Hermenegildo Sábat
HUMOR EN TEMPOS DE CÓLERA
O cartunista argentino Hermenegildo Sábat fala das dificuldades de se trabalhar diante de ameaças e pressão do governo Kirchner
Numa pequena e simpática salinha localizada num dos extremos da redação do jornal “Clarín” ele cria suas caricaturas há mais de 40 anos, com uma paixão inabalável por uma profissão que, afirma, vive seu pior momento. Nem mesmo na última ditadura militar argentina (1976-1983), Hermenegildo Sábat disse ter sentido uma pressão tão forte do poder quanto na era Kirchner. Recém-nomeado presidente da Academia Nacional de Jornalismo, essa eminência nacional, que acaba de fazer 80 anos, mantém um otimismo que diz ser parte de sua personalidade, mas não consegue esconder a preocupação, em meio à guerra judicial entre o “Clarín” e a Casa Rosada pela aplicação da Lei de Meios, cujo desfecho ainda é uma grande incógnita.
— Gostaria de poder continuar trabalhando, mas a intenção dessa gente é enclausurar o jornalismo independente, como Perón fez em seus primeiros governos (1946-1955). O kirchnerismo é um clone do primeiro peronismo — comenta Sábat, em entrevista ao GLOBO.
Hermenegildo Sábat |
Cartunista estrela do jornal mais importante da Argentina, ele gosta de definir-se, apenas, como um democrata. Certa vez, quando voltava de viagem de algum lugar do qual não se lembra, pensou em escrever “democrata” no espaço destinado à profissão na papeleta que até pouco tempo atrás quem chegava do exterior devia apresentar no aeroporto. Mudou de ideia para não “atrapalhar as pessoas que estavam atrás de mim, porque eu ia perder um certo tempo em explicar por que considero que minha principal profissão é ser um democrata”.
Sábat é, sem dúvida, um exemplo de democrata que incomoda o governo Kirchner e chegou a ser chamado de “quase mafioso” pela presidente Cristina, em ato público, diante de cerca de 70 mil pessoas. O motivo? Dias antes, em meados de 2008, em plena guerra entre a Casa Rosada e os produtores rurais que exigiam modificações no sistema de tributação e praticamente paralisaram o país durante quatro meses, o “Clarín” publicara uma caricatura da presidente com um esparadrapo na boca. O cartunista estava na redação e viu pela TV, ao vivo, o ataque a ele feito pela chefe de Estado.
— Senti que tinha de calar a boca, mas não mudei em nada meu trabalho — disse Sábat, que preferiu não revidar a ofensa.
Durante o regime militar, já no “Clarín”, depois de ter passado pelo mítico e extinto jornal “La Opinión” (que contou com a colaboração de outros grandes nomes do jornalismo argentino, como Tomás Eloy Martínez), o cartunista afirma ter trabalhado “bem”, chegando até mesmo a desenhar os ditadores Jorge Rafael Videla e Leopoldo Galtieri. O chefe da Marinha e também figura de proa da Junta Militar que comandou o golpe de Estado de 24 de março de 1976, Emilio Massera, teve um gesto que Sábat jamais esquecerá.
— Certa vez desenhei Massera se olhando num espelho e ele mandou pedir esse desenho. Os tiranos são muito vaidosos — ironiza.
Dois anos antes do golpe, o cartunista foi sequestrado durante algumas horas, mas essa é uma experiência sobre a qual prefere não falar muito. Ao contrário de outros colegas, políticos e dirigentes sociais que relatam com riqueza de detalhes a perseguição sofrida em uma das décadas mais violentas da História argentina, Sábat não gosta de falar sobre si mesmo, prefere preocupar-se com “o que vou fazer e não pelo que já fiz”. Uma filosofia de vida que o ajuda a atravessar o kirchnerismo com certa tranquilidade, em meio a ataques diretos do governo e seus aliados.
Em dezembro de 2012, o “Clarín” publicou uma nova caricatura de Cristina feita por Sábat, desta vez com um olho roxo. Eram momentos de auge da disputa entre a Casa Rosada e o grupo de meios de comunicação pela plena aplicação da Lei de Meios. O Executivo liderara uma grande campanha para anunciar o então famoso “7 D” (7 de dezembro), data em que se pensava que a lei finalmente deveria ser respeitada pelo “Clarín”, o que significava, na visão do governo, o início de um processo de venda de várias licenças de rádio e TV. No entanto, a Justiça favoreceu o grupo e o “7 D” nunca aconteceu. O dia tão esperado pelos kirchneristas não foi uma festa. Num clima quase de velório, a Assembleia Legislativa da cidade de Buenos Aires manifestou sua preocupação pelo trabalho de Sábat, acusado de incentivar a “violência de gênero”.
“A caricatura só pode ser entendida como uma manifestação de humor político, que é uma tradição centenária na Argentina. (...) vinculá-la com a violência de gênero, como fez a Assembleia, é uma hipótese temerária completamente afastada da qualidade humana e artística de Sábat”, respondeu o “Clarín”.
— Fui ameaçado, me compararam com sequestradores e grupos mafiosos. Foi duro, mas não faço da dor um exercício — diz.
Para ele, “em alguns aspectos, esta etapa é pior do que a ditadura”:
— (No governo militar) Cada um sabia o que fazia, os ditadores e os rebeldes. Os terrenos e atores estavam claros.
Para entender o kirchnerismo, explica, é fundamental analisar sua origem, os anos em que o movimento político fundado por Néstor Kirchner (2003-2007) dava seus primeiros passos na distante província de Santa Cruz, na Patagônia. Numa província onde vivem apenas 200 mil pessoas, o então governador e seus colaboradores, comenta Sábat, “armavam o jornal mais importante da região no bar localizado em frente ao palácio de governo”.
— Chegaram aqui e quiseram fazer a mesma coisa — afirma.
Mas Sábat, como bom democrata, confia no sistema político que retornou ao país em 1983. O resultado das eleições legislativas de 27 de outubro passado, nas quais cerca de 67% dos argentinos votaram em candidatos da oposição, mostra, para ele, “que as pessoas querem uma mudança através do método mais rico que existe: o voto”.
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