sábado, 26 de outubro de 2013

Evandro Affonso Ferreira / Romance ganhador do Jabuti tem olhar poético sobre excluídos


Evandro Affonso Ferreira
Romance ganhador do Jabuti 
tem olhar poético sobre excluídos

Premiado esta semana, romance de Evandro Affonso Ferreira representa guinada no estilo de autor conhecido por humor, lirismo e invenção verbal



Por Ronaldo Cagiano

Durante mais de uma década o ex-publicitário paulista Evandro Affonso Ferreira foi gerente de livraria e dono dos sebos Sagarana e Avalovara, que se converteram em ponto de encontro de amigos e escritores no bairro de Pinheiros. Por sua ligação visceral com a palavra, dedicou-se a explorar o diversificado universo do nosso idioma. Meio escafandrista, meio Quixote, alimentou seu dicionário particular após mergulhar em livros antigos, prospectando uma dicção inusitada e pouco corrente, resgatando expressões singulares que haviam caído em desuso ou no esquecimento. Desse léxico, garimpou termos que utilizaria no título de alguns de seus romances e como recurso semântico capaz de comunicar toda a carga de impacto e estranhamento dos dilemas humanos que pontuava em sua ficção.



Autor de obras originais, detido na linguagem e numa prosa de atmosfera e viés metalinguístico mais do que no enredo, sobre os dramas pungentes que escreveu incorporou uma matriz literária também desconcertante, criando uma espécie de estética do desassossego. Daí resultam o minimalismo estiloso dos contos de “Grogotó” (2000) e a temática escatológica e de construção refinada dos romances “Araã!” (2002), “Erefuê” (2004), “Zaratempô” (2005) e “Catrâmbias” (2006). Por esse conjunto recebeu de Millôr Fernandes o epíteto de “o vivificador das palavras”, genializando suas extrações do aluvião vernacular.




elogio da loucura


O seu processo criativo sofreu uma guinada, representando verdadeira metamorfose formal e temática com a publicação de “Minha mãe se matou sem dizer adeus” (Ed. Record, 2010), primeira obra de uma trilogia existencial que abordará a vida dos excluídos afetivos, psicológicos e sociais, sem a escrita radical e hermética dos livros anteriores, interessado apenas no homem e seu destino. Recebido com entusiasmo pela crítica, conquistou o prêmio de melhor romance da APCA-2010, além de finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura. Retrata as inquietações de um narrador octogenário, nostálgico, deslocado e assíduo cliente da confeitaria de um shopping que, enquanto espera a morte, recorre às lembranças de sua vida, dialoga telepaticamente com os clientes e rumina a dor que o atormenta desde o suicídio da mãe.

Retomando a preocupação com o espólio das quedas e fracassos, lançou “O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam“, premiado esta semana com o Jabuti de melhor romance. Nessa escrita sofisticada, que mistura ironia e lirismo, vemos um narrador erudito que, tragado pelas contingências de uma débâcle pessoal, virou um sem-teto ao ser abandonado pela esposa, que deixou-lhe um bilhete lacônico e devastador: “Acabou-se: adeus”.

Afundado no pesadelo de seu desmoronamento, esse ser errante transforma-se num Sísifo obstinado, carregando nas costas as pedras de uma obcecada mas ilusória esperança do retorno da amada, conhecida apenas pela letra “N” grafitada nos muros da cidade. Para a absorção dolorosa de sua realidade, ele se nutre e se consola nos próprios delírios entoando um adágio, que repete como se fosse um refrão — “ela virá, eu sei”.

Sobrevivendo debaixo de um viaduto, convive com os seus próprios escombros e os destroços físicos e humanos da cidade, dividindo sua angústia com outras figuras apartadas. A relação é permeada por um discurso erudito e revelador de uma aguda observação do cotidiano, partilhada com interlocutores imaginários — o “senhor”, a “mulher molusco” e o “menino borboleta”, habitantes de sua íntima periferia. Em seu trânsito onírico recorre à reflexão filosófica sobre sua decadência e seus despojos por meio de alusões aos adágios do filósofo holandês, senha com a qual enfrenta a dureza dessa aniquilação, até o momento em que, derrotado pela insanidade, vê sua mente ser devorada pelos ratos, fim de toda a esperança.

Metáfora do sofrimento e da decrepitude individual numa sociedade fetichizada pelo absolutismo da tecnologia e do mercado, que avilta os sentimentos e banaliza os sonhos, o romance de Evandro Affonso Ferreira é também uma viagem sensível e poética à dimensão trágica da vida e um emocionado elogio da loucura que se esconde em nós.

Ronaldo Cagiano é autor de "Dicionário de pequenas solidões" (Língua Geral, Rio, 2006) e "O sol nas feridas" (Dobra Ideias, SP, 2011).





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