terça-feira, 27 de junho de 2017

Brasigois Felício / Tempo e memória


Tempo e memória

Brasigois Felício
16/02/2009 ÀS 09:38 PM

“Porque o tempo é uma invenção da morte/ não o conhece a vida/ a verdadeira/ em que basta um minuto de poesia/ para nos dar a vida inteira”. (Mário Quintana). O tempo é o maior dos mistérios desta vida. É Cronos a comer os seus filhos. Dele muito se fala sem saber o que de fato é. Conceitualmente, tempo é a medida do movimento no espaço. Dele raramente se fala como sendo filho ou pai da memória. Os Upanixades, Helena Blavatsky, Bérgson, Hegel, Marcel Proust, memorialistas como Pedro Nava, cientistas, filósofos. O tempo é a matéria dos poetas. E não só o tempo da vida presente  – nunca se parou de falar sobre o tempo e a natureza da memória. E não se falou tudo. 
O que fez Marcel Proust, ao concluir sua busca do tempo perdido? Colocar mais tempo na mente. Na dele e na caraminhola dos que leem os cartapácios de sua catedral de palavras. Tanto assim que morreu de overdose, ou de tanto não transar com Albertine, que talvez tenha sido ele próprio. O filme “O Curioso Caso de Benjamin Button” levanta reflexões sobre a inexorabilidade do tempo que passa, a consumir nossas vidas. O mais difícil, nos trabalhos e nos dias (evoé, Hesíodo!), é conquistar o presente que se tem. No mais das vezes, por pura inconsciência e mecanicidade de nossa existência, o presente não é desfrutado nem vivido pela pessoa que o tem.
Pois estamos sempre no futuro ou no passado, a imaginar quimeras, projetar situações ideais de vida, em nossa insatisfação constante. Saber gastar o tempo que se tem é uma forma sábia de não ser perdulário com um valor que, uma vez desperdiçado, não pode ser recuperado. Gastar o tempo com sabedoria é ganhá-lo, impedir que se perca inutilmente. O caminho sábio é preenchê-lo com o ócio criativo. O mitólogo Viktor D. Salis enfatiza: “gastar tempo não gera lucro, mas é a única forma de podermos instalar uma busca criadora em nós e nos outros, em que é possível a criação e a reconstrução”.    
Helena Blavatsky, no capítulo Cosmogênese, de sua monumental “A Doutrina Secreta”, assim leu nas Estâncias de Dzian, sobre a noite do universo: “O Pai Eterno envolto em suas roupas sempre invisíveis, repousou mais uma vez durante sete eternidades. Não existia o tempo, que dormia no seio infinito da duração. Não existiam seres universais, porque não existiam seres celestiais para contê-la”. Desçamos, porém, ao nosso planeta azul devastado pelo Homo Sapiens – fiquemos na dimensão da realidade onde o tempo pode ser percebido.
Só há tempo onde há espaço e movimento. Mas há o tempo psicológico que se manifesta na mente, como pensamentos, sensações, emoções como medo, ansiedade, expectativa, irritação.  Assim, o tempo pode ser dilatado ou abreviado, sendo a situação em que vivemos agradável ou desagradável. Aumenta ou diminui a depender do modo como é sentido. Em uma situação agradável e prazerosa, o tempo passa sem ser percebido. Horas parecem ter sido minutos. Mas em situações de estresse e sofrimento, dá-se o contrário: minutos são horas, horas parecem ter sido meses ou anos.
Ho Chi Min, líder revolucionário do Vietnã do Norte, foi aprisionado durante quase vinte anos. Um repórter perguntou como sentiu o tempo estando prisioneiro, e ele respondeu: “Quando se está na prisão o tempo é sempre longo”. Outros, vítimas do matrimônio monogâmico compulsivo, podem dizer: “Quando se está casado o tempo é sempre longo”.

A qualidade do tempo pode ser controlada, se nos mantivermos presentes quando coisas agradáveis ou desagradáveis nos acontecem. A quantidade de energia psíquica muda, a depender do modo como reagimos perante os fatos da vida. G. Gurdjieff. psicólogo russo, assinala: “Tente controlar sua reação ante alguma coisa ou pessoa que o irrita. Se quiser, conseguirá”.
O tempo da pessoa que, em uma pessoa, em uma fila de banco, põe-se a meditar, em serenidade mental, é diferente daquele que soterra e exaspera a mente estressada e irritada. Todos já tivemos experiências comprovadoras disto. Gestos ou falas de irritação contra a demora no andamento na fila, ou críticas ao desempenho dos caixas, por exemplo, são contagiosos, colocam as pessoas à volta na mesma disposição mental.
O tempo então torna-se mais “demoroso” e aflitivo, pois foi contaminado pelo crescimento da energia emocional de irritação. Esta se reproduz como onda, atinge pessoas sem que elas percebam – então, por puro automatismo, se põem a reclamar e a xingar, do mesmo modo que o irritador iniciador da contenda.

Vemos, assim, que, além do tempo cronológico, contido em cronos, ou no coração dos relógios, existe um tempo sobre o qual temos pouco controle: o tempo psicológico, que funciona com base em energia mental. A saída, em situações em que podemos ser arrastados pela energia mental coletiva de irritação e raiva, é nos manter tranqüilos, pensando em algo agradável, visualizando paisagens belas, ou mesmo apenas observando, sem julgar, o turbilhão dos pensamentos compulsivos. Assim esvaziamos a sua energia, e logo estamos serenos. Assim como a irritação é contagiosa, também o é a serenidade – o estressado estressante , em face de um comportamento gentil e amável, pode ficar constrangido e se dar conta de seu descontrole.

Conceder ou se permitir intervalos na falação mecânica e compulsiva também possibilita economizar energia psíquica, abrindo clareiras no turbilhão mental, de modo a desfrutarmos de paz e serenidade, em momentos em que isto parece difícil ou impossível. Nada é mais irritante do que uma falação incessante. Pois é sabido pelos que exercitam tal poder: o silêncio, assim como o tempo, pode ser qualificado. Fere mais do que todos os gritos, o silêncio ou o não-dito entre casais conflituosos, em permanente guerra conjugal. 
A qualidade do tempo no qual decorre nossa existência depende de circunstâncias, das pessoas que nos cercam, mas não só delas. Depende fundamentalmente de nós mesmos, uma vez que podemos não ser escravos das pessoas, reagindo como elas querem que o façamos. P.D. Ouspensky, físico russo, seguidor de Gurdjieff, explica: a energia das pedras de uma igreja não é a mesma que vibra nas pedras de uma prisão, ou a que existe nas paredes de um prostíbulo. Um homem que vai de manhã para o seu trabalho, está a gastar muito menos energia do que outro que brigou com o vizinho e vai à Delegacia denunciá-lo. 
Assim, convenhamos: difere em qualidade o silêncio a mente de uma pessoa que meditar, em oração pelo bem da humanidade, e a do criminoso ocasional ou contumaz, que está a planejar um assassinato. É um silêncio amoroso e atento, e a sabedoria que alcança vem das viagens que faz no desconhecido. O silêncio da mente meditativa vem do olhar profundo da pessoa que se faz presente no que faz e onde está – não é o silêncio turbulento de quem se deixa estagnar no pântano enganoso da memória.



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