domingo, 24 de novembro de 2013

Luiz Ruffato / Sabe com quem está falando?



Sabe com quem está falando?

Não carrego em meus bolsos verdades, mas dúvidas. Não ofereço certezas, mas perguntas



LUIZ RUFFATO
24 NOV 2013 - 17:37 COT


Estimado leitor, já que vamos nos encontrar neste espaço com alguma freqüência, permita-me, primeiro de tudo, apresentar-me: chamo-me Luiz Ruffato. Luiz é nome ordinário em toda a Península Ibérica, e, por conseqüência, também na América dita Latina. Ruffato, no entanto, é sobrenome raro na Itália, de onde provém, e não muito comum nas áreas de colonização do sul e sudeste do Brasil – vez por outra, devido às facilidades das redes sociais, sou procurado por prováveis parentes, que assinam Ruffato, Rufato, Rufatto, Ruffatto... Apesar das diversas grafias, todos possivelmente oriundos do mesmo tronco ancorado na região do Vêneto...
De profissão, há dez anos sou escritor. Mas, antes, fiz de tudo um pouco. Agricultores sem terra, meus pais, Sebastião e Geni, após o casamento, mudaram-se para Cataguases, cidade onde nasci, no interior de Minas Gerais, pois intuíam que só a escola poderia salvar os filhos da privação material. Naquela época, década de 1950, Cataguases era um pólo importante, com indústria têxtil consolidada e forte vocação cultural. Analfabeta, minha mãe lavava até doze trouxas de roupa por semana – até hoje sinto o cheiro de água sanitária que exalava de suas mãos azuladas pela pedra de anil. Semianalfabeto, meu pai tentava se adaptar à rotina de cartões de ponto e chefes arrogantes, coisa que nunca conseguiu, tendo logo adquirido um carrinho de pipocas, verde-musgo, como esquecer?, com o qual durante boa parte da vida ajudou a sustentar a família.
Desde cedo comecei a trabalhar para auxiliar no orçamento doméstico. De início, vendia cachaça, tira-gostos e cigarros atrás de um balcão que ficava na altura de meus olhos – eu me punha de pé em cima de um engradado de madeira para atender os fregueses, que se constituíam de prostitutas e cafetões, já que a zona de meretrício ficava perto, e de operários que moravam no cortiço, do qual aquele botequim era uma espécie de posto avançado. Um pouco mais tarde, me esforçava para agradar à clientela basicamente feminina interessada nas miudezas – botões, zíperes, agulhas, sianinhas, fitas de gorgorão, colchetes, ilhós, lantejoulas – de um armarinho no centro da cidade.



Aos quinze anos ingressei numa fábrica de algodão hidrófilo. À noite, estudava em colégios onde dividia meu cansaço com colegas mais velhos, que almejavam trocar o calor asfixiante das tecelagens pelo tédio de um escritório de contabilidade... Aos dezessete, usinava peças de aço e ferro-fundido no torno mecânico de uma oficina em Juiz de Fora, para onde me desloquei em busca de alguma coisa que não sabia o que era, felicidade, talvez. Lá, me formei em jornalismo, ampliei meu gosto pelos livros e tive contato com pessoas que exercitavam a literatura e discutiam política, sonhando com uma sociedade mais justa.
Os anos 1980, a chamada “década perdida”, me surpreenderam aprendiz – repórter, redator, editor – em modestos jornais do interior. As melhores tardes e noites despendia em intermináveis discussões sobre tudo: eu tentava preencher as lacunas da minha ignorância, pensando assim compreender melhor um universo em tudo diferente daquele do qual originava. E nisto havia certa urgência, pois me parecia que o mundo se despedaçava... No começo dos anos 1990, desiludido, acreditei que não possuía talento para o jornalismo. Abandonei a profissão, fui ser gerente de uma lanchonete, fracassei, vendi livros de porta em porta... Até, finalmente, me transferir de vez para São Paulo e retomar a carreira, agora num grande periódico nacional. Após 13 anos, em que escalei todos os degraus dentro de uma redação, repórter, redator, subeditor, editor, secretário de redação, me convenci... de que meu negócio era mesmo literatura... Então, desde 2001 venho tentando recriar, a partir de fiapos da memória, histórias de gente sem nome e sem rosto, na ilusão de que em algum lugar alguém se lembrará de nossa passagem pela Terra...

Se exponho o caminho percorrido é porque não quero esquecer de onde parti. Ao longo da trajetória, percebi que quanto mais aprendo, menos sei. Por isso, não carrego em meus bolsos verdades, mas dúvidas. Não ofereço certezas, mas perguntas. Não espero respostas, mas reflexões. E, sim, permaneço sonhando com uma sociedade mais justa...
Agora você sabe com quem está falando, Muito prazer!
Luiz Ruffato é escritor e jornalista

EL PAÍS


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