quarta-feira, 21 de agosto de 2013

José Miguel Wisnik / O dia da marmota


José Miguel Wisnik
O colunista escreve aos sábados

O dia da marmota

A fantasia de escrever sobre um dia que se repete, no qual o tempo não sai da toca

O colunismo consequente recomenda que a redação do jornal tenha pré-pronta uma “coluna de gaveta” sua, para qualquer eventualidade em que você não possa escrevê-la ou enviá-la. Nunca tomei essa precaução, só escrevo sob a pressão do dia. Mas lamento a gaveta vazia em dias como hoje. Os ventos, bons, continuam me soprando pelo Nordeste do Brasil. Estou em Recife, trabalhando para o projeto do Museu Cais do Sertão Luiz Gonzaga, a ser inaugurado em dezembro, vendo cantadores de perto, repentismos alucinantes, acompanhando gravações que serão incorporadas ao Museu. Aprendendo como um louco, me divertindo, e mergulhado nisso. Quem me dera ser um repentista do jornalismo, mas eu não sou sequer um jornalista. A coluna de gaveta que eu teria escrito tem no entanto um título, e chama-se “O dia da marmota”.
Refere-se a um filme americano de 1993, uma comédia leve, em princípio, que no Brasil chamou-se “Feitiço do tempo” (no original, “Groundhog Day”). O egocêntrico “homem do tempo” de uma rede de TV vai fazer a cobertura de um evento anual cercado pela expectativa de saber se, num certo dia preciso de inverno, a marmota — uma espécie de esquilo — sai ou não da toca. Se ela sair, mesmo em meio ao nevoeiro, anuncia o fim iminente do inverno. Se se assustar com a própria sombra e voltar para a toca, mesmo que haja sol, pode-se contar que o inverno dura mais seis semanas.
Vi o filme uma vez só, na época em que foi lançado. Não estou seguro do que me lembro, mas seguríssimo do que não esqueci mais. A marmota sai ou não sai da toca, não sei, mas no dia seguinte o homem do tempo é despertado, no hotel da localidade em que vigora a tal tradição, por um rádio-relógio que anuncia, para seu desconcerto, um novo dia da marmota — que é o mesmo. Sem maior razão, é o tempo que não sai da toca, e começa a se repetir em círculos diários. O protagonista é obrigado a experimentar, todos os dias, o mesmo dia da marmota. Aos poucos, começa a interagir com as situações que já conhece, a tirar partido delas e a fazer algum avanço, embora tudo recomece igual no dia seguinte do dia seguinte.
Gosto de comédias como essa, que roçam alguma metafísica, um enigma, sem sair dos protocolos narrativos habituais. Lembro também de um outro filme (“Alguém lá em cima gosta de mim”), em que Deus comparece como um senhor aposentado, de boné e tênis, poderoso na sua singeleza comum, que pra mim é hilariante e poética. A versão superior de tudo isso, de graça e profundidade transcendentes, é o “Depois da vida”, do cineasta japonês Kore Eda, em que as pessoas que morrem chegam a uma espécie de repartição pública decadente onde são chamadas a escolher uma cena única das suas existências, a partir da qual será rodado ali mesmo um filmeco que a evoca, com recursos precários, e que será a única coisa que elas levarão consigo quando desligadas definitivamente do tempo.
Volto ao “Dia da marmota”. Toda semana é como se eu fosse despertado por um rádio-relógio imaginário que me repete inapelavelmente: “Bom dia! Hoje é quinta-feira. Dia de escrever a coluna do GLOBO. Não se esqueça do seu compromisso”. A última frase é a repetição do aviso de despertar, cheio de solicitude e gentil advertência, que escuto quando estou no Hotel Novo Mundo, no Flamengo.
Por onde o filme me pega e fica: ao longo dos dias repetitivos, o homem do tempo tenta xavecar uma jornalista que também faz a cobertura do rito climático. De um jeito ou de outro ele erra sempre na medida, sempre há alguma coisa que ele deveria ter entendido e não entendeu, desde os níveis primários aos mais avançados. Até que um dia, à custa de muito repetir, esse tosco transpõe algum limiar de entendimento, e finalmente o dia seguinte é o dia seguinte, um outro dia que não mais o da marmota.
Será então que um homem precisa, pergunto eu, que o tempo pare e se repita, que ele precisa, em suma, de mil e um dias da marmota quando encontra uma mulher que marcará sua vida? Essa é a piada verídica que a lembrança desse filme me traz. Para mim ela é de uma verdade transparente e dupla. Confissão: fiquei viúvo aos 33 anos, e cada dia que passa compreendo mais claramente o quanto faltou para eu atingir o degrau da vida em que se encontrava aquela mulher. Tive uma segunda chance: me casei de novo, há vinte e oito anos, e não venho me saindo mau aprendiz. Revelação ao buscar hoje informações sobre o filme no Google: o dia em que me casei, o 2 de fevereiro, dia de festa no mar, é a data do próprio dia da marmota.
Com o tempo o tempo te traz ao eterno retorno. As narrativas já estão vividas. É quando você se sente algo assim como um Deus aposentado, de tênis e todo poderoso.

O GLOBO




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