Mario Vargas Llosa
Novas inquisições
O feminismo é hoje o mais o mais resoluto inimigo da literatura, que pretende depurá-la do machismo, dos preconceitos múltiplos e das imoralidades
17 MAR 2018 - 18:00 COT
Trato de ser otimista recordando diariamente, como queria Popper, que, apesar de tudo que vai mal, a humanidade nunca esteve melhor que agora. Mas confesso que a cada dia é mais difícil. Se fosse dissidente russo e crítico de Putin viveria morto de medo de entrar em um restaurante ou em uma sorveteria e tomar o veneno que ali me esperava. Como peruano (e espanhol) o sobressalto não é menor com um mandatário nos Estados Unidos como Trump, irresponsável e terceiro-mundista, que a qualquer momento poderia desencadear com seus descabidos desplantes uma guerra nuclear que extinga boa parte dos bípedes deste planeta.
Mas o que me deixa mais desmoralizado ultimamente é a suspeita de que, no ritmo em que as coisas vão, não é impossível que a literatura, o que melhor me protegeu nesta vida contra o pessimismo, possa desaparecer. Ela sempre teve inimigos. A religião foi, no passado, a mais decidida a liquidá-la estabelecendo censuras severíssimas e armando fogueiras para queimar os escritores e editores que desafiavam a moral e a ortodoxia. Depois foram os sistemas totalitários, o comunismo e o fascismo, que mantiveram viva aquela sinistra tradição. E também o foram as democracias, por razões morais e legais, que proibiam livros, mas nelas era possível resistir, brigar nos tribunais, e pouco a pouco aquela guerra foi sendo ganha –isso acreditávamos–, convencendo juízes e governantes de que, se um país quer ter uma literatura –e, em última instância, uma cultura– realmente criativa, de alto nível, tem de tolerar, no campo das ideias e das formas, dissidências, dissonâncias e excessos de toda índole.
Agora o mais resoluto inimigo da literatura, que pretende depurá-la do machismo, dos preconceitos múltiplos e das imoralidades, é o feminismo. Não todas as feministas, claro, mas as mais radicais, e por trás delas amplos setores que, paralisados pelo temor de serem considerados reacionários, extremistas e falocratas, apoiam abertamente essa ofensiva antiliterária e anticultural. Por isso quase ninguém se atreveu a protestar aqui na Espanha contra o “decálogo feminista” de sindicalistas que pede a eliminação das salas de aula de autores tão raivosamente machistas como Pablo Neruda, Javier Marías e Arturo Pérez-Reverte. As razões que esgrimem são tão boazinhas e angelicais como os manifestos que as senhoras do século XIX assinavam contra Vargas Vila pedindo que proibissem seus “livros pornográficos”, ou como a análise que a escritora Laura Freixas fez nas páginas deste jornal, não muito tempo atrás, a respeito de Lolita, de Nabokov, explicando que o protagonista era um pedófilo incestuoso, estuprador de uma menina que, para completar, era filha da sua esposa. (Esqueceu-se de dizer que era também um dos melhores romances do século XX.)
Naturalmente que com esse tipo de aproximação de uma obra literária não há romance da literatura ocidental que se livre da incineração. Será que Santuário, por exemplo, em que o degenerado Popeye deflora a cândida Temple com uma espiga de milho, não deveria ter sido proibido? E William Faulkner, seu autor, enviado a um calabouço para o resto da vida? Lembro, a propósito, que a diretora de A Jovem Guarda, a editora russa que publicou em Moscou meu primeiro romance com quarenta páginas cortadas, me esclareceu que, se aquelas cenas não tivessem sido suprimidas, “os jovens casais russos sentiriam tanta vergonha depois de lê-las que não poderiam se olhar na cara”. Quando lhe perguntei como podia saber disso, ela me tranquilizou, com o olhar piedoso que os bobos inspiram, garantindo que todos os consultores editoriais de A Jovem Guarda tinham doutorado em literatura.
Na França, a editora Gallimard tinha anunciado que publicaria em um volume os ensaios de Louis Ferdinand Céline, que foi um colaborador entusiasta dos nazistas durante os anos da ocupação e era um antissemita enlouquecido. Eu não teria jamais dado a mão a esse personagem, mas confesso que li com deslumbramento dois de seus romances –Viagem ao Fim da Noite e Morte a Crédito–, que, acredito, são duas obras-primas absolutas, sem dúvida as melhores da literatura francesa depois das de Proust. Os protestos contra a ideia de que os panfletos de Céline fossem publicados levaram a Gallimard a enterrar o projeto.
Quem pretende julgar a literatura –e creio que isto vale em geral para todas as artes– de um ponto de vista ideológico, religioso e moral sempre se verá em apuros. E das duas uma: ou aceitam que essa atividade esteve, está e sempre estará em conflito com o que é tolerável e desejável a partir de tais perspectivas, e portanto a submetem a controles e censuras que pura e simplesmente acabarão com a literatura, ou se resignam a lhe conceder aquele estatuto de cidadania que poderia significar algo parecido a abrir as jaulas dos zoológicos e deixar que as ruas se encham de feras e alimárias.
Isso Georges Bataille explicou muito bem em vários ensaios, mas, sobretudo, em um livro belo e perturbador: A Literatura e o Mal. Nele, argumentava, influenciado por Freud, que tudo aquilo que deve ser reprimido para tornar a sociedade possível –os instintos destrutivos, “o mal”– desaparece só na superfície da vida, não atrás nem debaixo dela, e que, a partir daí, luta para sair à superfície e reintegrar-se à existência. De que maneira consegue isso? Por um intermediário: a literatura. Ela é o veículo pelo qual todo aquele fundo torcido e retorcido do humano volta à vida e nos permite compreendê-la de maneira mais profunda, e também, de certo modo, vivê-la em sua plenitude, recuperando tudo aquilo que temos de eliminar para que a sociedade não seja um manicômio nem uma hecatombe permanente, como deve ter sido na pré-história dos ancestrais, quando o humano ainda estava emergindo.
É graças a essa liberdade de que gozou em certos períodos e em certas sociedades que a grande literatura existe, diz Bataille, e ela não é moral nem imoral, mas genuína, subversiva, incontrolável, ou artificial e convencional, melhor dizendo, morta. Aqueles que acreditam que a literatura pode “tornar-se decente”, submetendo-a a cânones que a tornam respeitosa às convenções reinantes, cometem um erro monumental: “isso” que resultaria, uma literatura sem vida e sem mistério, com camisa de força, deixaria sem via de escape aqueles fundos malditos que trazemos dentro, e eles encontrariam então outras formas de se reintegrar à vida. Com que consequências? A desses infernos onde “o mal” se manifesta não nos livros, mas na própria vida, por meio de perseguições e barbáries políticas, religiosas e sociais. O resultado, portanto, é que graças aos incêndios e ferocidades dos livros a vida é menos truculenta e terrível, mais sossegada, e nela os humanos convivem com menos traumas e com mais liberdade. Aqueles que se empenham em que a literatura se torne inofensiva trabalham na verdade para tornar a vida invivível, um território onde, segundo Bataille, os demônios terminariam exterminando os anjos. Queremos isso?
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