No princípio era a África. Ela sempre está presente quando queremos discorrer sobre assuntos que envolvam a história da humanidade. Independentemente do foco da alusão, a história deste continente e do seu povo determinou o modo de ver e viver de todas as outras civilizações. De várias formas, explicadas por meio de muitas teorias e estudos cientificamente comprovados tiveram contato com seu povo e cultura direta ou indiretamente. Até os dias atuais ela é sinônimo de reflexões socioantropológicas. Mas no momento buscamos um veio diferente para vislumbrar fragmentos de uma palavra que está indissociavelmente ligada a ela, aos seus primórdios e ao mundo contemporâneo: o feitiço.
Os objetos utilizados nos rituais das sociedades tribais primitivas, praticamente nos cultos, sagrações, ritos de passagens, as mais variadas possibilidades de festas religiosas e profanas, encerram dentro deles uma simbologia muito particular e específica, sejam concretas, casuais ou abstratas. O feitiço ou magia, partindo de seu significado primário e estacionando na língua francesa, que neste sentido remetemos à palavra fetiche, como terminologias, já eram conhecidos e denominados pelos mercadores e comerciantes portugueses no século XV, e largamente difundidos pela Europa nos séculos subseqüentes. Este aspecto material do “feitiço” foi disseminado em praticamente toda a cultura ocidental. Seu entendimento poderia ser pelo aspecto negativo, pressuposto a sua misteriosa origem envolta nas sombras do exótico e do mágico que vinha de longe, positivo ou mais tarde até pelas teorias de seu aspecto econômico e político, como no caso do marxismo, em que é tido como a base da manutenção do modo produtivo do capitalismo. O fetiche como objeto tem relação com a utilidade do produto, segundo Marx (1818-1883). Entendemos aqui, o fetiche, que como numa espécie de utopia, paralisa determinado ambiente social, mostrando, pois, a sua faceta do igualitário, e ao mesmo tempo em que consegue esta proeza, sonega sua essência do desigual. Singular paradoxo.
Também está relacionado por meio da semiótica à fantasia do objeto como produto desejado, amado ou ambicionado em si. A sociedade, entretanto, dita as regras de uso do fetiche como conceito, mas as transgridem como realidade. Tabu! Entretanto o fetiche como objeto que representa o ser amado, ou desejado, ou ainda sublimado, pode encarnar as mais diferentes formas. No mundo ocidental, tomamos por exemplo um dos “feitiços” mais explorado que conhecemos: o pé, como parte de um todo desejado e que nestas circunstâncias é considerado um fetiche, por despertar as sensações mais primitivas, diversas e prazerosas em certas pessoas. Em muitos casos, no entanto, e pela ótica da psicologia ele é tratado como um tipo de parafilia ou fixação. Outro viés que poderíamos discorrer seria sobre a possível tendência de uma patologia destrutiva...
Mas não podemos nos deter somente nos pés e nos sapatos. Enquanto sensação, o prazer pode ser encontrado também em muitas outras partes do corpo da pessoa amada, desejada, ou naquelas alheias a ele, em roupas íntimas, objetos, situações sociais causadas ou espontâneas, e até certos materiais ou símbolos, que tenham uma relação direta ou indireta com o ser querido, admirado ou adorado independente do sexo agente ou paciente, macho ou fêmea. Nesse sentido ocupam o espaço de veneração enquanto parte deste todo. Obsessão? Pode até ser. O couro em especial, e seus derivados afins, está entre os materiais mais solicitados e cultuados como fetiche. Os objetos de couro têm despertado todos esses tipos de sensações por ser um material que está indissociavelmente ligado à história do homem, ao desenvolvimento da humanidade. Não precisamos ser sociólogos ou antropólogos para chegarmos às nossas conclusões sobre este material que a tantos encanta. O couro está no inconsciente coletivo ou na memória ancestral de cada ser humano. Assim, sensação prazerosa com o contato, visualização ou posse (status simbol) deste material em especial, pode através de um encanto ou “feitiço”, revelar-se em fantasias que nos remetem aos nossos anseios sexuais, ou não. Adormecidos ou totalmente visíveis, aparentes e conscientes.
O design que segue este veio de inspiração leva em consideração o exotismo, a cor, o cheiro e o toque do material, que são mais importantes que a ergonomia, o conforto, o custo e a durabilidade. Se trata de uma ferramenta que serve para a criação e cujo objetivo é aguçar e completar os anseios daqueles “enfeitiçados” pelo tema.
Em se tratando de fetiche poderíamos listar uma infinidade de exemplos, mas o couro, o pé e o sapato, tem as suas singularidades. Até inconscientemente está conosco no cotidiano, no uso constante e automatizado dos objetos confeccionados com ele. Só alguns indivíduos é que tem predisposição para sentir o cheiro, o toque, o poder e a sua nobreza e decodificar estas sensações a seu bel “prazer”. Seriam lembranças latentes de nossos ancestrais cujos corpos, pés, cabeças, mãos, orelhas e pescoços eram protegidos das intempéries da natureza, e que permaneciam quentes e confortáveis, revestidos com peles de animais?
O couro e a pele animal, curtidos ao sol, com sal e taninos talvez tenham sido aliados tão poderosos para a sobrevivência do homem como foi o fogo e a destreza para as manufaturas de objetos cortantes que facilitaram a caça.
OBVIOUS
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