sábado, 12 de agosto de 2017

Gil Perini / Na esquina, perto do fim do mundo


Na esquina, perto do fim do mundo


O chefe sabe das coisas. O chefe sabe de todas as coisas. Sabe da guerra e da arte de guerrear; sabe matar sem usar arma nenhuma e até mesmo como aniquilar o inimigo com armas que não matam e que, pior que a morte, trazem o medo e o horror.
Eu sou Agramunt. Posso pecar por arrogância, nunca por timidez ou modéstia: escolhi o meu nome, determinei a vida que levo. Na escolha do nome hesitei entre este de que me orgulho e Almedíxer. Recolhi os dois em um romance de cavalaria, Tirant lo Blanc, sobre o qual, no Quixote, diz o cura ao barbeiro “este é o melhor livro do mundo” e que, como toda obra clássica, recebe mais citações que leitura. 

Da vida não me arrependo, eu a dediquei a uma causa. Os meus detratores falam em fanatismo, quando não em loucura; esquecem-se de que são como eu e que lutam por causas deploráveis. Ficaria envergonhado se gastasse a minha vida em busca de dinheiro, ambição que reprovo. Abomino também os que lutam pelas glórias do poder temporal. A minha vida pertence à Organização; não me cansarei de defendê-la e de admirar aquele que a dirige com inquestionável saber. Inúteis seriam minhas palavras se não servissem para dignificar o chefe.

O chefe sabe das coisas. O chefe sabe de todas as coisas. Sabe da guerra e da arte de guerrear; sabe matar sem usar arma nenhuma e até mesmo como aniquilar o inimigo com armas que não matam e que, pior que a morte, trazem o medo e o horror.

Ele já viveu milênios e muitos outros milênios viverá. Não o assombraram as máscaras de pavor dos inimigos que viram a morte rasgar o espaço cavalgando o fio de sua espada. Não o assustaram bravatas como as dos que, de forma insultuosa e covarde, se insurgiram, em indefinido tempo, contra o seu poder. Estes já não contam entre os vivos; que de alguma divindade menor possam receber piedade.

O chefe distribui paz aos seus e guerra a todos os contrários. Em um passado que não determino, esteve entre os que queimaram aldeias na Ásia Menor, secundando o Macedônio. Foi o único sobrevivente do massacre que as hordas de um Clã impuseram ao seu pequeno país, destruídos os templos, as bibliotecas, os palácios, os moinhos de papel.

Sobre as cinzas de uma praça arrasada, clamou aos seus antepassados e jurou justiça. O chefe é justo, seus atos são equânimes — a razão e a lógica ocultam seus sentimentos e foram poucos os que o julgaram transtornado ou vingativo. Que sobre suas indignas almas se derrame o perdão.

Ele sabe falar uma língua arcaica e tecnicamente morta, desconhecida dos mais ilustrados filólogos, semiólogos e lingüistas. Interpõe vogais longas e sonoras a consoantes labiais suaves e a sua fala soa como poesia. Daí testemunharem que o chefe sabe do amor.

Dessa língua não se conhece a escrita, não que o chefe seja iliterato ou rude, mas não tendo outra pessoa que a possa ler, escrevê-la é desnecessário. Ele a utiliza em pequenas orações cantadas em voz baixa e em longas pregações políticas dirigidas ao seu estado-maior. Apenas um, entre tantos chegados, consegue entendê-la sem, contudo, se atrever a nela pronunciar sequer o nome de um deus. O Shift (é esse o nome da estranha língua) só é falado pelo chefe e, por curial hierarquia, traduzido pelo subchefe do estado-maior. Assim, o chefe pode ser compreendido pelos outros subcomandantes da Organização.

Em tempos, cogitou-se traduzi-lo ao latim, descartado pelo próprio chefe por sua difícil compreensão a eslavos e asiáticos, e depois ao grego clássico, excluído pela utilização exígua das vogais e pelo receio de que ele se emocionasse ante citações de Homero. Sim, o chefe é humano, mas suas emoções são mantidas in pectore; dele nunca se viu uma lágrima, nem que derramada sobre um improvável poema de Sjögren.

Ele me nomeou o seu escriba. Decerto não foi pelo reconhecimento de minhas eventuais habilidades literárias, por desconhecer minha letra quase ilegível ou julgar-me dotado de inteligência singular. Conquistaram-me esta honra meus precários conhecimentos acerca do PageMaker 6.5, um programa de editoração eletrônica complexo e já ultrapassado, nestes tempos de cibernética obsolescência.

Determinou que eu contasse a sua vida e, ante o meu espanto em me ver forçado a tentar descrever a eternidade, assegurou-me ficar satisfeito com o razoável: eu deveria relatar em livro a história da Organização e preparar o meu sucessor, que Organização e chefe sobreviveriam aos finitos dias que me pudessem restar.

Sugeriu que eu o fizesse em inglês, para que facilmente esse relato se espalhasse ao mundo; contrapus o português, pelo seu caráter quase criptográfico, argüindo a sua exatidão para o raciocínio. Exemplifiquei com Baruch Spinoza, holandês que escreveu em latim, mas pensando em português, toda a sua obra filosófica. Deu-me crédito e aquiescência quando afirmei que Spinoza escrevera sobre Deus e que, optando pelo português ao inglês, eu escreveria ao invés de iria estar escrevendo sobre a sua vida. Depois, ele poderia traduzir ao Shift ou então, com a sua anuência, seria criado o novo idioma universal.

Para confirmar nosso pacto ele disse... riverrun, tuvive ismui peligerous... que eu, riobaldamente, traduzi para... viver é muito perigoso... percebendo que o chefe era sabedor do esforço que alguns acadêmicos tupiniquins têm feito, para demonstrar que o rio que nasce nas escarpas de Joyce vem, por parabólicos vieses, desaguar no Mare Nostrum Rosianum destes triestes tropicões.

Todavia, não foi essa a interpretação do subchefe do estado-maior que entendeu que o chefe, após arrotar de tédio, reclamara que são demais os perigos desta vida e, pronto, convocou a cimeira de sábios e radicais para que fossem estabelecidas as novas normas de segurança pessoal do chefe e da Organização.

A bem da verdade, devo dizer que o chefe era um homem alto e forte, de tez acobreada, malares salientes, barba rala e amarelada e olhos de cor indefinida, caracteres que não permitiam, nem a observador atento, determinar com exatidão a sua origem. Poderia ser mongol ou ameríndio, berbere ou inuíte; provavelmente não era ariano.

O seu rosto lembrava os rostos dos vencedores e os dos vencidos; o chefe era a própria representação da Humanidade. Os cabelos, que nunca pude ver, estavam sepultados no mistério de um gorro de couro sem tintura; um bigode maltratado tentava encobrir a boca rasgada, de onde a língua, nos raros instantes de veemência, saía de entre os caninos a espargir saliva pelo espaço que deveria abrigar os incisivos superiores. Inexistem relatos confiáveis sobre as causas dessa anodontia.

Um antigo subchefe do estado-maior, caído em desgraça, ousou sugerir um implante ou uma prótese. Antes de sua execução por fuzilamento, o chefe explicou-lhe, com paciência, que aquele era o rosto da Organização, a logomarca da coragem e do destemor, a eternização da sua imagem como símbolo, o arremedo da máscara cabúqui de um samurai aterrador.

Completava a figura espectral uma longa túnica de lã escura, não deixando entrever parte alguma de seu corpo, exceto as mãos, de um branco violáceo, longos dedos de pianista, unhas tratadas de crupiê. Um anel de ferro com sinete cobria a falange proximal do anular direito e nenhuma cicatriz lembrava que aquelas eram as mãos de um guerreiro. Por baixo da túnica, a instantes, viam-se as pontas de grosseiros coturnos com biqueiras de metal.

A sua coragem era proverbial, do que dava testemunho a sua ousadia em afrontar leis e nações que ele dizia ilegítimas. Escarnecia de potências forjadas a sangue de inocentes e mantidas pela opressão de miseráveis; desconhecia fronteiras, abominava crenças e, em todo o orbe, apoiava qualquer insurgência que contrariasse poderes espuriamente estabelecidos.

Acreditava que a paz dos vencedores, a pax romana, era necessária, desde que a Organização a promovesse e a mantivesse sob seu comando e inspiração. Destarte, colecionava inimigos; a sua vida, para a Organização tão preciosa, era agora a preocupação do estado-maior que, reunido enquanto o chefe sesteava, tomou sábias decisões que a preservariam para a glória de pósteros e coevos.

Como primeira precaução, proibiu-se o Shift. Sendo o chefe o único que o falava, uma simples imprecação neste idioma poderia significar sentença de morte a quem a proferisse.

Tentei argüir uma nulidade conceitual, já que os inimigos desconheciam tão secreta língua. Cassaram-me a palavra, lembrando-me que eu não era membro do estado-maior, mas apenas o escrevente regulamentado; eram dispensadas as opiniões dos que desconheciam os meandros da Organização e as artes da guerra. Foi decidido que o chefe guardasse o Shift para suas quase silenciosas orações e para seus monólogos interiores, que a língua oficial seria o inglês, com sotaque oxfordiano ou do Harlem, pouco importando.

Diante da impossibilidade concreta de se ocultar o chefe — a sua presença era necessária à propaganda e ocultá-lo seria desestimulante aos propósitos da Organização —, cuidou-se de empreender manobra diversionista que confundisse o inimigo e preservasse a integridade e a sobrevivência do chefe. Procurariam um sósia, que seria exposto em situações de risco.

Tal figura deveria concentrar em si todas as competências e habilidades do chefe além de, fisionomicamente, ser dele indistinguível, pelo menos num primeiro olhar. Deveria ser capaz de pilotar um jato de combate, qualquer que fosse o seu fabricante, e realizar manobras radicais com helicópteros Bell, Sikorsky ou Agusta. Deveria reconhecer e montar-desmontar de olhos fechados um fuzil AR-15 ou um Kalashnikov e ter a pontaria de um campeão olímpico. Também saber manejar a espada, não importando quando, ou com que aço, teria ela sido forjada.

O sósia deveria ser capaz de discorrer sobre Filosofia, Lógica, Economia, Psicanálise e Futebol em qualquer academia que o quisesse confrontar. As diversas seccionais da Organização foram instadas a encontrar o candidato perfeito.

De todas as partes do mundo começaram a chegar os pretendentes a exercer tão nobre ofício; causava espanto como eram entre si tão diferentes e quão pouco se pareciam com o chefe. Corroborava esta diversidade, segundo analistas do estado-maior, a dificuldade que certos gerentes de seccionais tinham em definir a figura do chefe, há muito esquecida ou confundida nos escaninhos de suas já desgastadas memórias.

Assim ninguém se assustou com a chegada daquela malta multifária e heterogênea, na qual se misturavam velhos, jovens, calvos, hirsutos, longi- e brevilíneos, caucasianos, sascatcheuanos, txucarramães e botocudos. O estado-maior reuniu-se e indicou um, o eleito, que, após passar por um período de adaptação, foi entregue ao conselho de sábios e depois ao de guerreiros, que o deveriam preparar.

Pessoalmente, não pude vê-lo antes de seu treinamento e caracterização e, quando pela primeira vez compareci a uma reunião presidida por ele e não pelo verdadeiro chefe, confesso que, se não tivesse sido avisado desta possibilidade com antecedência, poderia jurar que era o chefe quem estava lá. Jubiloso, anotei esta observação e a submeti ao subchefe do estado-maior que a repassou, com um sorriso, ao que seria o chefe. Ele retribuiu a cortesia e, ao sorrir, mostrou incisivos superiores perfeitos.

Percebi, com espanto, que haviam se esquecido desse detalhe; levei o indicador aos meus dentes e o subchefe, com evidente satisfação, comunicou ao estado-maior que um especialista em exodontia já estava autorizado a proceder a exérese dos incisivos superiores, completando a transfiguração.

Os problemas começaram no conselho de sábios. Concluíram que seria impossível, em breve tempo, infundir os conhecimentos para que o clone (assim o apelidou um sábio que dominava rudimentos de genética e biologia molecular) se ombreasse ao chefe em competências.

Também os guerreiros argumentaram que, face à velocidade com que nova tecnologia é agregada à arte de matar, seria impossível a um só homem adquirir tão alentado elenco de habilidades guerreiras, excetuado o chefe, que sabia das coisas.

Outra reunião foi realizada, enquanto chefe e clone faziam a sesta, sob o comando do subchefe do estado-maior que propôs uma pauta restrita, na qual se examinaria apenas a possibilidade de serem preparados outros sósias, abreviando sobremaneira a implantação das novas normas de segurança.

Da intenção ao gesto, o mínimo descompasso. Um número indefinido, até porque secreto, de novos sósias foi incorporado ao staff da segurança, alguns escolhidos por qualidades já adquiridas, outros apenas pela capacidade teatral de imitar o chefe e seus trejeitos, definitivamente descartada a semelhança física como requisito. Pronto estariam aptos a cumprir a gloriosa tarefa de substituir o chefe nos momentos de perigo e, suprema glória, morrer em seu lugar.

Algumas seccionais, cujos candidatos haviam sido preteridos, exerceram pressão diplomática para que também fossem consideradas e pretenderam impor outros aspirantes a clone, para que fosse assegurada a cada uma a sua importância política dentro da Organização.

Com o propósito de evitar o caos, o subchefe, ad referendum do estado-maior e com o velado consentimento do chefe (ou de seu clone, percebi depois), criou uma Academia de Transfiguração, a cochichos apelidada de Laboratório de Clonagem, redigiu seus estatutos, definiu normas pedagógicas e diretrizes curriculares e nomeou uma comissão diretiva encarregada de sua gerência e operacionalização.

As providências foram executadas com presteza e, a partir dessa época, as reuniões ordinárias passaram a contar sempre com um clone no lugar do chefe, de quem não se tinha mais notícias, a não ser as informações prestadas pelo subchefe que a cada dia se tornava mais poderoso, convocando e presidindo reuniões e mantendo o chefe, ou aquele que o representava, em um nicho um pouco afastado da mesa principal, envolto em penumbra, para que dele não se distinguisse o semblante ou o olhar.

Construí meu próprio patíbulo em uma dessas reuniões quando o “chefe” me chamou e pediu, em surdina, que eu não esquecesse de incluir em meus relatos a elegância de sua nova túnica, enfatizando talhe e caimento, além de mencionar a delicadeza do tecido, detalhes da trama e da urdidura e até os fios de prata dispostos em risca de giz.

Ao subchefe, reservadamente, fiz ver que eu não poderia escrever uma crônica de futilidades, uma história sobre o mundanismo, que Organização e chefe... “o verdadeiro, onde andaria?”... “recolhido em retiro espiritual, de onde em breve retornará com toda a sua força e poder para nos guiar à vitória final que se vislumbra”... foi a resposta, e eu completei... Organização e chefe eram determinantes sintagmáticos, complementares e necessários, e que o livro que eu me havia proposto escrever deveria ser verdadeiro, áspero e contundente, para que não restassem dúvidas sobre o seu valor e que ninguém soubesse dizer se ele era um atributo do chefe ou da Organização, ou se cada um deles era do livro apenas uma revelação ou um avatar.

O subchefe sugeriu que eu guardasse segredo destas observações assaz pertinentes (ele colecionava lugares-comuns), e que ficasse em silêncio obsequioso até ulterior deliberação, permanecendo recluso em meus aposentos sem nada mais escrever.

Alguns dias depois, procuraram-me o subchefe e dois clones já desdentados, que me transmitiram a decisão soberana do estado-maior: o meu trabalho de redator estava temporariamente suspenso e que eu seria, a partir desta data, o responsável pelos papéis da Organização. Lamentavam que eu tivesse de ser transferido para uma instalação de segurança máxima, e sentiriam a falta de minhas prudentes e tempestivas observações.

Achei que seria promovido de escrevente a notário e que teria sob a minha guarda, além da história, a memória da Organização. Quando me levaram ao meu novo local de trabalho, percebi que eu seria apenas o novo atendente do setor de suprimentos para escritório do Almoxarifado Central.

Não sei quanto tempo faz que estou aqui dentro, envolvido com o trabalho de embalar resmas, contar lápis e borrachas e escrever, corrigir, reescrever estas anotações que chamo de minhas singelas e ridículas memórias.

As coisas não vão bem e o chefe deveria saber. O almoxarifado entrou em decadência, os pedidos e as entregas de suprimentos rarearam, mas acho que é uma situação transitória, a Organização é poderosa, indestrutível, e persistirá com outro nome, em outro lugar, sempre com o chefe em seu comando, sobrevivendo a investidas de subchefes corruptos e usurpadores, mantendo seus prodigiosos sábios e suas legiões de guerreiros.

A Organização não morreu e nunca morrerá; ela continuará viva nos clones do chefe, que agora são muitos e andam soltos pelas ruas, como posso ver todos os dias na esquina em frente à minha janela, esta minúscula escotilha com grades de ferro, acanhado mirante de onde tento observar um pedaço do mundo.

Eles chegam maltrapilhos, sujos, barbudos e despenteados, a sorrir o seu sorriso desdentado, encostando as mãos em súplica nos vidros fechados dos automóveis que param no sinal.

Eu sei que algum dia também serei um deles, um clone do poderoso chefe. Eu só não queria que me arrancassem os dentes.

GIL PERINI é escritor, autor de O Pequeno Livro do Cerrado (Ateliê Editorial).




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