segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Recursos humanos infinitos / Vidas realizadas, vidas destroçadas


Atravessar o deserto em um barco

Recursos humanos infinitos

Vidas realizadas, vidas destroçadas

4 AGOSTO 2015, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS


Todo ser humano tem recursos, isto é, qualidades específicas que permitem estabelecer realização de possibilidades e satisfação de necessidades. Neste sentido, os recursos são infinitos e passam a ser sinonimizados com possibilidades. Acontece que tudo que existe evidencia-se em contextos - em situações estruturantes de limites e condições -, consequentemente gerando obstáculos, tanto quanto liberações.
Quando o ser humano constata suas possibilidades, ele descobre recursos. Caso este processo, esta percepção, seja realizada no contexto de autonomia, que mesmo na infância pode existir, os recursos são fontes possibilitadoras de relacionamentos e de infinitas mudanças, de satisfações e descobertas.
Quando a identificação dos recursos é realizada no contexto da não autonomia, eles são meios de conseguir que o outro realize os próprios desejos e deste modo o recurso se caracteriza pela capacidade de usar, de criar condições - do engano à sedução - para que o outro realize o que se necessita.
O contínuo exercício desta atitude cria dependências afetivas, despersonaliza e transforma pessoas em objetos de prazer, de trabalho, de amor, de incentivo. Quanto mais se realiza desejos, mais se esvazia. Este sistema de drenagem estrutura os deprimidos, os viciados, os desumanizados. Transformar os próprios recursos, as próprias possibilidades relacionais, em normas e padrões determinantes de realização de desejos e objetivos só é possível quando se deixa de perceber o outro como um ser humano, quando se começa a percebê-lo como objeto, como receptáculo de desejos, como apoio para consecução de objetivos.
Transformado na expectativa do que deseja ou espera, o indivíduo consegue alienar recursos, viver em função do investimento dos mesmos. A atitude não autônoma, resultante de autorreferenciamento, aumenta cada vez mais a falta de autonomia, a falta de vontade, a falta de motivação e determinação. Deste modo, os recursos são transformados em busca de oportunidades que, para acontecer, precisam de ajuda, de suporte. Esta circunstancialização referencia tudo em termos de sorte ou de azar. Assim o indivíduo perde individualidade, perde possibilidades humanas, tanto quanto aumenta a ansiedade para realização do desejado, do prometido e esperado. Ansiedade, medo, dúvida, angustia passam a ser seus constantes e únicos recursos. Neste quadro, para não estourar, utiliza drenos representados por remédios, ajudas comunitárias, crenças protetoras e salvadoras: deuses, gurus e até políticos.
Todo ser humano é cheio de recursos, entretanto, quando esvaziado pelo autorreferenciamento, pela não autonomia criadora de metas (desejos relacionados a situações totalmente diferentes e alheias às que vivencia, mas que considera salvadoras: desde ganhar na loteria, encontrar príncipes ou princesas encantados/as, até ser ungido como poderoso que tudo consegue), ele se fragmenta, se divide, perdendo a continuidade do estar no mundo, vivenciando o presente como escuridão e parede que gera angustia e medo. Nesta situação de esvaziamento, alienação e despersonalização, seus recursos são estes: sonhos não realizados, possibilidades e potencialidades perdidas, traumas e arrependimentos criadores de medo, desconfiança e temor, consequentemente, relacionamentos frustrados, falas amargas, dúvidas nunca esclarecidas.
As possibilidades, os recursos transformados em necessidades criam entraves, dificuldades. Terra chacinada, vida destruída, humanidade superada e sufocada pelo uso, consumo e abuso do outro e de si mesmo. Ao utilizar os próprios recursos como maneira de alimentar o autorreferenciamento, se realiza autofagia; é como se nutrir do próprio organismo para continuar vivo.


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