domingo, 20 de agosto de 2017

Cortázar / O velho cronópio


Julio Cortázar

O velho cronópio

Em entrevista à CULT, o tradutor Eric Nepomuceno retoma a obra e o método do escritor Julio Cortázar, falecido há 30 anos
Patrícia Homsi
“E era muito natural eu atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel pautado para escrever ou que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia”, disse Horacio Oliveira, o protagonista de Rayuela, ou O jogo da amarelinha, do argentino Julio Cortázar.
Cortázar, como sua personagem, de fato não precisava de papel pautado para escrever. Escrevia e reescrevia, e revisava até o fim de sua vida, em 12 de fevereiro de 1984, há exatos 30 anos. Tradutor de Edgar Allan Poe (reconhecidamente, sua melhor tradução ao espanhol) e crítico compulsivo das próprias obras, Cortázar produziu tanto que, mesmo após sua morte, ainda havia um grande número de textos não publicados, contos e “entrevistas em frente ao espelho”, organizados no livro Papéis Inesperados (Civilização Brasileira, 2010). Em um dos textos, por exemplo, o autor revela sua surpresa em observar a identificação dos jovens comRayuela. Cortázar compara o desejo dos jovens com o arremesso da pedra – destinada aos quadrados de giz da amarelinha desenhada no chão – ao céu. “E este céu, e isto é o que nos une, eles e eu chamamos de revolução.”
Cortázar foi casado com Aurora Bernárdez, uma tradutora argentina com quem viveu em Paris – cenário de O jogo da amarelinha – e com Carol Dunlop, falecida antes do escritor, que morreria dois anos mais tarde em decorrência de uma leucemia. Julio Cortázar foi enterrado junto à esposa, no Cemitério de Montparnasse, em Paris, onde também estão Samuel Beckett, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Serge Gainsbourg e Charles Baudelaire. Acima de sua lápide há um poético e pomposo Cronópio – criatura alegre e sonhadora idealizada e almejada pelo escritor.
Em 2014, além de relembrar a morte do autor, a literatura argentina comemora seu centenário, no próximo mês de agosto. De hoje ao aniversário de nascimento de Cortázar (26 de agosto), haverá eventos em Buenos Aires e Chivilcoy, província argentina em que morou na época em que dava aulas de literatura.
Junto ao centenário de Cortázar, sua obra de maior expressão, Rayuela, comemora 50 anos. A exposição Rayuela, 50 años fica em cartaz até julho em Buenos Aires e traz mais de 30 primeiras edições de Julio Cortázar preservadas pela Biblioteca Nacional.
Aqui no Brasil, a editora Civilização Brasileira relançou Bestiário e prepara para este semestre uma nova tradução de O jogo da amarelinha.
CULT conversou com Eric Nepomuceno, tradutor de algumas obras de Cortázar, sobre os métodos e influências do autor:
CULT – Qual foi a maior dificuldade na tradução da obra de Cortázar para o português?
Eric Nepomuceno – Traduzi As armas secretas e estou terminando a nova tradução deRayuela, ou seja, O jogo da amarelinha. Toda e qualquer tradução tem suas dificuldades, e não é possível comparar as de um autor às de outro. No caso de Cortázar, tanto nos contos como neste romance, o primeiro desafio é manter o ritmo da sua escrita. Depois, a construção das frases. Especialmente em Rayuela, essa arquitetura é especialmente intrincada, inventiva, com um aspecto lúdico muito complexo e, ao mesmo tempo, com muita carga poética. Impossível dizer qual a maior dificuldade. Melhor seria dizer das muitas dificuldades, mas que acabam resultando num desafio irresistível.
Apesar de ter começado a escrever muito cedo, Julio Cortázar publicou seu primeiro livro depois dos quarenta anos. Em sua opinião, isso afetou na qualidade e na técnica do autor?
Nunca pensei nesse aspecto, para falar a verdade. Cortázar domina uma técnica muito pessoal, extremamente difícil, justamente pela simplicidade da escrita. É um contista formidável, sua prosa é sempre impregnada da fala, do ritmo, da textura, da respiração de Buenos Aires. Mesmo nos contos fantásticos, de grande inventividade, está sempre permanente o humor e a melancolia da cidade. Claro que, como em todo autor, seus textos de iniciantes não têm a consistência do que veio depois. Acho que a partir de Bestiário ele assume o controle absoluto da escrita, que dominou até seus textos derradeiros. Enfim, ele sempre foi extremamente zeloso pelo acabamento de seus textos, mas não creio que se tivesse publicado, digamos, aos 30, teria sido menos exigente.
O senhor considera que a paixão de Cortázar pelo jazz influenciou seu ritmo de escrita?
Sem dúvida. Conto uma coisa: só consigo entrar no ritmo da escrita dele se ouvir música enquanto traduzo. Em minhas jornadas de traduzir Rayuela, ouço muito Gil Evans, Miles Davis, Egberto Gismonti e, principalmente, Astor Piazzolla.
O próprio Cortázar foi considerado o melhor tradutor de Edgar Allan Poe para a língua espanhola. O senhor acredita que seu ofício como tradutor era beneficiado por seu estilo na literatura?
Sempre – sempre – que um escritor traduz outro escritor, a relação será beneficiada. Um tradutor que não seja ficcionista (e há muitos deles que são tradutores formidáveis) jamais terá a mesma cumplicidade com a palavra escrita. Veja bem: não falo do estilo de Cortázar na hora de traduzir Poe ou qualquer um dos muitos outros autores que ele traduziu. Falo da sua cumplicidade.
O senhor pode me contar sobre a influência do momento em que Cortázar foge do governo Perón e se muda para Paris em sua obra?
É um tema muito complexo. O Cortázar que abandona a Argentina nos tempos finais da primeira etapa de Perón (1947-1955) é um homem muito pouco informado, pouco politizado. A partir da Revolução Cubana ele passa a ver a realidade latino-americana com outros olhos. E é esse Cortázar politizado, solidário e ativo militante, um homem progressista e íntegro, o que vale.
Por serem conterrâneos, Cortázar e Jorge Luis Borges são muito frequentemente relacionados, pelo menos, aqui no Brasil. Em que pontos a literatura destes argentinos se encontra ou se afasta?
Borges escrevia com o cérebro. Cortázar, com a alma. Essa a principal diferença. Um era humano. O outro, nem tanto… Mestres os dois, é claro. Mas apenas com um deles eu e meus amigos compartilhamos alegrias, tristezas, esperanças, desesperanças, pão, vinho e vida.

CULT

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