A casa de Boccaccio
Os contos do ‘Decamerão’ deram origem à prosa narrativa italiana e inauguraram a riquíssima tradição do conto no Ocidente
MARIO VARGAS LLOSA 22 FEV 2014 - 20:00 BRT
O vilarejo toscano de Certaldo conserva suas muralhas medievais, mas a casa onde há sete séculos nasceu Giovanni Boccaccio foi bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial. Foi reconstruída com esmero e, do seu elevado terraço, se divisa uma paisagem de suaves colinas com olivais, ciprestes e pinheiros, arrematada, num cume distante, com as torres dançarinas de San Gimignano.
A única coisa que resta do ilustre polígrafo é uma sapatilha de madeira e couro carcomida pelo tempo; apareceu enterrada em um muro e, por acaso, não foi calçada por ele, e sim por seu pai ou algum dos serventes da casa. Há uma biblioteca onde se amontoam centenas de traduções do Decamerão para todas as línguas do mundo e vitrines repletas de estudos dedicados a ele. O vilarejo é uma joia de moradias de casas de tijolos, telhas e vigas centenárias, mas minúsculo, e a gente se pergunta como o sr. Boccaccio-pai se virava para, num lugar tão pequeno, se tornar um mercador tão próspero. Giovanni era filho natural, reconhecido mais tarde por seu progenitor, e se ignora quem foi sua mãe, uma mulher sem dúvida muito humilde. De Certaldo o jovem Giovanni saiu para Nápoles, para estudar finanças e direito, a fim de incrementar o negócio familiar, mas lá descobriu que sua vocação eram as letras e se dedicou a elas com paixão e fúria erudita. Isso teria sido sem a peste negra que devastou Florença em 1348: um intelectual da elite, amante dos clássicos, latinista, helenista, enciclopédico e teólogo.
Tinha uns 35 anos quando os ratos que traziam o vírus dos navios que conduziam especiarias do Oriente chegaram a Florença e infectaram a cidade com a pestilência que exterminou 40.000 florentinos, uma terça parte dos seus habitantes. A experiência da peste afastou Boccaccio dos infólios conventuais, da teologia e dos clássicos gregos e latinos (voltaria anos mais tarde a tudo isso) e o aproximou do povo comum, das tabernas e dos albergues de mendigos, dos ditados da chusma, do seu verbo desbocado e da luxúria e das velhacarias exacerbadas pela sensação de cataclismo, de fim do mundo, que a epidemia desencadeou em todos os setores, da nobreza ao povo. Graças a essa imersão no ruído mundano e na canalha com a qual compartilhou aqueles meses de horror pôde escrever o Decamerão, inventar a prosa narrativa italiana e inaugurar a riquíssima tradição do conto no Ocidente, que seria prolongada por Chaucer, Rabelais, Poe, Chekhov, Conrad, Maupassant, Chesterton, Kipling, Borges e tantos outros até nossos dias.
Não se sabe onde Boccaccio escreveu a centena de histórias doDecamerão, entre 1348 e 1351 – pode bem ter sido aqui, em sua casa de Certaldo, onde viria para se refugiar quando as coisas iam mal, mas sabemos que, graças a esses contos licenciosos, irreverentes e geniais, ele deixou de ser um intelectual de biblioteca e se tornou um escritor imensamente popular. A primeira edição do livro saiu em Veneza, em 1492. Até então era lido em cópias manuscritas, reproduzidas aos milhares. Essa multiplicação deve ter sido uma das razões pelas quais ele desistiu de tentar queimá-las quando, no seu cinquentenário, por um recrudescimento da sua religiosidade e pela influência de um frade cartuxo, arrependeu-se de tê-lo escrito, devido à desenvoltura sexual e aos ataques ferozes contra o clero contidos noDecamerão. Seu amigo Petrarca, grande poeta que via com desdém a prosa plebeia daqueles relatos, também o aconselhou a não fazê-lo. Em todo caso, era tarde para dar marcha a ré; esses contos já eram lidos, contados e imitados em meia Europa. Sete séculos mais tarde, continuam sendo lidos com o impagável prazer proporcionado pelas obras-primas absolutas.
Na vintena de casinhas que forma a Certaldo histórica – entre elas um palácio – há uma pequena trattoria que oferece, todas as primaveras, “o suntuoso banquete medieval de Boccaccio”, mas, como é inverno, devo me contentar com a modestaribollita toscana, uma sopa de pão e verdura, e um vinhozinho da região que raspa o paladar. Nos cartazes pendurados nas paredes da sua casa natal, um deles recorda que, na década de 1350 a 1360, entre as atividades diplomáticas e administrativas que Boccaccio desempenhou para a Senhoria florentina, figurou aquela que mais deve tê-lo comovido: levar de presente dez florins de ouro à filha de Dante Alighieri, sóror Beatrice, monja de clausura no monastério de Santo Stefano degli Ulivi, em Ravena.
Descobriu Dante em Nápoles, quando jovem, e desde então lhe professou uma admiração sem reservas pelo resto da vida. Na magnífica exposição exibida nestes dias na Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença – “Boccaccio: autore e copista” –, há manuscritos seus, de caligrafia pequenina e regular, copiando textos clássicos ou reescrevendo em 1370, do começo ao fim, vinte anos depois de tê-las escrito, as mil e tantas páginas do Decamerão, que pouco antes ele havia querido destruir (era um homem contraditório, como bom escritor). Aí se vê a que extremos chegou sua paixão dantesca: copiou três vezes aComédia na sua vida, e uma vez a Vita Nuova, para difundir sua leitura, além de escrever a primeira biografia do grande poeta e, por encomenda da Senhoria, proferir 59 palestras na igreja de Santo Stefano di Badia explicando ao grande público a riqueza literária, filosófica e teológica do poema que, graças a ele, começou desde então a ser chamado de “divino”.
Em Certaldo foi construído há anos um jardim que pretendia imitar aquele onde as sete moças e os três rapazinhos doDecamerão se refugiam para contar histórias uns aos outros. Mas o verdadeiro jardim está em San Domenico, uma aldeia nas colinas que sobem até Fiesole, numa casa, a Villa Palmieri, que ainda existe. Desse enorme terreno foi separada a Villa Schifanoia, onde agora funciona o Instituto Universitário Europeu. Aqui no século XIX viveu o grande Alexandre Dumas, que deixou uma preciosa descrição do lugar. Nada resta, de fato, dos míticos jardins, com lagos e riachos murmurantes, cervos, lebres, coelhos e garças, e do soberbo palácio onde os dez jovens contavam entre si os picantes relatos que tanto os deleitavam, descritos (ou melhor, inventados) por Boccaccio, mas o lugar tem sempre muito encanto, com seus parques com estátuas devoradas pela hera e seus labirintos do século XVIII, assim como a soberba visão que se tem de toda Florença a partir daqui. De volta à cidade, vale a pena fazer um desvio até a diminuta aldeia medieval de Corbignano, onde ainda sobrevive uma das casas que Boccaccio habitou e onde, ao que parece, escreveu o Ninfale Fiesolano; seja como for, bem perto desse vilarejo ficam os dois riachos nos quais se transformam Africo e Mensola, seus personagens centrais.
Todo esse percurso atrás das suas pegadas é muito belo, mas nada me emocionou tanto como seguir os passos do Boccaccio em Certaldo e recordar que, neste local reconstruído, ele passou a última etapa da sua vida, pobre, isolado, assistido só por sua velha criada Bruna e muito doente com a hidropisia que o havia inchado monstruosamente, a ponto de não poder se mexer. Enche-me de tristeza e de admiração imaginar esses últimos meses de sua vida, imobilizado pela obesidade, dedicando seus dias e noites a revisar a tradução da Odisseia – Homero foi outro de seus venerados modelos – para o latim feita por seu amigo o monge Leoncio Pilato.
Morreu aqui, em 1375, e o enterraram na igrejinha vizinha, dos Santos Jacobo e Felipe, que se conserva quase intacta. Como na Certaldo histórica não há floriculturas, roubei uma folha de louro do pequeno altar e a depositei em sua tumba, onde devem restar nada mais do que alguns polvilhos de que ele foi, e lhe fiz a mais rápida homenagem que me veio à boca: “Obrigado, mestre”.
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