro é transformado em um objeto, um produto a ser consumido, mesmo que isto implique em sua destruição após descarte.
O ser humano conseguiu encurtar a distância entre a fonte de produção e o consumo do produto, ao virar ele próprio, produto, produzido para produzir. Vivendo para o prazer que satisfaz, consequentemente apenas para realizar o que dá prazer, se autoconsome pelo posicionamento autorreferenciado, criado pela perda da dinâmica, pela inexistência do outro, reduzido a uma única dimensão: fonte de prazer. É o equivalente da síndrome autoimune, onde o próprio organismo se devora. Mercantilizar afetos, negociar relacionamentos e desejar satisfação é paradoxal, esvazia a própria barganha, cria autômatos dependentes do outro, assim como, automatizados dependentes da aleatória cotação de mercadorias: qualquer coisa serve e torna-se necessária. Uniões que acontecem em função de acertos, são, por definição, contingentes, consequentemente, flutuantes, e assim, para mantê-las, suge a necessidade de contratos, compromissos e ilusões. É uma perversão que também cria pontos de resistência, como por exemplo: esperar consideração, esperar ter prazeres no que é dado, no que é disponibilizado, mesmo que tudo seja realizado através de engano. Entrar neste processo requer constante verificação, requer garantias para assegurar novas barganhas; não há liberdade, não há amor, só existe ansiedade e compromisso.

Dona Flor e Seus Dois Maridos

Não se pode dar o que não se tem; não se pode ligar quando não existem elos; não é possível continuidade na dispersão; não é possível humanidade quando esta foi perdida nas trocas aliviantes, nas sedações alienantes dos desejos e possibilidades. É o império da automação, que dirige a maneira alienada, coisificada de se situar em relação ao outro. As drogas lícitas e ilícitas, as dependências afetivas, as insatisfações sexuais, o medo e o desespero são os sintomas resultantes e denunciadores de todo este processo de desumanização.


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