Evandro Affonso Ferreira
Romance ganhador do Jabuti
tem olhar poético sobre excluídos
Premiado esta semana, romance de Evandro Affonso Ferreira representa guinada no estilo de autor conhecido por humor, lirismo e invenção verbal
Por Ronaldo Cagiano
Durante mais de uma década o ex-publicitário paulista Evandro Affonso Ferreira foi gerente de livraria e dono dos sebos Sagarana e Avalovara, que se converteram em ponto de encontro de amigos e escritores no bairro de Pinheiros. Por sua ligação visceral com a palavra, dedicou-se a explorar o diversificado universo do nosso idioma. Meio escafandrista, meio Quixote, alimentou seu dicionário particular após mergulhar em livros antigos, prospectando uma dicção inusitada e pouco corrente, resgatando expressões singulares que haviam caído em desuso ou no esquecimento. Desse léxico, garimpou termos que utilizaria no título de alguns de seus romances e como recurso semântico capaz de comunicar toda a carga de impacto e estranhamento dos dilemas humanos que pontuava em sua ficção.
Autor de obras originais, detido na linguagem e numa prosa de atmosfera e viés metalinguístico mais do que no enredo, sobre os dramas pungentes que escreveu incorporou uma matriz literária também desconcertante, criando uma espécie de estética do desassossego. Daí resultam o minimalismo estiloso dos contos de “Grogotó” (2000) e a temática escatológica e de construção refinada dos romances “Araã!” (2002), “Erefuê” (2004), “Zaratempô” (2005) e “Catrâmbias” (2006). Por esse conjunto recebeu de Millôr Fernandes o epíteto de “o vivificador das palavras”, genializando suas extrações do aluvião vernacular.
elogio da loucura
O seu processo criativo sofreu uma guinada, representando verdadeira metamorfose formal e temática com a publicação de “Minha mãe se matou sem dizer adeus” (Ed. Record, 2010), primeira obra de uma trilogia existencial que abordará a vida dos excluídos afetivos, psicológicos e sociais, sem a escrita radical e hermética dos livros anteriores, interessado apenas no homem e seu destino. Recebido com entusiasmo pela crítica, conquistou o prêmio de melhor romance da APCA-2010, além de finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura. Retrata as inquietações de um narrador octogenário, nostálgico, deslocado e assíduo cliente da confeitaria de um shopping que, enquanto espera a morte, recorre às lembranças de sua vida, dialoga telepaticamente com os clientes e rumina a dor que o atormenta desde o suicídio da mãe.
Retomando a preocupação com o espólio das quedas e fracassos, lançou “O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam“, premiado esta semana com o Jabuti de melhor romance. Nessa escrita sofisticada, que mistura ironia e lirismo, vemos um narrador erudito que, tragado pelas contingências de uma débâcle pessoal, virou um sem-teto ao ser abandonado pela esposa, que deixou-lhe um bilhete lacônico e devastador: “Acabou-se: adeus”.
Afundado no pesadelo de seu desmoronamento, esse ser errante transforma-se num Sísifo obstinado, carregando nas costas as pedras de uma obcecada mas ilusória esperança do retorno da amada, conhecida apenas pela letra “N” grafitada nos muros da cidade. Para a absorção dolorosa de sua realidade, ele se nutre e se consola nos próprios delírios entoando um adágio, que repete como se fosse um refrão — “ela virá, eu sei”.
Sobrevivendo debaixo de um viaduto, convive com os seus próprios escombros e os destroços físicos e humanos da cidade, dividindo sua angústia com outras figuras apartadas. A relação é permeada por um discurso erudito e revelador de uma aguda observação do cotidiano, partilhada com interlocutores imaginários — o “senhor”, a “mulher molusco” e o “menino borboleta”, habitantes de sua íntima periferia. Em seu trânsito onírico recorre à reflexão filosófica sobre sua decadência e seus despojos por meio de alusões aos adágios do filósofo holandês, senha com a qual enfrenta a dureza dessa aniquilação, até o momento em que, derrotado pela insanidade, vê sua mente ser devorada pelos ratos, fim de toda a esperança.
Metáfora do sofrimento e da decrepitude individual numa sociedade fetichizada pelo absolutismo da tecnologia e do mercado, que avilta os sentimentos e banaliza os sonhos, o romance de Evandro Affonso Ferreira é também uma viagem sensível e poética à dimensão trágica da vida e um emocionado elogio da loucura que se esconde em nós.
Ronaldo Cagiano é autor de "Dicionário de pequenas solidões" (Língua Geral, Rio, 2006) e "O sol nas feridas" (Dobra Ideias, SP, 2011).
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