Por que gostei tanto de Emilia Pérez, por Isabel Lustosa
Em mais uma atualização do dia, publicamos um comentário de Isabel Lustosa, da Universidade Nova de Lisboa, sobre o recém-lançado filme Emilia Pérez, dirigido pelo cineasta francês Jacques Audiard. O filme, que tem gerado polêmica na atual temporada de premiações do cinema, se propõe a abordar temas como representação cultural, identidade de gênero e violência relacionada ao narcotráfico no México. A despeito das controvérsias, Lustosa defende que Emilia Pérez, por se tratar de um musical e uma obra de ficção, possui uma característica alegórica inerente, contribuindo de forma muito feliz para tornar a inverossimilhança da história aceitável e descortinar temas sensíveis aos mexicanos.
Boa leitura!
Por que gostei tanto de Emilia Pérez
Por Isabel Lustosa
Universidade Nova de Lisboa)
Eu não ia ver o filme. Mas o convite de Ângela Porto para encontrá-la no recém-inaugurado Cinema José Wilker, em Laranjeiras, me convenceu. Fui para encontrar a amiga e conhecer o lugar. As críticas e a sinopse do filme não me animavam. Afinal, a história de um traficante poderoso e crudelíssimo – daqueles que usam os restos de suas vítimas para alimentar seus cães –, que resolve virar mulher, era algo tão bizarro que ultrapassava o racionalmente aceitável. Houve quem dissesse que o filme, por ser feito por um francês, não apresentava o verdadeiro México. Havia lido também sobre o fato de se tratar de um musical que misturava todos os ingredientes acima com a terrível história do desaparecimento, em 2014, de 43 jovens estudantes cujos restos mortais nunca foram encontrados. Os críticos acharam um desrespeito. A isto somou-se o fato de terem vindo à tona declarações da atriz que faz a protagonista, a mulher trans Karla Sofía Gascón, em que teria feito comentários contra muçulmanos e negros nas redes sociais.
Começando por esse ponto. Costuma-se dar exagerada importância ao que dizem os atores. Tenho grande respeito por essa nobre e difícil profissão, em geral, tão mal remunerada. Alguém que escolhe ser ator se joga em um futuro de incertezas que, se não pertencer a uma família de posses, pode fazer com que termine sua existência em condições bem precárias. Só uma grande vocação ou uma paixão muito intensa podem motivar essa escolha. E, no entanto, graças a esses heroicos aventureiros, temos uma vida cultural riquíssima que serve de alento à humanidade, especialmente em momentos desalentadores como o que vivemos.
Pela natureza da profissão, acredito que não se pode cobrar que os atores correspondam, na vida real, à imagem idealizada que, a partir dos grandes personagens que interpretaram, criamos deles. O ator tem que ter versatilidade, capacidade de interpretar o melhor dos mocinhos e o pior dos vilões sem se apegar ao personagem. Uma vez li uma entrevista de Marcello Mastroianni em que ele recomendava: não confie em ator. Talvez o conselho fosse direcionado às mulheres, mas vindo de alguém com tanto prestígio na profissão, parecia um diagnóstico do que a profissão podia fazer com a personalidade de seus escolhidos.
Por isso, costumo relevar o que alguns atores famosos disseram ou fizeram em relação à política recente. Claro que esse desconto não vale para pessoas que se tornaram propagandistas ativos da extrema direita ou de suas bandeiras. Não vou nomear duas atrizes globais que tanto confundiram suas imagens com o bolsonarismo e que, com isto, contaminaram para sempre tudo que fazem com essa opção política. Mas cancelar a grande Nathalia Timberg – cujo nome guardei desde a infância quando a vi em uma novela com o misterioso título de “A ré misteriosa” (eu não sabia o que era “ré”) –, jamais me passou pela cabeça. E, em 2013, ela se prestou – gosto de acreditar que por insistência de seus patrões – a aparecer com outras atrizes, todas vestidas de preto na campanha intensiva contra o PT que culminou no impeachment de Dilma Rousseff.
Feito esse parêntese, volto ao filme Emilia Pérez.
Gostei de tudo que vi. As atrizes são maravilhosas; os números musicais são bem inseridos e econômicos; as canções e as danças são ótimas; a história envolve e prende o espectador do começo ao fim. Estive poucas vezes no México, mas o que vi me pareceu muito com o que conheci lá. O fato de ser um musical contribui de forma muito feliz para tornar a inverossimilhança da história algo bastante palatável. Serve de alerta: trata-se de uma obra de ficção. Trata-se de uma alegoria. E faz com que a transformação do homem corpulento, de pele áspera, de voz grave e roufenha, na bela, charmosa e feminina, mas algo corpulenta, Emilia Pérez, seja aceitável.
Nos diálogos com a advogada e, depois, com o médico que fará as cirurgias, em que Manitas – apelido do criminoso – explicita as razões pelas quais quer virar mulher, está a essência do filme. O monstruoso assassino trazia desde sempre, dentro de si, uma mulher. Não somente uma mulher fisicamente bela e desejável, mas também alguém com características de personalidade opostas às do homem que ele era: a vontade de agradar, a capacidade de perdoar e o desejo de corrigir injustiças.
O amor pelos filhos, no entanto, amor de pai que sempre existira e que não é estranho à atividade criminosa – veja-se a família do Poderoso Chefão, por exemplo – faz com que ponha em risco todo o projeto. Esse amor correspondido é o tema da cena e da canção mais bonita do filme. O momento em que Emilia Pérez nina um dos meninos para que ele durma e ele diz que gosta do cheiro dela, porque esse cheiro lembra o do pai, vai evocando coisas da natureza ou dos hábitos que ambos partilharam no passado.
Também resulta feliz o número musical magnífico de Zoe Saldaña – que interpreta a advogada – na festa para arrecadar fundos para o projeto de busca e identificação dos restos mortais das tantas vítimas do tráfico, inclusive os 43 estudantes mencionados acima. A contradição de reunir autoridades e a elite endinheirada mexicana que, direta ou indiretamente, estava associada às injustiças que se procurava corrigir, é típica. Realidade que Emilia Pérez explicita para a advogada Rita Castro como algo que não tem muito jeito. Como aqui entre nós, por exemplo.
Não concordo com as críticas que consideraram uma profanação misturar a história de uma mulher trans com esse tema tão sofrido para os mexicanos. Acho até que é uma forma de preconceito. Como se a mulher trans fosse uma ebookaberração pior que o traficante e que não fosse digna de figurar em um drama em que, depois de morta, se transforma em uma santa popular. Assim como em outros casos que nos chegam pelos jornais de forma cada vez mais indiferente, pelo tanto que se repetem, sempre ouvimos falar sobre os 43 estudantes sem conseguir dedicar mais tempo a refletir sobre isso. Emilia Pérez, com todas as suas contradições, desenterra esses mortos e obriga o mundo a pensar sobre eles
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