terça-feira, 30 de setembro de 2014

Federico García Lorca / Canção do ginete




Federicio García Lorca

CANÇÃO DO GINETE

Córdoba.
Longínqua e só.

Mula negra
E azeitonas em meu alforge
Ainda que eu saiba os caminhos
Eu nunca chegarei a Córdoba.

Pelo plano, pelo vento,
Mula negra, lua rosa.
A morte me está olhando
Desde as torres de Córdoba.

Ai que caminho tão longo!
Ai minha mula valorosa!
Ai, que a morte me espera
Antes de chegar a Córdoba!

Córdoba.
Longínqua e só.




segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Federico García Lorca / A casada infiel



Federico Garcia Lorca
A CASADA INFIEL




E eu que fui levá-la ao rio
Certo de que era donzela,
Mas bem que tinha marido.
Foi a noite de São Tiago
E quase por compromisso.
As lâmpadas se apagaram
E se acenderam os grilos.
Já nas últimas esquinas
Toquei seus peitos dormidos,
Que de pronto se me abriram
Como ramos de jacinto.
A goma de sua anágua
Vinha ranger-me no ouvido
Como seda que dez facas
Rasgassem em pedacinhos.
Sem luz de prata nas copas
As árvores têm crescido
E um horizonte de cães
Ladra bem longe do rio

Após franqueadas as brenhas,
Franqueados juncos e espinhos,
Por baixo de seus cabelos
Fiz um ninho sobre o limo.
Eu tirei minha gravata.
Ela tirou seu vestido.
Eu, cinturão e revolver.
Ela, seus quatro corpinhos.

Nem nardos nem caracóis
Têm cútis com tanto viço,
Nem os cristais sob a lua
Alumbram com igual brilho.
Sua coxas me escapavam
Como peixes surpreendidos,
Metade cheias de lume,
Metade cheias de frio.
Galopei naquela noite
Pelo melhor dos caminhos,
Montado em potra nácar
Sem rédeas e sem estribos.
As coisas que ela me disse,
Por ser homem não repito
Faz a luz do entendimento
Que eu seja assim comedido.
Suja de beijos e areia,
Eu levei-a então do rio.
Contra o vento se batiam
As baionetas dos lírios

Portei-me como quem sou.
Como gitano legítimo.
Dei-lhe cesta de costura,
Grande, de cetim palhiço,
E não quis enamorar-me,
Pois ela, tendo marido,
Me disse que era donzela
Quando eu a levava ao rio.


domingo, 28 de setembro de 2014

Fermín Goñi / Os últimos 15 dias de Bolívar

Tudo Levará seu Nome

Fermín Goñi

Os últimos 15 dias de Bolívar

O espanhol Fermín Goñi apresenta em seu último romance um libertador latino-americano afastado das grandes façanhas



Simón Bolívar, retratado por José Gil de Castro, 1928.
Para contar os últimos 15 dias da vida de Simón Bolívar, o escritor e jornalista Fermín Goñi (Pamplona, 1935) viajou para a Quinta de San Pedro Alejandrino, em Santa Marta, Caribe colombiano, no qual conseguiu uma permissão para permanecer 18 horas seguidas. Ali, com uma câmera de vídeo e duas de fotografia viu o sol se pôr ao lado dos tamarindeiros nos quais pendurou a rede do Libertador e também de seu quarto, que permanece intacto desde aqueles dias no final de 1830.
“Tinha que estar, sem sombra de dúvida, no local aonde morreu. Saber por onde sai o sol, como esquenta, se existem tempestades. Agora a Quinta se transformou em um museu que tem um certo aspecto de parque temático, mas o quarto de Bolívar segue com as medidas extras”, disse Goñi horas antes de lançar em Bogotá seu romance Tudo Levará seu Nome (Roca Editorial), e que chegará na Espanha no fim do ano.
O Bolívar de Goñi é o homem de carne e osso, afastado da situação das grandes façanhas militares. “É o Bolívar misantropo, que pensa que vai ser capaz de vencer a enfermidade (tuberculose), que se automedica porque nunca confiou nos médicos. O que acredita que seu problema é uma bílis ruim e que deveria expulsá-la. Mas na realidade tinha o pulmão cheio de pus. Não havia remédio”.

Goñi faz outro esclarecimento: “Quando Bolívar fala, Bolívar fala”
Durante a apresentação do romance em uma livraria na região norte de Bogotá, o jornalista e também escritor Mauricio Vargas, autor de uma trilogia dedicada aos próceres da América, o definiu como um Bolívar de “osso com pele” e perguntou se por acaso o Libertador não merecia uma morte diferente. “Foi triste, tristíssima”, disse Goñi. Uma tristeza que, para Vargas impregna todo o romance.
Os Sonhos de um Libertador (2009)
Mas a enfermidade se junta com o que Goñi chama de “um padecimento moral enorme”. Dois anos antes de terminar em uma cama em Santa Marta, tentaram assassiná-lo em Bogotá e desconfiava de todos. “Nas últimas semanas não queria ver ninguém, achava que todos que não conhecia eram Santander, que voltava para matá-lo”, conta o escritor, que se declara fascinado pelos próceres latino-americanos. Talvez mais do que Bolívar, por Francisco de Miranda, a quem dedicou Os Sonhos de um Libertador (2009), um personagem que para Goñi é o verdadeiro induzidor da revolução, essa que compreende a parte final da presença espanhola na América Latina e na qual “poucas pessoas conseguiram com poucos meios e tempo conseguir a liberdade de um território tão vasto”.
Entretanto, Bolívar queria fugir da América que surgiu, por isso Goñi fala em seu romance dessa última viagem para parte alguma, do homem que segundo escreve conseguiu expulsar os militares espanhóis do sul do continente americano após treze anos de guerra, mas que, por outro lado, não conseguiu a paz entre seus concidadãos. Um Bolívar que se dá conta que a união dos países americanos não iria ocorrer. “E os anos lhe deram razão. Ainda que hoje existam tratados de união entre diversos países na América Latina, não existe um que possa unir todos. Pode ser uma tarefa louvável mas titânica, se não impossível”.


O escritor espanhol Fermín Goñi.
Tudo Levará seu Nome é a narrativa atrás do Libertador que Goñi reconstrói com a paixão do repórter mas com um ingrediente adicional, porque esse romance não é somente ver o prócer abandonar-se à morte. Será o médico francês que o atende, o único que Bolívar o deixa medicar ainda que a contragosto, quem acenderá a faísca de saber como tudo começou.
O escritor contará então como caiu nas mãos do prócer um mapa feito por mando do rei da Espanha, que descobriu a enormidade do que era a América. “Não foi a fonte de inspiração, mas sim uma das faíscas que acendeu a mecha”, diz. Um mapa que o escritor se orgulha de ter em seu poder.
Goñi também escolheu contar como Bolívar, buscando fortalecer seu exército, ordena que seu representante em Londres organize uma partida de navio na qual se encontram militares, em sua maioria irlandeses, e também aventureiros. “Nos livros de história o papel dos mercenários britânicos praticamente não aparece, mas existiram, e uma prova é que no final dos dias de Bolívar, o coronel Belford Hinton Wilson estava junto com ele, e que tinha apenas 17 anos quando o general O’Leary chegou a conhece-lo, que é quem recupera toda a correspondência do Libertador”.
Goñi faz outro esclarecimento: “Quando Bolívar fala, Bolívar fala”. Isso significa que longe da ficção, as palavras de seu Bolívar são as de Bolívar, um mortal, afastado deste “bolivarismo que parece ser hoje uma religião, e seu principal profeta o ex-presidente Hugo Chávez”. E acrescenta que é preciso deixá-lo em paz, sem mais exumações.


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Livia Garcia Roza / Rio de Janeiro



Livia Garcia Roza
RIO DE JANEIRO

O sol, esse nosso velho amigo, retornou das sombras. Fui dar minha segunda caminhada desse mês de agosto. Um dia, agosto pôs uma lua no céu pra mim. Cheia. Era a noite de lançamento do meu primeiro livro. Mas eu falava da caminhada. Hoje, havia um homem vendendo sábados. Perguntou se eu queria comprar. Prefiro quinta, disse. Ele então disse que as quintas tinham acabado. Só mesmo em Portugal. Quase chegava, quando o vento balançou a árvore do coqueiro e o côco caiu a um passo do meu pé. Se acerta o alvo teríamos agora vários personagens perdidos, confusos, espalhados pelo calçadão da praia.






quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Livia Garcia Roza / Meu marido



Livia Garcia Roza
Meu marido

Meu marido saiu para fazer compras. Perguntou se eu queria alguma coisa. Traz beijos, eu disse.




quarta-feira, 24 de setembro de 2014

George Clooney / “Vou me casar na Itália, daqui a algumas semanas”

George Clooney

George Clooney: 

“Vou me casar na Itália, 

daqui a algumas semanas”

O ator marca a data para seu esperado casamento em uma festa beneficente em Florença na qual participou com sua noiva



Amal Alamuddin e George Clooney, domingo em Florença. / ANDREW GOODMAN (GETTY)r
Foi o próprio George Clooney que contou. “Vou me casar em breve, na Itália, daqui a algumas semanas” E depois, olhando para sua namorada, acrescentou: “Amal, vou amá-la para sempre e não vejo a hora de me tornar seu marido. Estou muito feliz e apaixonado por Amal.” A única dúvida do ator ainda é onde será realizado o casamento. “Não decidimos ainda... talvez em Veneza.” Algo difícil de acreditar levando em conta que a celebração da boda está cada vez mais perto.
O ator norte-americano fez estas inesperadas declarações no jantar de gala realizado este domingo no Palazzo Vecchio, em Florença, por iniciativa da Celebrity Fight Nigth. Clooney fez um discurso no salão de atos do Cinquecento do Palazzo Vecchio. O ator falou sobre a arrecadação de fundos para o Muhammad Ali Parkinson Center que é ajudada pela fundação do tenor Andrea Bocelli.
Neste ato, acompanhado o tempo todo por sua namorada - foi a primeira vez que a advogada Amal Alamuddin desfilou por um tapete vermelho junto com seu namorado -, Clooney revelou que se conheceram na Itália faz agora um ano. O casal passou várias semanas na casa que possuem no Lago Como, desde que o ator foi para a Alemanha para ser tratado por um especialista de problemas nas costas.
Nos últimos anos, George Clooney, de 52 anos, havia transformado sua "solteirice" em uma espécie de bandeira. Afirmou, em mais de uma ocasião, que já se casara uma vez e que tinha sido suficiente. Além disso, apostou com suas amigas que não voltariam a vê-lo subindo ao altar. Por exemplo, apostou e ganhou 100.000 dólares de Michelle Pfeiffer, segundo contou a atriz em um programa da BBC1. Antes, Pfeiffer e Nicole Kidman - suas companheiras de Um Dia Especial (1996) e O Pacificador (1997), respectivamente - tiveram que desembolsar 10.000 dólares cada uma por outra aposta: a de que George seria pai antes dos 40 anos. No dia do aniversário dele, Kidman enviou um cheque com a quantidade combinada apenas para recebê-lo de volta com um bilhete: “Dobro a aposta de que continuo sem ter filhos daqui a 10 anos.” Mas cada vez que era visto com uma mulher nova em algum tapete vermelho, voltava a especulação de que o ator poderia mudar de ideia. Parece que desta vez é definitivo. O casal ficou noivo no mês de abril.
Amal Alamuddin, de 36 anos, é advogada e fez parte de diversas equipes jurídicas importantes nos últimos anos relacionadas com conflitos no Oriente Médio. Seu trabalho com mais repercussão até o momento foi representar Julian Assange, fundador de Wikileaks, no processo de extradição que este enfrenta contra a Suécia. Também foi assessora de Kofi Annan para a guerra da Síria e é parte de um painel de especialistas para lutar contra a violência de gênero em zonas de guerra. Além disso, também assinou, em colaboração com outros juristas, um livro, The Law and practice of the Special Tribunal for Lebanon. Atualmente trabalha para o escritório de advogados londrinos Doughty Streets Chambers, como especialista em direito internacional, criminal, direitos humanos e extradição. Há poucas semanas se recusou a participar da investigação sobre Gaza realizada pelas Nações Unidas alegando falta de tempo.


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Bukowski / Pássaro azul




Charles Bukowski


há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.


há um pássaro azul no meu coração

que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.

há um pássaro azul no meu coração

que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?

há um pássaro azul no meu coração

que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.

depois,

coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?


segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Bukowski / Há coisas piores do que estar só


Charles Bukowski
há coisas piores do que estar só

há coisas piores do que
estar só
mas costuma levar décadas
até que o percebamos
e frequentemente
quando o conseguimos
é demasiado tarde
e nada pior
do que
ser demasiado tarde.





Bukowski / Notas de um velho safado
Bukowski / Escritor
Bukoswski / Ela é louca
Bukowski / Há coisas piores do estar só
Bukowski / Pássaro azul 





sábado, 20 de setembro de 2014

Vargas Llosa / Três hurras pela Escócia

Três hurras pela Escócia
Fernando Vicente



MARIO VARGAS LLOSA

Três hurras pela Escócia

A sensatez com a qual votaram os escoceses nesse plesbicito deveria servir para se opor, de alguma forma, a essa mobilização irracional que se empenha em desandar a história


20 SET 2014 - 17:00 COT

Passei quase toda a noite de 18 para 19 de setembro diante da televisão e, por volta das seis da manhã [em Madri], quando a BBC prognosticou que o nãopara a independência venceria o plebiscito por mais de 10% dos votos, fiquei de pé e, na solidão de meu escritório, lancei três sonoros hurras pela Escócia.
Vivi muitos anos na Grã Bretanha, que continua me parecendo o país mais civilizado e democrático do mundo, e estava convencido de que o desaparecimento dessa nação de quatro nações que é o Reino Unido teria sido uma catástrofe não somente para a Inglaterra e para a Escócia, mas para a Europa, pois a secessão escocesa teria dado ânimo aos movimentos separatistas e independentistas que pululam por toda a geografia europeia – na Espanha, Itália, Bélgica, França, Polônia, Letônia e vários mais – e que, ao prevalecerem, dariam um golpe de morte na União Europeia e retrocederiam o continente que inventou os direitos humanos, a democracia e a liberdade à pré-história das tribos, as fronteiras e o ensimesmamento cultural. A sensatez com a qual votaram os escoceses nesse plebiscito deveria servir para se opor, de alguma forma, a essa mobilização irracional que, no século da globalização e o lento desaparecimento das fronteiras, a história se empenha em desandar e enjaular os cidadãos em prisões artificialmente fabricadas pela vitimização, a falsificação histórica, a demagogia e o fanatismo ideológico.
Como nesta consulta os jovens de 16 anos votariam pela primeira vez, e os adolescentes costumam ser mais inclinados às novidades e à aventura, se pensava que a causa da independência atrairia muito do voto juvenil. Não foi assim; as pesquisas são bastante explícitas: em quase todas as idades a inclinação por uma e outra opção foi muito semelhante, o que significa que o realismo e seu contrário – a sensatez e a insensatez – estão distribuídos de maneira semelhante no mundo dos filósofos que trouxeram o Iluminismo para a terra de Shakespeare. A integração voluntária da Escócia à Grã Bretanha, há mais de três séculos, não a privou do fogo criativo próprio – intelectual e artístico –, e sua contribuição nesse campo para a cultura de língua inglesa foi enorme. E sem dúvida será ainda mais agora que, como resultado desta confrontação eleitoral, ganhará maior autonomia e manejo de seus próprios recursos (ainda que, diga-se de passagem, ainda bem longe do que as regiões e culturas locais dispõem na Espanha).
Estive várias vezes na Escócia, mas a visita que me lembro com maior gratidão e nostalgia foi a do ano de 1985, quando recebi o convite mais original que um escritor pode receber. O Scottish Arts Council me ofereceu uma fellowship, criada em homenagem a Neil M. Gunn, que me obrigava a dar duas conferências, uma em Glasgow e outra em Edimburgo, e algumas entrevistas. Mas depois, no mês seguinte, alugaram um carro para mim e me deixaram sozinho por quatro semanas, vagabundeando pelas terras altas (Highlands), ilhas e aldeias de pescadores, bosques, castelos, albergues que pareciam fora do tempo e da história, encaixados na literatura e na fantasia mais febril, um mês que passei lendo os romances do simpático Neil M. Gunn, como The Silver Darlings e The Silver Bough, que me lembraram muito a literatura regionalista latino-americana, na qual a paisagem às vezes estava mais viva do que os seres humanos e cujas páginas transpiravam uma paixão ardente pelos costumes e ritos ancestrais.
Minha memória conserva bem fresca essa maravilhosa experiência, sobretudo as pousadas familiares à margem dos lagos ou no fundo dos bosques, e seus abundantes cafés da manhã com peixes frescos, pães recém-assados e geleias feitas pela dona da casa. Era outubro, o outono dourava as árvores e a relva das despovoadas planícies, e, como ao anoitecer começava a fazer frio, a senhora de um desses albergues me entregou junto com a chave do quarto uma garrafa de água fervendo para esquentar a cama. Nunca fui muito de ir aos pubs londrinos, mas nessa excursão pela Escócia profunda visitei muitos, pela fantástica atmosfera que neles reinava, seus fregueses que pareciam saídos de romances góticos e que, sentados ao lado de crepitantes lareiras, fumavam em cachimbos Meerschaum, se embebedavam com cerveja ácida ou uísque morno e cantavam canções em um inglês que parecia (ou era) gaélico.




Em quase todas as idades a inclinação por uma e outra opção foi muito semelhante

Nessa viagem pude visitar, em Edimburgo, a casa natal de Robert Louis Stevenson. Era uma casa particular, não um museu, mas a dona, uma senhora muito literária e muito amável, a mostrou para mim acompanhada de mil histórias, me convidou para uma xícara de chá com bolachinhas e, ao nos despedirmos, me deu um presente que era nada menos que uma edição antiga das poesias completas de Stevenson.
Tive menos sorte com Adam Smith. Eu queria levar flores para seu túmulo, e o escritório de turismo, em Edimburgo, me assegurou que estava enterrado em Greyfriars Kirkyard, cemitério no qual repousam personalidades eminentes de todo tipo, além de Bobby, um cachorro famoso porque, ao que parece, não se afastou nem um dia sequer, durante quatorze anos, do túmulo de seu dono. Fiquei a manhã inteira buscando a lápide de Adam Smith, e, claro, nunca a encontrei, porque os ossos do ilustre pensador (que ficaria horrorizado ao imaginar que a posteridade o chamaria de “economista”) repousam na realidade no cemitério de Canongate, junto à igrejinha da entrada.




O 'sim' teria dado um golpe de morte na Grã Bretanha e atiçado de maneira decisiva as expectativas de soberania de galeses e norte-irlandeses

Viajei também para Kirkcaldy, onde Adam Smith nasceu e, ao longo de sete anos, na companhia da sua mãe, escreveu Uma Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações (1776), um período que lembraria então como o mais feliz de sua vida. O trenzinho que me levou de Edimburgo a Kirkcaldy serpenteava pelas margens de um mar bravo, mas fazia sol e, quando cheguei à sua cidade natal, não parecia outono, mas um alegre e luminoso dia de verão. Smith era um solteirão muito distraído, propenso a se ensimesmar, e, mais de uma vez, uma diligência o recolheu no meio do caminho porque, absorto em suas especulações intelectuais, tinha se distanciado várias milhas da cidade. Essa visita foi um pouco decepcionante, porque a casa de Adam Smith havia desaparecido há tempos e restava somente um pedaço de parede com uma inscrição alusiva. E, no museu de Kirkcaldy – até onde me lembro –, do mais ilustre nativo desta cidade encontrei somente um cachimbo, uma pena de ganso, óculos e um tinteiro.
Voltei várias vezes à Escócia desde então, para o Festival de Edimburgo, por exemplo, para ir ao teatro ou fazer leituras, e para a sua bela universidade, na qual conheci um grande hispanista, escocês e ruivo, com quem conversei sobre Tirant lo Blanc, e que, durante um jantar, me fez esta extraordinária confissão: “Cada vez que ensino Góngora, fico com tesão”.
Nesta longa noite do plebiscito, essas e outras recordações foram aparecendo em minha memória, acompanhadas de um sentimento de congratulação. Se, seduzidos pela inegável simpatia e pelos argumentos aparentemente inofensivos de Alex Salmond, o primeiro-ministro da Escócia e paladino da independência, os escoceses tivessem votado no sim, teriam desencadeado uma crise de consequências tremendas. Teriam dado um golpe de morte na Grã Bretanha, reduzindo em poderio e influência internacional um dos países mais firmemente comprometidos com a causa da liberdade no mundo, e atiçado de maneira decisiva as expectativas de soberania de galeses e norte-irlandeses, além de, certamente, dar impulso e fôlego para quem, na Catalunha, no País Basco, em Flandres, na fantasiosa Padania, na Córsega, etc., aspiram a um pequeno poder e, querendo ou não, acabariam com a construção da União Europeia e a fariam regressar ao seu fragmentado passado de rixas, rancores e guerras sanguinárias. Nada disso aconteceu, e por isso um grande suspiro de alívio levantou o ânimo, nesta manhã, em toda a Europa e em boa parte do mundo, dos amantes da liberdade.





Bukowski / Escritor

Charles Bukowski
Charles Bukowski
ESCRITOR

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Bukowski / Notas de um velho safado

Charles Bukowski

Charles Bukowski

Notas de um velho safado


Antissocial, misógino, bêbado, tarado: morto há vinte anos, o escritor Charles Bukowski transcende os rótulos que lhe foram atribuídos

Patrícia Homsi

Charles Bukowski
“Sempre fui de perna. Foi a primeira coisa que vi quando nasci. Mas então eu tentava sair. Desde então, tenho me virado no sentido contrário, e com um azar dos diabos”, diz o detetive Belane nas primeiras páginas de Pulp (L&PM, 2009), o último livro de Charles Bukowski, publicado pouco antes de sua morte, em 9 de março de 1994, em decorrência de leucemia. Na ocasião, Belane estava distraído com as pernas de Dona Morte, sentada em seu escritório à procura de Céline – sim, Louis-Ferdinand Céline –, escritor que supostamente havia fugido dela. Dona Morte cruzava as pernas, hipnotizando Belane. Assim como o detetive, Charles Bukowski, nascido na Alemanha em 16 de agosto de 1920 e criado num subúrbio de Los Angeles, parecia distrair-se facilmente diante de um par de pernas femininas.
A fama de velho safado, bêbado e masturbador compulsivo, rendeu a Bukowski críticas e acusações de misoginia durante toda a vida. Numa entrevista em 1988, porém, disse irritado: “Eu simplesmente não transo e pulo de cama em cama. Seria bom poder dizer isso e fingir que eu sou durão, mas não sou”. O autor considerava o tratamento dado às suas personagens masculinas muito pior que às femininas. Para ele, o amor era um “cão dos diabos”, como diz um de seus versos. A aflição acompanhava amor e sexo, prendendo-o numa paixão incontrolável, irracional. Como explica Marcelo Ariel, coordenador do projeto Bukowski 20, idealizado por Ivone Fs em homenagem aos 20 anos sem o autor, “na obra de Bukowski, o amor e o sexo são o triunfo do fracasso”.
Para o velho Buk, era a alma marginal que importava; A essência errante e humana que não via presente em personagens como Mickey Mouse, por exemplo. William Packard, que editou alguns de seus textos, chegou a dizer que o objetivo de Bukowski era uma “desdisneyficação” de seus leitores, guiada por amostras de alma e verdade, coisas que Mickey Mouse não ensinava.
Por explorar o erotismo e as fantasias em torno de mulheres, bem como pela exposição da realidade americana contrária ao american dream, Bukowski foi, por muitos anos, subestimado pela crítica norte-americana. Como explica Fernando Koproski, poeta e tradutor de uma antologia de poemas do autor, os críticos da época eram “mais afeitos ao preciosismo”, em detrimento da poética livre e espontânea de Bukowski.

O velho Buk, bêbado e recluso

“Bukowski me chamou a atenção por falar diretamente sobre uma realidade que eu via descortinada exatamente como nos seus textos, isto é, sem firulas e sem frescuras, sem ornamentação desnecessária, artificialismos, psicologismos babacas ou com o ranço de uma linguagem velha e estagnada”, lembra Koproski. Reinaldo Moraes, escritor e tradutor deMulheres (L&PM, 2011), diz que o interessante na obra do velho Buk é precisamente a demonstração real e suburbana dos fatos que o cercavam, sem que fosse necessário embelezar a suja sarjeta: “Chutar o rabo do bom gosto. Extrair poesia do fundo do poço. Essas merdas”.
Para os tradutores, o ambiente retratado por Bukowski guarda na linguagem desafios para a adaptação ao português. Segundo Fernando Koproski, o objetivo de seu trabalho é “escrever um texto em português que contenha similar coloquialidade, simplicidade, lírica e pegada do texto em inglês, sem ser ‘tosco’”. Reinaldo Moraes também se inspira no estilo “coloquial miúdo, rápido, com pegada de boxer do velho Buk”, e confessa a dificuldade na tradução de gírias: “Quase me enforquei tentando traduzir o sistema de apostas no turfe americano da época, com as gírias dos turfistas pés-de-chinelo, por exemplo”.
Bukowski sofreu com ataques violentos do pai desde a infância, exclusão entre os jovens na adolescência e uma crise de acne que lhe deformava o rosto, tudo isso relatado em Misto quente (L&PM, 2005). Sua literatura foi formada nesse cenário imundo da falência do sonho americano e dos subempregos, somado ao ambiente de uma Los Angeles crua e inevitavelmente depressiva. As influências deram origem a relatos da rotina do autor, cujos temas principais, como relembra Ivone Fs, poeta e organizadora do Bukowski 20, eram a “rotina de bebedeiras e ressacas intermináveis, suas histórias amorosas, rodeado de prostitutas, sua paixão pelas corridas de cavalo, sua vida solitária e completamente desregrada”.
Como afirma Mário Bortolotto, dramaturgo, ator e diretor responsável pela montagem teatral de Mulheres, a vida do velho Buk era a “matéria prima” de seu trabalho. A maioria das obras envolve elementos biográficos e ficção juntos, principalmente naquelas em que Bukowski utiliza Henry Chinaski, seu alter ego, como personagem. Reinaldo Moraes explica que, “em geral, na boa literatura, essas instâncias [real e ficcional] se misturam a ponto de a própria versão sobrepujar o fato”.
A turma de Buk
Devido ao uso de relatos autobiográficos sobre a rotina suburbana preenchida com cerveja, Charles Bukowski costumava ser classificado (palavra insuportável para ele) como beat, ao lado de William Burroughs, Allen Ginsberg e Jack Kerouack. “Tanto nele quanto em alguns beats, como [Carl] Solomon e Kerouack, o cotidiano é retratado como parte de uma patologia com alguns surtos de beleza dentro dela”, diz Marcelo Ariel. Mas o fato é que Buk “era um animal antissocial, não fazia parte de grupos”, destaca Bortolotto.
Reinaldo Moraes lembra um relato do autor sobre a vez em que encontrou Burroughs numa feira literária e não sentiu vontade de ir falar com ele (“Aliás, ele detestava feiras literárias. ‘Muita mosca em cima da mesma merda’, ele dizia”). “Os beats da estirpe de Kerouack, Ginsberg e Burroughs eram classe-média universitária. Buk pegava no pesado. Foi funcionário do correio durante anos. Lutou boxe, foi carregador. Outra enfermaria sócio-cultural. Ele sentia a diferença com a devida dose de ressentimento.”
Após o sucesso como escritor, já com cerca de 50 anos, as companhias mais comuns de Buk eram mulheres. Como explica Ivone Fs, “imagine um homem com essa idade tendo a chance de vivenciar todas as suas fantasias e sonhos de adolescente. Elas agora estavam a sua procura. Elas querem conhecer o grande escritor”.
Mesmo com a frequência feminina em sua cama, Bukowski ainda não se adaptara a angustiantes relacionamentos amorosos. “Às vezes, uma cerveja é melhor que amor e sexo – diz o personagem Hank, de Mulheres, em certas horas sombrias”, reflete Reinaldo Moraes. Para Mário Bortolotto, que interpretou Henry Chinaski, “como Domingos de Oliveira ou como o Detetive Mandrake, do Rubem Fonseca, ele amava todas as mulheres do mundo”. De acordo com o velho Buk: “O amor se esgota, pensei ao caminhar de volta ao banheiro, mais rápido do que um jato de esperma”.