quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Casa de citas / Truman Capote e Marilyn Monroe

 

Marilyn Monroe y Truman Capote


TRUMAN CAPOTE

E MARILYN MONROE

Truman Capote nunca foi um grande dançarino. Mas naquela noite, ele bem que tentou. Girou desajeitadamente pelo salão, guiando Marilyn Monroe em uma valsa que tinha menos de coreografia e mais de súplica. Ele queria convencê-la a interpretar Holly Golightly na adaptação cinematográfica de seu livro Breakfast at Tiffany’s, conhecido no Brasil como Bonequinha de Luxo.  

E, de fato, Marilyn era perfeita para o papel. Havia nela a doçura ingênua e o brilho sedutor que faziam Holly parecer ao mesmo tempo uma miragem e uma mulher de verdade. Mas havia também a melancolia — aquela sombra sutil nos olhos de quem sabe que a beleza e o desejo têm prazo de validade.  

Capote via tudo isso. Ele entendia Holly porque entendia Marilyn. Mas nem sempre o que está na tela da mente de um escritor se traduz no roteiro da vida real.  

A coach da atriz, no papel de oráculo, decretou: "Não aceite. O personagem não pega bem." 

E assim, Marilyn recusou.  

O papel foi para Audrey Hepburn, que o vestiu como um vestido Givenchy: com elegância e um toque de intocabilidade. Ela transformou Holly em algo tão etéreo que o mundo não conseguiu mais enxergá-la de outra forma.  

Mas e Marilyn? O que teria sido de sua carreira se tivesse aceitado? Teria finalmente conquistado o reconhecimento da Academia, que nunca lhe concedeu nem mesmo uma indicação ao Oscar? Teria mostrado ao mundo que era muito mais do que um rosto bonito, um corpo escultural e uma voz infantilizada? Ou teria se perdido ainda mais em um papel que, ironicamente, espelhava sua própria fragilidade?  

Nunca saberemos.  

No fim, a vida é feita dessas danças interrompidas, dessas portas que se fecham sem saber sequer se deveríamos ter entrado. Capote dançou, quase capotou, mas não convenceu. Marilyn sorriu, mas recusou. Audrey abraçou e se deu bem. E o mundo seguiu sem nunca descobrir como teria sido essa história em um tom de batom 


Facebook / A Toca do Lobo



terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Por que gostei tanto de Emilia Pérez



Por que gostei tanto de Emilia Pérez, por Isabel Lustosa


Em mais uma atualização do dia, publicamos um comentário de Isabel Lustosa, da Universidade Nova de Lisboa, sobre o recém-lançado filme Emilia Pérez, dirigido pelo cineasta francês Jacques Audiard. O filme, que tem gerado polêmica na atual temporada de premiações do cinema, se propõe a abordar temas como representação cultural, identidade de gênero e violência relacionada ao narcotráfico no México. A despeito das controvérsias, Lustosa defende que Emilia Pérez, por se tratar de um musical e uma obra de ficção, possui uma característica alegórica inerente, contribuindo de forma muito feliz para tornar a inverossimilhança da história aceitável e descortinar temas sensíveis aos mexicanos.

Boa leitura!


Por que gostei tanto de Emilia Pérez

Por Isabel Lustosa 

Universidade Nova de Lisboa)

Eu não ia ver o filme. Mas o convite de Ângela Porto para encontrá-la no recém-inaugurado Cinema José Wilker, em Laranjeiras, me convenceu. Fui para encontrar a amiga e conhecer o lugar. As críticas e a sinopse do filme não me animavam. Afinal, a história de um traficante poderoso e crudelíssimo – daqueles que usam os restos de suas vítimas para alimentar seus cães –, que resolve virar mulher, era algo tão bizarro que ultrapassava o racionalmente aceitável. Houve quem dissesse que o filme, por ser feito por um francês, não apresentava o verdadeiro México. Havia lido também sobre o fato de se tratar de um musical que misturava todos os ingredientes acima com a terrível história do desaparecimento, em 2014, de 43 jovens estudantes cujos restos mortais nunca foram encontrados. Os críticos acharam um desrespeito. A isto somou-se o fato de terem vindo à tona declarações da atriz que faz a protagonista, a mulher trans Karla Sofía Gascón, em que teria feito comentários contra muçulmanos e negros nas redes sociais.

Começando por esse ponto. Costuma-se dar exagerada importância ao que dizem os atores. Tenho grande respeito por essa nobre e difícil profissão, em geral, tão mal remunerada. Alguém que escolhe ser ator se joga em um futuro de incertezas que, se não pertencer a uma família de posses, pode fazer com que termine sua existência em condições bem precárias. Só uma grande vocação ou uma paixão muito intensa podem motivar essa escolha. E, no entanto, graças a esses heroicos aventureiros, temos uma vida cultural riquíssima que serve de alento à humanidade, especialmente em momentos desalentadores como o que vivemos.

Pela natureza da profissão, acredito que não se pode cobrar que os atores correspondam, na vida real, à imagem idealizada que, a partir dos grandes personagens que interpretaram, criamos deles. O ator tem que ter versatilidade, capacidade de interpretar o melhor dos mocinhos e o pior dos vilões sem se apegar ao personagem. Uma vez li uma entrevista de Marcello Mastroianni em que ele recomendava: não confie em ator. Talvez o conselho fosse direcionado às mulheres, mas vindo de alguém com tanto prestígio na profissão, parecia um diagnóstico do que a profissão podia fazer com a personalidade de seus escolhidos.

Por isso, costumo relevar o que alguns atores famosos disseram ou fizeram em relação à política recente. Claro que esse desconto não vale para pessoas que se tornaram propagandistas ativos da extrema direita ou de suas bandeiras. Não vou nomear duas atrizes globais que tanto confundiram suas imagens com o bolsonarismo e que, com isto, contaminaram para sempre tudo que fazem com essa opção política. Mas cancelar a grande Nathalia Timberg – cujo nome guardei desde a infância quando a vi em uma novela com o misterioso título de “A ré misteriosa” (eu não sabia o que era “ré”) –, jamais me passou pela cabeça. E, em 2013, ela se prestou – gosto de acreditar que por insistência de seus patrões – a aparecer com outras atrizes, todas vestidas de preto na campanha intensiva contra o PT que culminou no impeachment de Dilma Rousseff.

Feito esse parêntese, volto ao filme Emilia Pérez.

Gostei de tudo que vi. As atrizes são maravilhosas; os números musicais são bem inseridos e econômicos; as canções e as danças são ótimas; a história envolve e prende o espectador do começo ao fim. Estive poucas vezes no México, mas o que vi me pareceu muito com o que conheci lá. O fato de ser um musical contribui de forma muito feliz para tornar a inverossimilhança da história algo bastante palatável. Serve de alerta: trata-se de uma obra de ficção. Trata-se de uma alegoria. E faz com que a transformação do homem corpulento, de pele áspera, de voz grave e roufenha, na bela, charmosa e feminina, mas algo corpulenta, Emilia Pérez, seja aceitável.

Nos diálogos com a advogada e, depois, com o médico que fará as cirurgias, em que Manitas – apelido do criminoso – explicita as razões pelas quais quer virar mulher, está a essência do filme. O monstruoso assassino trazia desde sempre, dentro de si, uma mulher. Não somente uma mulher fisicamente bela e desejável, mas também alguém com características de personalidade opostas às do homem que ele era: a vontade de agradar, a capacidade de perdoar e o desejo de corrigir injustiças.

O amor pelos filhos, no entanto, amor de pai que sempre existira e que não é estranho à atividade criminosa – veja-se a família do Poderoso Chefão, por exemplo – faz com que ponha em risco todo o projeto. Esse amor correspondido é o tema da cena e da canção mais bonita do filme. O momento em que Emilia Pérez nina um dos meninos para que ele durma e ele diz que gosta do cheiro dela, porque esse cheiro lembra o do pai, vai evocando coisas da natureza ou dos hábitos que ambos partilharam no passado.

Também resulta feliz o número musical magnífico de Zoe Saldaña – que interpreta a advogada – na festa para arrecadar fundos para o projeto de busca e identificação dos restos mortais das tantas vítimas do tráfico, inclusive os 43 estudantes mencionados acima. A contradição de reunir autoridades e a elite endinheirada mexicana que, direta ou indiretamente, estava associada às injustiças que se procurava corrigir, é típica. Realidade que Emilia Pérez explicita para a advogada Rita Castro como algo que não tem muito jeito. Como aqui entre nós, por exemplo.

Não concordo com as críticas que consideraram uma profanação misturar a história de uma mulher trans com esse tema tão sofrido para os mexicanos. Acho até que é uma forma de preconceito. Como se a mulher trans fosse uma ebookaberração pior que o traficante e que não fosse digna de figurar em um drama em que, depois de morta, se transforma em uma santa popular. Assim como em outros casos que nos chegam pelos jornais de forma cada vez mais indiferente, pelo tanto que se repetem, sempre ouvimos falar sobre os 43 estudantes sem conseguir dedicar mais tempo a refletir sobre isso. Emilia Pérez, com todas as suas contradições, desenterra esses mortos e obriga o mundo a pensar sobre eles

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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Karla Sofía Gascón /Cancelaciones buenas y malas

 


Karla Sofía Gascón’s Oscar
Karla Sofía Gascón, el 15 de enero durante la presentación de 'Emilia Pérez' su película en Ciudad de México.MEDIOS Y MEDIA (GETTY IMAGES)


Karla Sofía Gascón: cancelaciones buenas y malas

El escarnio público está de moda incluso entre quienes se tienen por abiertos y progresistas


Najat El Hachmi
NAJAT EL HACHMI
14 FEB 2025 - 05:00 CET

Bertrand Russell me da claves para entender el presente cuando dice que “el fanatismo es un camuflaje de la crueldad”. Es de crueles fanáticos pretender que cualquier persona con visibilidad pública sea moralmente inmaculada. No me hace falta que el fontanero piense como yo para que me arregle un grifo ni que alguien que se dedica a la interpretación tenga ideas “correctas”. Lo que más se desprende del caso Karla Sofía Gascón es el alcance descomunal que tiene la hipocresía en nuestros tiempos. El concepto de delito de opinión se parece a aquello tan extraño de “pecar de pensamiento” y socava la libertad de expresión de todos. La tolerancia a lo que no nos gusta forma parte de ese derecho, pero el escarnio público está de moda incluso por parte de quienes se tiene por abiertos y progresistas. ¡A los leones! Gritan para que se note que ellos están del lado de las víctimas, ellos son buenos. No caben matices ni la complejidad. Todos los promotores y partidarios de cancelaciones a diestro y siniestro será que están libres de todo pecado y por eso tiran no solo la primera piedra sino que arrojan todas las que pueden con una furia primitiva. Hay que aniquilar al impuro para que los dioses vuelvan a bendecirnos. Eso sí, les molesta que Karla Sofía Gascón diga que hay que expulsar a los moros, pero no parece que les escandalice ni la explotación laboral de las temporeras ni los encarcelamientos de inocentes sin juicio ni sentencia que habitan en los CIE. Es más importante el lenguaje.

Algunas voces han salido a pedir compasión por la trans defenestrada, les parece una exageración que se condene así a una persona por difundir ideas odiosas. Parece que hay cancelaciones buenas y cancelaciones malas y la empatía es discrecional, según si nos gusta más o menos la persona de quien se pide la muerte civil (o física, en algunos casos). Ninguno de estos partidarios del perdón y la comprensión dijeron ni media palabra cuando un monigote que representaba a Carmen Calvo apareció colgado de un árbol, cuando Lidia Falcón fue expulsada de Izquierda Unida, Amelia Valcárcel del Consejo de Estado. Nada expresaron cuando Marcela Lagarde vio interrumpida su charla en la universidad o cuando a Juana Gallego se le impidió dar clases en el máster de comunicación y género que ella misma había creado. Solo hubo silencio cuando a Silvia Carrasco se le impidió seguir con su curso de antropología. Y no me suena que nadie, salvo las feministas, protestara porque se pidiera quemar los libros de J.K. Rowling.


EL PAÍS 



José María Zonta


Emily Blunt

 José María Zonta

POEMA


Não entres como turista no coração de uma mulher

a bater fotos

a deixar latas de cerveja

buscando só imensas catedrais

e estátuas transparentes


com a mochila cheia de mapas

e fazendo refeições ligeiras


há um país

sete cidades

uma cordilheira e um inverno

no coração duma mulher


não bebas aí só um copo de mar


não entres no avião

toma o comboio da meia-lua

não reveles ali tuas fotos na hora


se não fizer muito frio

entra nu


não leves chapéu-de-chuva

e sobretudo não cortes árvores

no coração duma mulher

não costumam voltar a crescer.


José María Zonta

(tradução de Élia Calvo)