domingo, 1 de agosto de 2021

Biblioterapia / A função terapêutica da literatura

 


Biblioterapia

A função terapêutica da literatura

MARIA ANTÓNIA JARDIM
14 JULHO 2021

Biblioterapia é um termo derivado das palavras latinas para livros e tratamento. Biblio é a raiz etimológica de palavras usadas para designar todo tipo de material bibliográfico ou de leitura, e terapia significa cura ou restabelecimento. A Biblioterapia é vista como um processo interativo, resultando em uma integração bem sucedida de valores e acções. O conceito de leitura empregado neste meaning making process é amplo e inclui todo tipo de material, inclusive os não convencionais.

O uso da leitura com objetivo terapêutico é antigo e muitos registros atestam essa utilização. No antigo Egipto, o Faraó Rammsés II mandou no frontispício de sua biblioteca Remédios para a alma (Alves, 1982), e as bibliotecas egípcias ficavam localizadas em templos denominados de “casas de vida” como locais de conhecimento e espiritualidade (Montet, 1989).

Tesouro dos remédios da alma era a inscrição que havia na biblioteca da Abadia de São Gall, durante a Idade Média (Alves, 1982). Também os gregos fizeram associação de livros como forma de tratamento médico e espiritual, ao conceberem suas bibliotecas como “a medicina da alma” (Marcinko, 1989). O Hospital Al Mansur, em 1272, recomendava leitura de trechos escolhidos do Alcorão como parte do tratamento médico (Marcinko, 1989).

Como é possível perceber, muita gente, em épocas diferentes, já tinha percebido o valor da leitura como um agente de transformação.

A função terapêutica da leitura admite a possibilidade de a literatura proporcionar a pacificação das emoções. Remontando a Aristóteles, observa-se que o filósofo analisa a liberação da emoção resultante da tragédia – a catarse. O acto de excitamento das emoções de piedade e medo proporcionaria alívio e prazer.

A leitura do texto literário, portanto, opera no leitor e no ouvinte o efeito de placidez, e a literatura possui a virtude de ser sedativa e curativa. A relação entre psique humana e literatura não é nova. Foi, inicialmente, alicerçada pelas emblemáticas observações psicanalíticas de Freud sobre a escrita como arte poética desde os gregos até alguns de seus representantes modernos como Shakespeare e Dostoiewski. Posteriormente, recebeu uma análise de Jung, que viu em Goethe, Spitteler, Nietzche, Blake e Dante personalidades criativas e transformadoras do mundo. Enfatizada, também, pela linhagem marxista com Vygostky na psicologia infantil ou com a actividade de Sartre entre a literatura e a filosofia existencial, essa relação foi se confirmando em todo o século XX.

De uma perspectiva narrativa, nós somos histórias, biografias e segundo MacIntyre (1981, p.213), autor com o qual Paul Ricoeur debate o conceito de identidade narrativa, seremos apenas co- autores das nossas próprias narrativas e por conseguinte somos de certeza co-autores das histórias dos nossos contemporâneos.

Roland Barthes (1966) é de opinião que a história da narrativa começa com a história da humanidade, as guerras entre os homens são guerras de linguagem, a conquista do poder e do território começa com a palavra; o que leva a perguntarmo-nos se a utilização das abordagens hermenêuticas poderá ajudar as pessoas e seus respectivos dilemas, no seu quotidiano? Segundo Rorty (1989) e Peavy (1991) a imaginação é a nossa ferramenta para engendrar metáforas, para dizermos as nossas histórias e assim redescrevermos quem somos, qual o nosso contexto e o que se torna significativo para nós, na nossa vida.

As primeiras narrativas eram desenhos, pinturas rupestres, imagens toscas representando um mundo de sobrevivência humana. Mas como olharão os vindouros para os nossos livros encadernados ou para as nossas esculturas?

Note-se que é importante ter em conta que as próprias histórias contêm em si elementos de ordem prospectiva que nos podem ajudar a organizar o nosso futuro e, portanto, a questionar o presente. Daí que o sociólogo David Cooper (1974) proponha que os livros sejam diálogos em que o que se vai passando no livro se torne criação conjunta de todos nós, pois existe um tempo para as mentes, um tempo para abandonar as nossas mentes e um tempo para as recuperar.

Em termos ricoeurianos, poderíamos dizer que há um tempo para nos apropriarmos da “coisa do texto” e um tempo para nos distanciarmos dela para reencontrarmos o nosso próprio sentido das coisas, no nosso contexto, já que escutar-se a si próprio é sempre uma condição prévia para ouvir a mensagem de outrem. Ao lermos ou relermos histórias de vida diferentes da nossa, ainda que animadas por personagens, manifestam-se, em nós, leitores, interrogações, juízos de valor e comparações e perguntas em que o advérbio de comparação surge: Ele faz como eu? Então, em última instância, é a nossa maneira de ver a vida que está em causa. Por isso e como sublinha Ricoeur “a narração nunca é eticamente neutra, mostra-se como o primeiro laboratório do julgamento moral”. Trata-se de uma feliz imagem ricoeuriana, que nos permite perceber que o racional e o sensível se sobrepôem neste processo: o objectivo subjectiviza-se e o subjectivo objectiviza-se, na e pela linguagem.

Deste modo, a arte literária afigura-se, por excelência, como palco laboratorial para experiências de pensamento onde variações imaginativas proliferam. São essas experiências de pensamento, suscitadas pela ficção, com todas as implicações éticas, que contribuem para o exame de si mesmo no quotidiano; assumindo uma função terapêutica.

Deste modo, estética e ética tornam-se indissociáveis na arte de narrar, que é uma arte que corresponde a uma troca de experiências em que a condição humana e os seus dilemas são equacionados. Compreender interpretando e interpretar compreendendo é deixar-se orientar por um horizonte, pelo modo possível de estar no mundo, aberto e descoberto pelo texto para o intérprete. Será tudo isto que confere ao sujeito uma nova capacidade de se compreender a si mesmo, de se reconstruir, de se re-imaginar.

É o encontro de horizontes, o do texto e o do leitor, o verdadeiro fio condutor, pois o sujeito que interpreta o texto, é por sua vez, por ele interpretado. A apropriação ou leitura implicada, modifica o leitor, obriga-o a desapropriar-se de si e a receber do texto uma nova proposta.

Assim sendo, podemos concluir que as histórias ajudarão os leitores a equacionarem os seus dilemas, os seus problemas e perguntas e respostas relativas à sua vida, e por isso poderemos dizer que os sujeitos leitores se tornam objectos e experiência de linguagem.

WSI




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