domingo, 19 de maio de 2019

Por que o sexo desapareceu de ‘Game of Thrones’?


Por que o sexo desapareceu de ‘Game of Thrones’?

Foi uma das características da série, usada muitas vezes de forma gratuita.

Mas agora o puritanismo se estabeleceu


JUAN SANGUINO
18 MAI 2019 - 15:09 COT

Quando Ian McShane deixou escapar um spoiler de Game of Thrones, não entendeu por que os fãs ficaram irritados. “Saiam para a rua, façam algo da vida. São só seios e dragões”, escreveu o ator inglês. Mas, pelo visto, McShane não está atualizado sobre a série, porque à medida que os dragões foram desaparecendo (e os Lannister foram deixando de ser loiros), os seios também foram sumindo. Na primeira temporada houve 33 nus, na oitava contamos dois (e só falta um capítulo). O inverno chegou a Westeros e seus habitantes puseram mais camadas de roupa, mas por que esse ataque de pudor?
Desde o primeiro episódio, quando Bran Stark flagrou Jaime Lannister fazendo amor com sua irmã gêmea Cersei, Game of Thrones deixou claro que seu erotismo seria mais depravado que o de suas contemporâneas RomaThe Tudors e True Blood: o Norte recorda, os Lannister sempre pagam suas dívidas e, em tempos de necessidade, vale tudo. A HBO sempre tinha incluído sexo e violência explícitos em suas séries (as violações na prisão de Oz, as transas desastrosas de Sex and the City, as reuniões de mafiosos de Família Soprano em um clube de striptease), simplesmente porque podia.


Nos 72 episódios de ‘Game of Thrones’ vimos 125 mulheres nuas (todas elas magras) e só 24 homens. No fundo seria Shakespeare, mas na forma era como uma pornochanchada

“Nos anos setenta, os produtores de cinema sabiam que tinham de oferecer ao público algo que ele não pudesse encontrar na televisão”, analisa no jornal The Guardian o historiador de cinema Matthew Sweet. E acrescenta: “Por isso, costumavam incluir nudez e violência na primeira cena. Seria de se esperar que a HBO se libertasse dessas práticas, mas não é assim: ela oferece algo que não existe na televisão comum. Pode ser alta cultura, mas busca escandalizar o espectador, assim como aqueles filmes B dos anos setenta”. Quando a série estreou, em 2011, muitos espectadores consideraram Game of Thrones uma versão pornô de O Senhor dos Anéis.
O programa humorístico Saturday Night Live parodiou a série com um sketch ambientado em sua sala de roteiristas, com a assessoria de um adolescente. Em um episódio da série de animação South Park intitulado A Song of Ass and Fire(“uma canção de bunda e fogo”), um personagem perguntava ao escritor George R. R. Martin, autor da série de livros As Crônicas de Gelo e Fogo, na qual se baseia Game of Thrones, qual seria o desenlace da saga, e este lhe garantia que “estará cheio de pênis”.
O ator Jason Momoa (que interpretou Khal Drogo na série) disse, brincando, que seu personagem passava mais tempo nu que falando. Stephen Dillane (Stannis Baratheon) confessou que “essa estética de filme pornô alemão dos anos setenta” não a convencia. “Se tivesse sido adaptada para o cinema, seu alto orçamento teria exigido uma classificação adequada para menores. E isso significa nada de sexo, nada de sangue, nada de palavrões”, esclareceu o criador da série, David Benioff.


As desculpas de David Benioff, criador da série, de que ele considera consensual o sexo naquela cena entre Jaime e Cersei, perpetuando a sinistra noção cultural de que “não” significa “continue insistindo”, só acirraram a polêmica

A civilização retratada em Game of Thrones, embora seus habitantes não tenham percebido, está em fase de decomposição. E a decadência dos valores, somada à anarquia legal da guerra, costuma empurrar os seres humanos para o vício. O que realmente é questionável é aquilo que a câmera decidiu mostrar ou não: teoricamente, homens e mulheres deveriam se despir por igual para se entregar ao sexo. No entanto, nos 72 episódios de Game of Thrones, vimos 125 mulheres nuas (todas elas magras e com o púbis muito mais depilado do que seria de se esperar) e só 24 homens. No fundo seria Shakespeare, mas na forma era como uma pornochanchada.
A crítica especializada chegou a cunhar o termo sexposição para definir cenas em que um personagem se alongava em um monólogo informativo enquanto várias figurantes aparecem nuas em segundo plano: Mindinho explicando seu passado com Catelyn Stark enquanto duas prostitutas se acariciam ao fundo, Bronn preparando a estratégia para a batalha da Água Negra usando uma prostituta como apoio de braço ou Viserys Targaryen na banheira contextualizando o mito dos dragões para uma prostituta, que se excita com sua narração. Será que uma mulher excitada com uma história de dragões não é a fantasia dos fanáticos por esse universo?
Também havia, é verdade, sexo com sentido narrativo. Alfie Allen (Theon Greyjoy), o único protagonista a mostrar seu pênis (e já sabemos como isso terminou), descrevia suas múltiplas cenas sexuais como “as únicas em que Theon tem poder e autoridade, diferentemente do resto de sua vida”. Stannis e Melisandre praticando sexo sobre um mapa militar para conceber uma sombra assassina; Jon Snow renunciando a seu celibato com Igrid como em um ritual de desvirginamento com os espectadores como testemunhas pagãs, ou Jeoffrey torturando uma mulher com uma flecha até a morte. Tudo isso fazia sentido ao mostrar uma evolução dos personagens. Afinal, toda a confusão que nos manteve em suspense por nove anos começou com um estupro (o de Lyanna Stark por Rhaegar Targaryen) que acabou se revelando amor verdadeiro e se complicou quando Robb Stark perdeu a cabeça por Talisa Maegyr.




Ficou para trás o estilo de vida decadente de Tyrion nas primeiras temporadas.
Ficou para trás o estilo de vida decadente de Tyrion nas primeiras temporadas.


No episódio piloto, Khal Drogo violou Daenerys enquanto ela chorava diante de um belo pôr do sol e ninguém pareceu se incomodar com isso, embora nos livros esse coito seja consensual. Mas em 2014, quando Jaime estuprou sua irmã ao lado do cadáver de seu filho em comum, ignorando as súplicas dela (e quando Cersei considera que algo é imoral, é porque realmente é), e um ano depois, quando Ramsay Bolton violou Sansa Stark em sua noite de núpcias, os críticos condenaram a gratuidade das duas cenas.
Para começar, nenhuma delas ocorre nos livros, onde Cersei aceita esse sexo sacrílego e Bolton nunca se casa com Stark. As desculpas de David Benioff de que ele considera que o sexo entre Jaime e Cersei foi consensual, perpetuando a sinistra noção cultural de que “não” significa “continue insistindo”, só acirraram a polêmica. O mais criticável é que essas cenas, narrativamente, eram desnecessárias: os irmãos Lannister não voltaram a falar sobre isso e sua relação continuou normalmente (mais ou menos), enquanto o estupro nupcial não forneceu nenhuma informação que não soubéssemos sobre Ramsay, Sansa ou Theon — em cuja expressão de angústia se concentrava a câmera, tirando de Sansa até mesmo a possibilidade de protagonizar sua própria tragédia.
“O estupro e a violência sexual fizeram parte de todas as guerras, dos sumérios até a atualidade”, justificou George R. R. Martin em declarações ao The New York Times. “Omitir isso de um relato sobre guerra e poder seria falso e desonesto. E neutralizaria um dos temas dos livros: que os verdadeiros horrores da história humana não vêm de orcs nem de cavaleiros das trevas, mas sim de nós mesmos”, acrescentou. No entanto, nem o roteiro nem a direção (só quatro episódios em toda a série foram dirigidos por mulheres) souberam justificar essas cenas, transformando-as em exploração, em reclamações e em escândalos gratuitos.


Agora o sexo é só uma recompensa para os personagens e, por extensão, para o espectador. E como todo mundo já está fisgado, não é mais necessário atrair o público com nudez

Já aquele estupro de Khal Drogo teve consequências narrativas: Daenerys aprendeu depois as artes do amor (com a ajuda de uma prostituta, oferecendo assim um pouco de erotismo lésbico). O segundo encontro sexual foi de frente, para que se olhassem nos olhos, e no terceiro ela ficou por cima, como símbolo da subversão do poder nessa aliança romântico-estratégica. Daenerys terminou a temporada nua, sim, mas agora seu corpo era uma entidade sobrenatural que tinha dado à luz três dragões no meio de uma fogueira. Quando ela se deitou com Jon Snow no final da sétima temporada, a câmara se entreteve no traseiro dele.
Talvez Game of Thrones esteja ambientada em um mundo anárquico com suas próprias regras (ou, melhor dizendo, com a ausência total delas), mas foi escrita neste mundo. Ao todo, 70 capítulos foram escritos por homens e três, por mulheres. E este mundo, o nosso, foi sacudido, entre a sexta e a sétima temporada, pelo #MeToo, uma sensibilização coletiva diante da violência sexual contra a mulher e uma conversa social que foi notada nas estatísticas: a sexta temporada incluiu 22 nus (20 deles femininos) e a sétima, só seis, três deles masculinos.
E foi assim que a paridade chegou a Westeros. A HBO contratou até uma “coordenadora de intimidade”, Alicia Rodis, que supervisiona as filmagens de cenas de sexo nas séries da rede para proteger as atrizes física (lhes dá água, joelheiras ou lubrificante), social (comunica ao diretor se a atriz está desconfortável) e profissionalmente (negocia em seu nome o que ela está ou não disposta a fazer).




Ian McShane e Halle Berry na quarta-feira, na apresentação em Hollywood do filme ‘John Wick 3: Parabellum’. McShane, protagonista da série da HBO ‘Deadwood’, criticou ‘Game of Thrones’ (também da HBO) e irritou fãs da série que agora chega ao fim.
Ian McShane e Halle Berry na quarta-feira, na apresentação em Hollywood do filme ‘John Wick 3: Parabellum’. McShane, protagonista da série da HBO ‘Deadwood’, criticou ‘Game of Thrones’ (também da HBO) e irritou fãs da série que agora chega ao fim. FOTO: GETTY


Esta última temporada teve três cenas de sexo: Jaime com Brienne (filmada como um romance açucarado de Corín Tellado), Arya com Gendry (que, embora a atriz tenha 21 anos, muitos consideraram perturbadora ao sentir como se estivessem vendo sua irmã mais nova perder a virgindade) e, no único caso em que se viu carne, Bronn com duas prostitutas (talvez um aceno à libertinagem das primeiras temporadas), frustrado, porém, pelo aparecimento de Tyrion. Porque, assim como ocorreu na série, parece que em Westeros já não é bem visto transar à vontade. Agora o sexo é só uma recompensa para os personagens e, por extensão, para o espectador. E como todo mundo já está fisgado, não é mais necessário atrair o público com nudez.
Game of Thrones deixou de ser apenas uma série transmitida por um canal sem tabus e se transformou no produto cultural mais massificado da década. E isso significa tornar-se conservador tanto nos diálogos (que ficaram mais simples, talvez pelo temor de que fossem muito densos) quanto na violência (a cena da decapitação de Misandei teria sido muito mais sangrenta se tivesse sido filmada nas primeiras temporadas) e no sexo (Tyrion não tem relação sexual desde que se tornou honrado).
E, ao se tornar um fenômeno de massas, Game of Thrones foi se aproximando da Disney. Nos filmes da Marvel, o cânone da cultura popular atual, os super-heróis não têm nenhum tipo de instinto sexual: o amor do Capitão América pela agente Carter é puro e Tony Stark só era promíscuo no início de Homem de Ferro para representar seu estilo de vida decadente, assim como Tyrion nas duas primeiras temporadas. Quando assumiu seu papel de herói, Tony Stark se restringiu a uma relação monogâmica e assexuada com sua assistente. Game of Thrones estreou em um mundo diferente deste que agora vê a série terminar, e simplesmente ficou sem desculpas para mostrar seios sem motivo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário