segunda-feira, 9 de julho de 2018

Shirley Hazzard / O Trânsito de Vênus

Shirley Hazzard

Shirley Hazzard
O Trânsito de Vênus

POR EULER DE FRANÇA BELÉM

Shirley Hazzard sugere, em romance notável, que acaso decide a vida das pessoas



Como em certos romances de Henry James, “O Trânsito de Vênus” exibe personagens ambivalentes, limítrofes entre o bem e o mal, mas a leveza da australiana a diferencia do autor de “A Taça de Ouro”
“O Trânsito de Vênus” (Companhia das Le­tras, 476 páginas, tradução de Sonia Coutinho), da escritora australiana Shirley Hazzard (1931-2016), é uma obra-prima — dessas que, se ficar atento apenas às modas, o leitor deixa passar batido. O romance parece despretensioso e, aqui e ali, é mesmo parecido com algumas das ficções do americano Henry James, como “A Taça de Ouro”, “As Asas da Pomba” e “Retrato de uma Senhora”, sobretudo na questão da trama intrincada, com pistas plantadas (às vezes, de maneira enganadora; uma delas sobre o suicídio de Ted Tice. O leitor precisa ficar atento à ideia de vidas entrelaçadas, por exemplo as de Paul Ivory, Ted Tice e Caro Bell) para iluminar mas que, no geral, confundem e, até, iludem o leitor. Outra aproximação é a ambiguidade das personagens — nem sempre inteiramente boas, nem sempre inteiramente más; entretanto, sempre complexas, flertando com várias possibilidades. Há personagens que são boas, querem fazer o bem, mas submetem-se às pressões do mal, ainda que não sucumbam e não sejam totalmente omissas. “A verdade tem vida própria” — é o que se diz. “Nossos melhores instintos não são mais confiáveis do que a lei, nem mais consistentes. Quando vivemos essencialmente dentro da sociedade, há ocasiões em que preferimos depender da fórmula social — e descobrimos que, de alguma forma, arruinamos a possibilidade de agir conforme nosso próprio juízo. Nós nos desqualificamos por julgar os outros segundo as regras sociais”, anota Ted Tice, uma das vítimas da história, se se pode dizer assim — talvez não seja possível, porque, no romance, os indivíduos são sujeitos (mais do que seres passivos) de seus sucessos e desgraças. Como Henry James, Shirley Hazzard tem um olho clínico para os detalhes, realçando como uma roupa ou uma caneta diferentes, “novas”, começam a mudar o tempo, a moldar um novo tempo.
O que diferencia os dois autores é a leveza de Shirley Hazzard, que conta histórias terríveis, de um trágico exacerbado (as cenas sobre relações sexuais são imaginativas. O erotismo corre e escorre pelas palavras e frases, sem excessos, o que não é o mesmo que pura contenção ou moralismo disfarçado — é refinamento da linguagem. Ted Tice sublinha: “Beleza é a palavra proibida de nosso tempo, como sexo era para os vitorianos. Mas sem o mesmo poder de se reafirmar”), como se estivesse apenas expondo, sem condenar personagens. É provável que, como Machado de Assis, deixe os julgamentos, sobretudo os morais, para os leitores, até para que se sintam responsáveis por alguma coisa. O dramaturgo Paul Ivory é um grande personagem — ao estilo de Raskólnikov, de Fiódor Dostoiévski —, de caráter maligno e superficial (nos relacionamentos), mas cativante. Porém, a história não o põe na porta de uma delegacia ou à frente de um juiz. A doença de um filho talvez seja a única condenação. Se é.





Shirley Hazzard
Shirley Hazzard, que faleceu em dezembro, aos 85 anos, constrói personagens e histórias fascinantes, que mudam o seu tempo e são mudadas
por seu tempo, numa espécie de jogo dialético

Há personagens de primeira linha no romance, mas os centrais são Caroline Bell, a Caro, e Edmund Tice, o Ted. Este, um cientista celebrado (pobre que vence pelo talento), às vezes ecoa Shirley Hazzard e fica maior no final, de maneira surpreendente — assim como o fecho (se há uma conclusão) da história de Paul Ivory, de complexa vida dupla, deixa o leitor estupefato. Há uma notável reviravolta, que sugere que as vidas das pessoas ficaram inteiramente “ajustadas”, se o romance fosse prosaico, tradicional, o que não é. “Talvez o elemento da coincidência seja pouco enfatizado na literatura porque parece um engodo, ou porque não se consegue torná-lo verossímil. Mas a vida, em si, não precisa ser justa nem convincente”, afirma Ted Tice, como se sintetizasse a história ou as histórias do romance.
Há um enredo básico, que o narrador — às vezes suspeito — vai destrinchando aos poucos, confrontando e conectando as personagens e suas vidas. O leitor perceberá que há sempre um livro na história, nas mãos das pessoas (as notas sobre escritores e poemas da excelente tradutora são seminais). Há o livro dentro do livro, discussão sobre a literatura (há quem culpe a literatura por sua desventura). Thomas Hardy, Yeats e Keats são mencionados, ou melhor, sua arte. Há uma celebração da alta literaturam, mas sem pedanteria.





O trânsito de Vênus
Um romance brilhante precisa de personagens notáveis, como Ted Tice e Caro Bell, mas é a forma como a australiana Shirley Hazzard conta a história, notando a falta de linearidade da vida, seu caráter imprevisível, que torna “O Trânsito de Vênus” uma obra-prima

Caro e Grace Bell são irmãs. Os pais morreram num naufrágio, na Austrália. Quando crescem, vão para Londres, em companhia da mal humorada e trágica Dora. Na Inglaterra, conhecem a família Thrale. Christian Thrale apaixona-se por Grace. Caro, mais independente, aprecia mas não ama Ted Tice. Este, conversando com ela, admite: “Nada é menos atraente do que amor não desejado”. Quem interessa à belíssima e enigmática Caro, uma rebelde que não parece rebelde — porque é rebelde nas ações, não na fala —, é outro jovem, Paul Ivory, um homem bonito e inteligente, filho de um poeta, Rex Ivory, e que parece não amar nenhuma outra pessoa. No final do romance, quando decide transformar Caro numa espécie de (psic)analista, admite: “É poder falar que levanta a pessoa. Ou acaba com ela”. Adiante, Caro lhe diz: “À medida que o tempo vai passando a pessoa se revela, muitas vezes deliberadamente”.
Paul Ivory “prefere” não amar Caro, mas gosta de ficar ao seu lado e os dois se dão bem. Mas, entre a plebeia de espírito nobre, Caro, e a nobre de espírito mundano, Tertia Drage, o ambicioso Paul Ivory (que esconde duas coisas — uma sobre sua sexualidade e outra sobre um crime) escolhe as convenções. Caro, ao contrário, ama Paul Ivory, que a abandona.
Solitária, trabalhando numa repartição pública modorrenta (lá, um dia, a funcionária Valda Fenchurch se recusa “a preparar chá ou providenciar sanduíches” para os homens. O chefe, o sr. Leadbetter, questiona Caro, que diz: “As pessoas em geral precisam que lhes mostrem que uma coisa é inadequada. No início só uma pessoa costuma fazê-lo”), Caro conhece o viúvo Adam Vail, um homem rico e defensor de perseguidos políticos de um país da América do Sul. Ao visitar o país, Caro encanta-se com a vida e a poesia de um poeta que, preso e torturado, acaba morrendo nos calabouços da ditadura. Ela se torna tradutora de sua poesia. O poeta lhe disse certa vez: “Em qualquer grupo, há chefes e seguidores. Mesmo o lado certo não gosta de um homem que permanece sozinho”.
Adam Vail morre e Caro volta a ficar só mais uma vez, e permanece amada por Ted Tice. Há encontros e desencontros e a morte permeia as histórias. Grace, que não é dada à filosofia, diz para Caro, a irmã querida e tão diferente (uma, Caro, experimenta mais a diversidade da vida): “Primeiro há alguma coisa que você espera da vida. Mais tarde há o que a vida espera de você. Quando percebemos que as duas são a mesma coisa, talvez seja tarde demais para expectativas” (seu casamento com o maçante Christian, se não é dos piores, porque há amor, é conformista; ela gosta de um médico, mas não se atreve a ficar com ele, que a ama). O narrador espicha: “O que somos, não o que seremos. São a mesma coisa”. O narrador, que nem sempre tem o controle do que o romance conta, dada a vitalidade da voz das personagens, assinala: “A morte podia, muito facilmente, tornar os vivos errados, por mais certos que estivessem”. A mestria poética de Shirley Hazzard aparece num trecho como este: “A dor tinha um olho de pintor, atribuindo significados arbitrários ao acaso — como Deus”.





Shirley Hazzard
Shirley Hazzard, no início da vida de escritora

Escrever bem é uma obrigação de todo escritor. Mas o segredo de Shirley Hazzard não é apenas escrever bem, ser artífice de frases perfeitas, ser capaz de escrever uma história não (exatamente) linear, mas, ainda assim, com começo, meio e fim. Seu segredo é a mestria como relata as histórias, como as conecta, mas deixando espaços vazios, porque a vida, como assinala, não é exata, não é planejável nos mínimos detalhes. Aos indivíduos cabem escolhas, podem e devem traçar certos caminhos, mas há o imprevisível, o acaso. Os “fatos” dependem deles, mas não inteiramente (controle é quase uma fantasia). Caro Bell e Ted Tice (“reais e fictícios”), grandes figuras, fizeram escolhas, levaram suas vidas para determinados sendeiros, mas também foram jogados de um lado para o outro pelas contradições do verdadeiro terremoto que é a realidade, a vida. O final — ou finais — do romance “engana” o leitor. Há uma beleza na prosa de Shirley Hazzard que, de tão perspicaz e bem elaborada, aturde. Finalmente, outra diferença em relação a Henry James: a autora australiana é, quem sabe, mais filosófica. Só não parece porque não é “didática”, quer dizer, professoral. Sua prosa filosófica soa natural, como se fizesse, e faz, parte da vida. Há um mix de ceticismo e otimismo saudáveis. (O Ian McEwan do romance “Reparação” talvez tenha bebido em Shirley Hazzard.)
Há uma frase, à página 295, que parece um recado para o presidente Donald Trump: “Nosso grande medo secreto é que os Estados Unidos se revelem um fenômeno em vez de uma civilização”. O texto é da personagem Adam Vail, um milionário altruísta. O romance é de 1980.

Trechos-frases de “O Trânsito de Vênus”



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