sábado, 18 de dezembro de 2021

A bruxa em três poemas de Anne Sexton por Virgínia Derciliano

Anne Sexton


A bruxa em três poemas de Anne Sexton por Virgínia Derciliano


21 de maio de 2021

Anne Sexton (EUA, 1928-1974), expoente da geração da poesia confessional, é detentora de extensa obra poética, geralmente pouco vista fora do âmbito da “confissão”. Entretanto, sua persona poética desafia essa noção ao expressar instâncias sociais diversas.

Não à toa, “Her kind”, um dos poemas mais conhecidos de sua prole, foi escolhido por Sexton para abrir suas récitas. Segundo a biógrafa Diane Middlebrook, Sexton “dizia ao público que o poema mostraria a todos ao mesmo tempo que tipo de mulher ela era, e que tipo de poeta.”

A bruxa de Sexton é irônica, insubmissa, questionadora e se regozija em sua própria natureza – seja em prazer ou na catarse da dor. 

Aqui, traduzo três poemas de momentos distintos de sua produção, que trazem a temática da magia e da bruxa. O primeiro é o supracitado, em To Bedlam and part way back (1960). O segundo, “The black art”, está em All my pretty ones (1962), e o terceiro, “The witch’s life”, em The awful rowing toward God (1975). 

SUA ESPÉCIE

Eu saí por aí, bruxa possuída,
assombrando o ar negro, mais corajosa à noite;
sonhando com o mal, eu fiz minha ronda
por sobre as casinhas iguais, de luz em luz:
coisa-solitária, doze-dedos, fora-de-si.
Uma mulher assim não é bem uma mulher.
Eu tenho sido sua espécie.

Eu encontrei as cavernas quentes na mata,
as enchi de frigideiras, estatuetas, estantes,
armários, sedas, artefatos inumeráveis;
preparei as ceias pros vermes e pros elfos:
queixosa, rearrumando o desalinhado.
Uma mulher assim é mal interpretada.
Eu tenho sido sua espécie.

Eu montei na sua carruagem, cocheiro,
acenei os braços nus pros vilarejos passando,
aprendendo o brilho da rota final, sobrevivente
das chamas que ainda me mordem a coxa
e minha costela estala onde sua roda gira.
Uma mulher assim não tem vergonha de morrer.
Eu tenho sido sua espécie.

HER KIND

I have gone out, a possessed witch,
haunting the black air, braver at night;
dreaming evil, I have done my hitch
over the plain houses, light by light:
lonely thing, twelve-fingered, out of mind.
A woman like that is not a woman, quite.
I have been her kind.

I have found the warm caves in the woods,
filled them with skillets, carvings, shelves,
closets, silks, innumerable goods;
fixed the suppers for the worms and the elves:
whining, rearranging the disaligned.
A woman like that is misunderstood.
I have been her kind.

I have ridden in your cart, driver,
waved my nude arms at villages going by,
learning the last bright routes, survivor
where your flames still bite my thigh
and my ribs crack where your wheels wind.
A woman like that is not ashamed to die.
I have been her kind. 

A ARTE NEGRA

Uma mulher que escreve sente demais,
esses transes e presságios!
Como se ciclos e filhos e ilhas
não bastassem; como se carpideiras e fofocas
e legumes nunca bastassem.
Ela acha que pode alertar as estrelas.
Uma escritora é essencialmente uma espiã.
Meu querido, eu sou essa garota.

Um homem que escreve sabe demais,
que feitiços e fetiches!
Como se ereções e congressos e produtos
não bastassem; como se máquinas e galeões
e guerras nunca bastassem.
De um móvel usado ele faz uma árvore.
Um escritor é essencialmente um trapaceiro.
Meu querido, você é esse homem.

Nunca amando a nós mesmos,
odiando até nossos sapatos e nossos chapéus,
nós amamos um ao outro, preciosa, precioso.
Nossas mãos são azul-claro e gentis.
Nossos olhos são cheios de confissões terríveis.
Mas quando nos casamos,
as crianças saem, enojadas.
Há muita comida e ninguém sobrando
para comer toda essa estranha abundância.

THE BLACK ART

A woman who writes feels too much,
those trances and portents!
As if cycles and children and islands
weren’t enough; as if mourners and gossips
and vegetables were never enough.
She thinks she can warn the stars.
A writer is essentially a spy.
Dear love, I am that girl.

A man who writes knows too much,
such spells and fetiches!
As if erections and congresses and products
weren’t enough; as if machines and galleons
and wars were never enough.
With used furniture he makes a tree.
A writer is essentially a crook.
Dear love, you are that man.

Never loving ourselves,
hating even our shoes and our hats,
we love each other, precious, precious.
Our hands are light blue and gentle.
Our eyes are full of terrible confessions.
But when we many,
the children leave in disgust.
There is too much food and no one left over
to eat up all the weird abundance.

A VIDA DA BRUXA

Quando eu era menina,
tinha uma velha na vizinhança
que nós chamávamos de Bruxa.
O dia todo ela espiava da janela do segundo andar
por trás das cortinas enrugadas
e às vezes ela abria a janela
e gritava: Parem de cuidar da minha vida!
Seus cabelos eram como algas
e sua voz como pedra pontiaguda.

Eu penso nela às vezes, agora
e me pergunto se estou me transformando nela.
Meus sapatos se curvam para cima como aqueles de bobo-da-corte.
Chumaços do meu cabelo, enquanto escrevo isso,
se enrolam individualmente como dedos dos pés.
Eu arredo as crianças pra lá,
enchendo pá atrás de pá.
Só meus livros me ungem,
e alguns poucos amigos,
aqueles que alcançam as minhas veias.
Talvez eu esteja me tornando um eremita,
abrindo a porta apenas
para alguns animais especiais?
Talvez meu crânio esteja muito lotado
e não tenha nenhuma abertura pela qual
eu possa alimentá-lo com sopa?
Talvez eu tenha conectado as minhas tomadas
para manter os deuses dentro?
Talvez, mesmo que meu coração
seja um gatinho manhoso,
eu o esteja detonando como um zepelim.
Sim. É a vida da bruxa,
escalar a escalada primordial,
um sonho dentro de um sonho,
e então sentar aqui
segurando uma cesta de fogo.

THE WITCH’S LIFE

When I was a child
there was an old woman in our neighborhood
whom we called The Witch.
All day she peered from her second story window
from behind the wrinkled curtains
and sometimes she would open the window
and yell: Get out of my life!
She had hair like kelp
and a voice like a boulder.

I think of her sometimes now
and wonder if I am becoming her.
My shoes turn up like a jester’s.
Clumps of my hair, as I write this,
curl up individually like toes.
I am shoveling the children out,
scoop after scoop.
Only my books anoint me,
and a few friends,
those who reach into my veins.
Maybe I am becoming a hermit,
opening the door for only
a few special animals?
Maybe my skull is too crowded
and it has no opening through which
to feed it soup?
Maybe I have plugged up my sockets
to keep the gods in?
Maybe, although my heart
is a kitten of butter,
I am blowing it up like a zeppelin.
Yes. It is the witch’s life,
climbing the primordial climb,
a dream within a dream, 
then sitting here
holding a basket of fire.

REFERÊNCIAS:

MIDDLEBROOK, Diane Wood. Anne Sexton: A morte não é a vida: uma biografia. Tradução: Raul de Sá Barbosa. Siciliano: São Paulo. 1994

SEXTON, Anne. The complete poems. 1981. Boston: Houghton MifflinCo.

Virgínia Derciliano (Virginia Derciliana Silva) é licenciada em Letras (UEMG) e mestranda em Estudos linguísticos e literários em inglês (DLM – USP). Dedica sua pesquisa ao arquétipo da bruxa na obra poética de Anne Sexton, sob um viés de crítica feminista.

PONTES OUTRAS




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