Herta Müller. A escritora romena radicada na Alemanha |
Herta Müller
fala dos livros que lança
no Brasil
A Nobel de literatura,- que acaba de cancelar sua vinda à Flip por problemas de saúde,
- comenta os efeitos das ditaduras, tema recorrente em sua obra
BERLIM - Prêmio Nobel de Literatura em 2009, a escritora Herta Müller descreve em sua obra experiências de vítimas da ditadura. Filha de um integrante das SS, as tropas de elite dos nazistas, ela nasceu em 1953, na Romênia, onde, como integrante da minoria alemã, foi perseguida, presa e torturada. “É uma experiência que marca uma pessoa pela vida inteira”, diz a autora, que acaba de lançar no Brasil o romance “O homem é um grande faisão no mundo” (Companhia das Letras), enquanto aguarda a publicação, nos próximos meses, do também romance “Fera d’alma” (título provisório) e da coletânea de ensaios “Der König verneigt sich und tötet” (“O rei faz uma reverência e mata”, em tradução livre), ambos pela Globo Livros. Convidada a participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, e do projeto Fronteiras do Pensamento, na mesma época, Herta cancelou sua vinda, como O GLOBO antecipou anteontem, alegando problemas de saúde. Após viajar para o Hay Festival, em Cartagena, na Colômbia, de onde voltou no dia 2, ela diz que passou a sofrer de hérnia de disco e dores na coluna que a impedem de se movimentar sem o uso de remédios fortes. “Acho que não suportaria em breve um voo de mais de dez horas”, justifica. Na entrevista a seguir, concedida na Casa de Literatura de Berlim, ela fala do Brasil, dos livros que estão saindo no país, de regimes totalitários e de seu modo de escrever.
Como a senhora vê o interesse que sua obra desperta no Brasil, onde tantos títulos estão sendo lançados?
Não sei o motivo, mas acredito que os brasileiros que procuram ler meu trabalho sabem que meu tema é a ditadura, e o Brasil também já foi palco de uma. Certamente o regime ditatorial brasileiro foi diferente do romeno, mas também no Brasil eu acredito que a rotina era dominada nessa época pelo medo, pela incalculabilidade da vida. Além disso, acho que há alguma semelhança entre o estilo de vida que existe no Brasil e o que tínhamos na Romênia. Também no que se refere à pobreza, sobre como as pessoas nessa situação descobrem modos de torná-la mais suportável. A ideia de ser criativo na necessidade é algo que os romenos compartilham com os brasileiros. Trata-se de uma forma de vitalidade.
Ser presa e torturada faz surgir uma força incomparável a partir da luta pela própria sobrevivência?
Nem todos os presos e torturados por uma ditadura têm força para viver depois. A perseguição é pura destruição da substância. É uma experiência que marca uma pessoa pela vida inteira. Acho que tudo depende da condição da pessoa, do quanto ela consegue suportar, também fisicamente.
Após 26 anos na Alemanha e muitos livros sobre seu passado, conseguiu superar o trauma?
Acho que sim. Mas o que significa superar? O que houve fica registrado, embora a distância dos acontecimentos, com o tempo, faça surgir outra perspectiva. Escrevi meus primeiros livros quando estava na Romênia e era vítima da perseguição do regime. Quando escrevo hoje sobre o assunto, tenho mais calma por causa do distanciamento.
Em “O homem é um grande faisão no mundo”, escrito em 1986, o personagem Sr. Windisch espera licença para deixar o país. Na época, a senhora também esperava poder vir para a Alemanha, o que fez em 1987. Deixar a Romênia era o maior sonho?
Quando vejo esse livro, ele me parece um pouco irreal. Tenho essa impressão com tudo o que escrevi há muito tempo. Hoje, talvez o fizesse diferente, mas há passagens que ainda vejo como reais. Acho que, em todas as ditaduras isoladas, sair do país é um desejo coletivo. Veja quanta gente morreu tentando cruzar o Muro de Berlim.
Foi esse ódio contra o ditador que fez com que Nicolae Ceausescu e sua mulher, Elena, fossem executados logo após a revolução de 1989?
Sou contra a pena de morte, mas as monstruosidades de Ceausescu são indescritíveis. Ele mandou matar homens, mulheres e crianças. Seu filho Nico praticava sequestros. Mas acho que ele e a esposa foram executados porque os envolvidos praticaram um golpe. Queriam que ele morresse logo para que não falasse, porque os que mataram o ditador eram do poder. Ceausescu era um psicopata e não era mais aceito pelos próprios adeptos. Veja como ainda hoje Margot Honecker, viúva do ditador alemão Erich Honecker, fala de como tudo era bom na época da ditadura. Essas pessoas são incapazes de admitir a própria culpa.
E hoje a senhora vê a Romênia como uma democracia?
Nem tanto. O governo do primeiro ministro Victor Ponta está tentando fazer voltar o nacionalismo. As instituições culturais foram obrigadas a acentuar o aspecto nacional. Acho que isso é possível porque o passado fascista da Romênia, quando o regime de Bucareste, sob o ditador Ion Antonescu, aderiu a Hitler, não foi superado. Hoje partidos nacionalistas reabilitaram Antonescu e negam a existência do Holocausto.
Recentemente, a senhora criticou a Alemanha por não lembrar devidamente os exilados durante a ditadura nazista. Poderia explicar?
É que há uma enorme discussão sobre os integrantes das minorias alemãs no Leste Europeu que foram banidos após a Segunda Guerra. Mas antes, na era nazista, aconteceu o maior banimento da História, de deportados para campos de concentração, mas também de exilados, como o austríaco Stefan Zweig, que fugiu para o Brasil, para sobreviver. Essas pessoas que enfrentaram sozinhas o exílio, muitas após perder parentes nos campos de concentração, não são lembradas como deveriam. A maior tragédia foi o Holocausto, mas há também esse aspecto do exílio.
O seu pai foi um nazista ativo. Ele falou com a senhora dessa época?
Eu condenava seu passado, perguntava, mas ele nunca disse nada. No fim dos anos 1960, comecei a me informar sobre a responsabilidade da minoria alemã durante o nazismo. O pior foi que meu pai nunca se arrependeu, nunca admitiu que tinha sido um erro. Eu tinha pouco mais de 20 anos quando ele morreu. Por causa desse envolvimento, depois da guerra minha mãe foi deportada para um gulag na Ucrânia.
Em “Fera d’alma”, a personagem trabalha numa fábrica, como a senhora fez no passado. Essa história é também autobiográfica?
Alguns elementos são autobiográficos, não tudo. É verdade que trabalhei em uma fábrica, de tratores, máquinas e cerca de arame.
Em “O rei faz uma reverência e mata” a senhora fala de uma criança solitária na imensidão do campo...
Aí é tudo autobiográfico. Eu me sentia só antes de conhecer a palavra solidão. No nosso dialeto da região Banat não havia palavra para solidão. Eu era filha única. Meus pais trabalhavam e eu assumia tarefas, como pastorear vacas, limpar chiqueiro. Era um vale gigantesco e solitário. Eu me sentia perdida.
A senhora escreve em uma mistura de poesia e prosa. Começou assim para, com metáforas, fugir à censura?
Não. Acredito que é o meu estilo. Acho necessário que a literatura seja poética. Pela formulação poética tento fazer com que o texto seja menos artificial, reflita a vida. Tento fazer com que as frases contenham mais do que as palavras que estão ali. É o que me motiva a escrever. O que quero contar, sei de imediato. A questão é como contar.
É disciplinada como Thomas Mann, todo dia na escrivaninha?
Não. Tenho horror a esse clima de escritório. Trabalho de forma espontânea. Mas, quando começo, não paro.
O Globo,
14 de fevererio
de 2013
http://oglobo.globo.com/cultura/herta-muller-fala-dos-livros-que-lanca-no-brasil-7570300#ixzz2KtDVgDZ8
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