Carlos Drummond de Andrade Copacbana, Rio de Janeiro, 2013 Foto de Triunfo Arciniegas |
Carlos Drummond de Andrade
Eu fui um homem qualquer
Veja, 19/11/1980
Publicado originalmente no Portal Literal por Zuenir Ventura em 04/12/2002.
Portal Literal, 30 de janeiro de 2013
Na primeira entrevista longa que dá a um jornalista, o consagrado poeta conta casos e diz que não crê muito na validade de sua obra
Quando ele completou 75 anos, em 1977, a imprensa lhe fez um cerco que envolveu teleobjetivas, plantões de rua, disfarces e incursões sorrateiras. Era mais uma, inútil, tentativa. Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta vivo da língua portuguesa, continuava o mesmo: recusava-se a dar entrevistas a jornalistas. “Seco, difícil, mal-humorado”, reclamou-se então.
Na segunda-feira passada, ao terminar o longo, surpreendente depoimento que deu com exclusividade a VEJA, Drummond, com bom humor, dizia: “Viu como o bicho não morde?” De fato, desfazia-se a imagem de um homem intratável ou inacessível. “Às vezes”, esclareceu, “somos criticados pelas qualidades que temos e elogiados pelas que não temos”. Falando com insuspeitada fluência e com discreto mas irresistível humor, Drummond admitiu ser tímido: “Sou incapaz de atravessar uma sala cheia de gente”, confessou timidamente. Por isso sente-se até hoje incomodado com o escândalo que a sua poesia modernista provocou, principalmente os poemas “José” e “No Meio do Caminho”. Quanto a esse último que dividiu o país em 1928, Drummond se surpreende: “Não sei por que as pessoas se irritam tanto. Mas o poema também não era assim a obra-prima que disseram, não”. Drummond diz que tem “um espírito moleque” capaz de passar trotes ao telefone e incapaz de levar muito a sério sua própria obra que, segundo, ele ainda vai ser esquecida e corre o risco de ser considerada “uma coisa chata”.
VEJA – Aos 78 anos, o senhor está saindo da casca?
DRUMMOND – Minha casca é um pouco discutível. As pessoas esquecem que durante anos e anos vivi de porta aberta, numa repartição pública, atendendo a gregos e goianos, como dizia o Torelly. Era minha obrigação, como chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema, conversar com todas as pessoas que me procurassem.
VEJA – E agora?
DRUMMOND – Muita gente diz que eu me recuso a receber estudantes. De fato, me esquivo e só recebo em casos muito especiais, porque nem sempre eles são orientados pelos professores para fazer uma entrevista mais interessante e perguntam coisas que já constam dos livros: ano de estréia, livros publicados, idade, essas coisas elementares. Adotei então um critério: peço que escrevam as perguntas e me mandem pelo correio. Respondo invariavelmente dentro de 24 ou no máximo 48 horas.
VEJA – Sua filha diz que o senhor é falso Casmurro. Na intimidade é Chaplin.
DRUMMOND – Sou um Casmurro rotulado pelos outros. Ao contrário, não me sinto Casmurro, mas também não posso ficar dando cambalhota na rua. Eu adoro, por exemplo, crianças. Os pais eu não ligo, não, mas crianças… Quando vão lá em casa, sento no chão, invento brinquedos. Mesmo criança não falando eu adoro. Eu gosto muito de bicho. A sociedade humana, para mim, já está um pouco mais difícil. Por exemplo, eu não gosto mais de festa, se é que algum dia gostei.
VEJA – Tem-se do senhor uma imagem de pessoa inacessível.
DRUMMOND – É verdade, mas a imagem também me parece um pouco injusta. Sou jornalista e jornalista é um homem que escreve em jornal, como diria Golias, o professor. Tenho uma coluna onde, quando quero emitir uma opinião política, emito. Ou uma conversa lírica, ou um devaneio. Sou cronista de segundo caderno mas, em meio às amenidades, me permito reclamar contra o excesso de generais que comandam o Brasil com o título de presidente da República, assim como me permito satirizar o Congresso quando, em vez de trabalhar e de reivindicar suas próprias prerrogativas, se torna um instrumento dócil ao governo. Quero reivindicar uma liberdade que conquistei com preço bastante alto, que é dizer aquilo que eu quero dizer no momento em que me forçam a dizer. Isso porque eu já tive uma espécie de militância política de resultado pouco favorável.
VEJA – Antes da militância, o senhor foi um elemento do Estado Novo, não?
DRUMMOND – Nunca me considerei como tal e acho uma injustiça se dizer tal coisa. Vim para o Rio em 1934 para trabalhar com um amigo pessoal, do tempo de colégio, Gustavo Capanema. Em 1937 houve o golpe de Estado e Capanema continuou. Continuei a servir a ele da mesma maneira, não tinha a menor ligação com o Estado Novo. Vi o dr. Getúlio Vargas duas ou três vezes na vida. As minhas relações com o palácio eram burocráticas: eu preparava pastas de documentos e mandava para lá, recebia telefonemas e cumpria recomendações burocráticas, mas não tinha nada a ver com a política do governo.
VEJA – É verdade que o senhor era uma espécie de Golbery do Capanema?
DRUMMOND – Deus me livre! Mas que comparação… Realmente, não. Acho que o general Golbery, que me parece um homem talentoso, que tem lá suas idéias, exerce uma função que deve ser útil ao presidente da República. Eu era apenas um assessor burocrático.
VEJA – O senhor foi do MEC para o PC?
DRUMMOND – Não. Eu tinha idéias de esquerda, mas nunca pertenci ao PC. Saí do Ministério e três meses depois fui ser co-diretor do jornal comunista Tribuna Popular. Éramos cinco diretores e nenhum de nós dirigia nada. Eu era o mais novo dos aderentes, dos simpatizantes. Eu me esforçava muito para pegar o estilo do jornal, mas não conseguia, apesar da tarimba relativamente grande. O que eu escrevia não saía e o que saía eu não entendia. Então, já desanimado e querendo mostrar meu desejo de colaborar, falei pra eles: “Olha, pessoal, vamos fazer uma página literária em que eu possa prestar um serviço eficiente”. A página saiu e nela eu encaixei uma resenha, modesta, de um livro traduzido por Eneida, que naquele momento não gozava de boa fama no Partido. Ela fazia parte de uma linha que não admitia a composição com Getúlio. Por isso não disse que era um trabalho magnífico de tradução. Botei assim embaixo: “Eneida traduziu”. Saiu a nota, menos a última linha. Comecei a me desencantar e acabei por escrever uma carta de demissão. A violência não era só contra as minhas idéias, mas também contra a minha sensibilidade.
VEJA – Houve represálias?
DRUMMOND – O Paratodos, que apareceu anos mais tarde, me acusou de estar vendido à embaixada americana. Também a Tribuna Popular mandou uma vez uma repórter me procurar para saber: “O que o senhor acha da bomba atômica?” Eu disse a ela: “Ah, eu sou a favor”.
VEJA – De brincadeira, claro?
DRUMMOND – Sim. Era uma provocação tão besta, né? No dia seguinte o jornal estampou: “Drummond é a favor da bomba atômica”.
VEJA – Como é mesmo aquele incidente em que, ao que se diz, Jorge Amado tentou agredi-lo?
DRUMMOND – Jorge Amado, não – é meu amigo. Há muita lenda a respeito. A nossa diretoria, eleita para a Associação Brasileira dos Escritores com a diferença de 100 votos num eleitorado de 700, foi tomar posse e a posse foi impugnada pelos comunistas. Houve conflito e no meio da confusão o antigo secretário teve um gesto de irritação e, em vez de me passar o livro de atas, já que eu era o novo secretário, jogou-o em cima da mesa. Como uma ema selvagem, peguei o livro e botei ele aqui, contra o peito, como se fosse o santo sudário, ou o velocino de ouro, porque eu sou fraco, não posso fazer grandes proezas. Aí eles se lançaram em cima de mim. Mas os meus amigos me cercaram e impediram que me agredissem e me tomassem o livro.
VEJA – Essa experiência tem alguma coisa a ver com a passagem de uma poesia como a de “Rosa do Povo”, participante, para uma poesia de expressão mais intelectualizada?
DRUMMOND – Admito. Levando esse choque, sendo destratado, quase agredido por companheiros da Associação, e já terminada a guerra que, se dizia, ia terminar com as guerras, fui me desinteressando do problema político e mergulhei assim numa espécie de solidão em que me interessavam só os problemas, não digo metafísicos, mas os ligados ao destino final do homem, à natureza do homem, à existência, ao mistério da existência do homem e da sua finalidade, do seu próprio ser. Esporadicamente me vem o desejo de participar. Sempre que eu vejo uma injustiça que me dói mais, uma sucessão até agora infinita de generais na Presidência da República, quando vejo governadores nomeados sem nenhuma ligação política com o Estado a que pertencem ou então com uma falsa ligação política, quando vejo todas essas coisas, procuro, se não em verso porque o assunto não comporta, pelo menos em prosa, na minha crônica, dizer essas coisas. Não perdi a capacidade de indignação, mas ela está misturada com o ceticismo de quem não vê perspectiva de melhora nesses próximos tempos. Há um entusiasmo na mocidade, há desejo de fazer alguma coisa, mas a mocidade foi tão sacrificada nesses anos de revolução, os melhores foram destruídos: ou ficaram aterrorizados para o resto da vida, ou morreram fisicamente ou desapareceram. Houve um hiato na formação social do Brasil, houve uma geração que não pôde dizer a sua realidade.
VEJA – O senhor acha que a abertura de agora foi diferente da de 1945?
DRUMMOND – Não. Acho que estamos repetindo a mesma comédia de antes. O general Dutra foi eleito também com votos comunistas e a primeira coisa que fez foi fechar o PC. Impede-se um partido de ter existência legal e declara-se que o partido é ilegal. É ilegal a começar pelo pensamento do governo, que não quer que ele seja legal. Vamos fazer no Brasil uma experiência de PC legal? Eu prometo que não entraria nele.
VEJA – Como o maior poeta da língua portuguesa…
DRUMMOND – Você já mediu?
VEJA – É o consenso.
DRUMMOND – Não. É muito difícil você dizer se o Fernando Pessoa é maior ou menor do que Camões. Não há possibilidade real ou científica de avaliar o tamanho dos poetas.
VEJA – Como o senhor se vê como poeta?
DRUMMOND – Eu não me vejo, sabe? Eu sou eu, estou dentro de mim. Não tenho opinião a meu respeito. Faço as coisas quando tenho vontade de fazer ou quando elas saem. Porque às vezes fico parado dentro daquela prisão de ventre mental.
VEJA – A posteridade o preocupa?
DRUMMOND – De maneira nenhuma, pelo contrário, não dou a mínima. Quando vejo os poetas que dominavam o Rio quando vim para cá e que hoje não têm quem reedite suas obras… Havia um escritor chamado Humberto de Campos que era o máximo – até que morreu. O Brasil inteiro acompanhou sua doença, foi uma comoção nacional. Todo mundo lia seus livros. Hoje, não há um editor que se lembre de publicar Humberto de Campos.
VEJA – Isso pode acontecer com o senhor?
DRUMMOND – O julgamento contemporâneo é muito falível. Não temos distanciamento para julgar as pessoas. Temos pessoas na moda e pessoas fora da moda. Vamos admitir que no momento eu esteja na moda.
VEJA – A que o senhor atribui o fato de estar tanto tempo na moda?
DRUMMOND – Ao fato de ter trabalhado sempre em jornais de grande circulação. Trabalhei no Correio da Manhã, que era um jornal heróico, briguento, implicante com a situação. E depois no Jornal do Brasil, que é um jornal liberal que tem uma certa vivacidade ao criticar o governo e dá muita liberdade aos seus colaboradores. Também tem o seguinte: não faço concorrência a ninguém, não ameaço, não pretendo ocupar nenhum lugar, não desejo nada, quero ficar quieto no meu canto, ouvindo a minha musicazinha, conversando com uns poucos amigos, falando muito ao telefone. Falo muito ao telefone porque, além do mais, sair à rua no Rio não é muito fácil, eu não tenho carro. Mesmo tendo, a pessoa já corre risco, imagine então uma pessoa como eu, que não tem defesa, que é frágil.
VEJA – Como o senhor consegue se manter atualizado, inclusive incorporando a gíria dos “jovens”?
DRUMMOND – O meu cotidiano é um pouco maroto, sabe? É mais através dos jornais do dia. Sou um leitor de jornal voraz. Sempre gostei muito de jornal. A única vocação que tive foi a de jornalista, e não a realizei plenamente.
VEJA – É uma frustração?
DRUMMOND – Não digo frustração porque, se há uma pessoa que se sente relativamente feliz, sendo uma pessoa cética e até pessimista, sou eu. Levei sempre uma vida de classe média modesta, nunca aspirei a subir a um grau mais elevado, nunca cultivei pessoas poderosas e nunca tive necessidade de pedir emprego. Quer dizer: passei a vida sem maiores dificuldades, também sem maiores glórias.
VEJA – O senhor gosta de televisão?
DRUMMOND – Gosto muito de algumas coisas em TV. Gosto dos telejornais, naturalmente, porque é uma maneira que se tem de receber as notícias logo. Gosto de um programa humorístico como o do Jô Soares, “Planeta dos Homens”, e chego a gostar infantilmente dos Trapalhões: rio algumas vezes. Não tenho preconceito nenhum. Gosto de música popular como gosto de música erudita.
VEJA – Em música popular, o que mais gosta?
DRUMMOND – Gosto do Martinho da Vila, que até me deu a honra de chamar um disco de “A Rosa do Povo” e fez um samba de um poema meu, “Sonho de um Sonho”. Gosto de Noel, de Caetano, de Gilberto Gil. E também do Tom Jobim. É difícil dizer assim de cabeça, mas tem muita gente boa. Gosto de Chico Buarque, nem é preciso dizer, com quem me sinto muito identificado.
VEJA – O senhor concorda com as declarações dele sobre a crítica?
DRUMMOND – Não ouvi as declarações, mas, se ele quis dizer que a crítica não tem plenos direitos, não estou de acordo. Acredito que ele não tenha querido dizer isso. Acho a crítica fundamental, e digo mais: fui muito massacrado por ela. De vez em quando ainda aparecem aí uns sujeitos que me metem o pau. Fui atacado até pessoalmente. Por exemplo: o poema “Sejamos Pornográficos”. O pessoal dizia: “Como é que pode ser chefe de gabinete do ministro da Educação, lidando com normalistas e crianças, um homem que dá conselhos aos brasileiros para serem pornográficos”. Eram burrices, né? O Chico é uma pessoa muito esclarecida, não acredito que ele quisesse comprar uma briga com a crítica.
VEJA – Ele acha que a crítica precisa aprender a ser criticada.
DRUMMOND – Até certo ponto ele tem razão, mas eu não me permito, como criticado, responder à crítica. A pessoa que publica um livro, compõe uma canção, faz uma escultura ou pinta um quadro, expõe a carne às feras. Aquilo já é um produto que saiu dele, certamente não pertence mais a ele, pertence à comunidade. Eu sempre me expus a isso. Havia um crítico no O Globo, o Eloy Pontes, que diariamente fazia um artigo contra mim ou contra o Vinicius. Uma ocasião o Vinicius queria bater nele e eu pedi: “Vinicius, por favor, não bate nele, não, fica quieto”. Então o Roberto Marinho mandou dizer que eu tinha direito de resposta no próprio O Globo, mas nunca quis usar desse direito. Compreendo o Chico até certo ponto, mas acho que a gente tem que receber a crítica com humildade. Se o crítico não compreendeu, se ele é burro, paciência.
VEJA – Como é que o senhor consegue conciliar a felicidade individual com sua culpa social por causa de um mundo injusto?
DRUMMOND – Felicidade pessoal é exagero. Prefiro serenidade pessoal, marcada por alguns relâmpagos, porque de vez em quando perco a paciência. Não me cabendo ser um ator ativo no espetáculo do mundo, sendo apenas mais um observador, me limito a dizer alguma coisa do que penso, do que sinto, com a convicção de que isso não vai adiantar nada. Nunca entendi bem o mundo, acho o mundo um teatro de injustiças e de ferocidades extraordinárias. Dizer que nós evoluímos desde o homem das cavernas é um pouco de exagero, porque criamos, com a tecnologia, aparelhos mais sofisticados para a felicidade do mundo e esses aparelhos estão sendo utilizados para sua destruição. Isso não é civilização, francamente. Isso é uma porcaria.
VEJA – Como na sua obra, o humor ajuda a temperar o ceticismo?
DRUMMOND – É possível que sim. Em vez de ficar irritado, em vez de ficar atirando pedra nas instituições, eu jogo com um pouco de humor.
VEJA – Embora o humor de sua poesia seja considerado corrosivo.
DRUMMOND – Não sei se é corrosivo. Não é fácil julgar. Por falar em ceticismo, você conhece a história do Graciliano Ramos com o Otto Maria Carpeaux? Um cumprimentou: “Bom dia”. E o outro: “Você acha?” Outra: “Que tempo, hem, seu Graciliano. Vai chegar o dia em que vamos pedir esmolas”. E ele: “A quem?”
VEJA – Se o senhor tivesse que levar para uma ilha deserta três poemas de Drummond, quais levaria?
DRUMMOND – Não levava nenhum, não. Levava Baudelaire, Fernando Pessoa, Whitman, Verlaine. Deve ser muito chato o sujeito ficar se contemplando na ilha assim: “Eu fiz isso, fiz aquilo, que beleza”.
VEJA – O senhor continua, como no antigo poema, “Triste, orgulhoso: de ferro”?
DRUMMOND – Mais ou menos. Mas em que consiste meu orgulho? Não faço propaganda de mim mesmo. Se os jornais se referem a mim é iniciativa deles; eu agradeço quando a intenção é boa, mas não peço. Uma vez ou outra fiz uma brincadeira de falar sobre o meu livro, mas sempre num tom irônico em que a pessoa lendo aquilo diz: “Esse camarada não leva a sério nem a si mesmo”. Nenhum jornal brasileiro pode dizer que eu pedi para dar uma notícia a meu favor ou de pessoa de minha família, por exemplo, minha filha. Não há. Se isso é orgulho, eu sou orgulhoso.
VEJA – A imprensa já o chamou de seco e mal-humorado.
DRUMMOND – Há pessoas que dizem assim: “Ele cumprimenta secamente, não abraça”. Abraçar é costume muito brasileiro; a pessoa quer uma pancadinha nas costas. Nem sempre isso me ocorre, até por timidez. Eu não sei se de fato a pessoa está disposta a ter aquela exuberância, aquela veemência comigo. Então, eu a poupo da reação. Agora, procuro ser polido com todo mundo. E nunca recusei coisas por orgulho.
VEJA – Nem prêmios? E o de Brasília?
DRUMMOND – O Prêmio de Brasília é um prêmio oficial. Achei que não devia aceitar porque tinha colegas meus presos, tinha jornalistas torturados. Não podia protestar contra isso nem o meu feitio é agressivo. Então, achei que a maneira que eu tinha de manifestar que eu não estava de acordo era não ir lá e não aceitar. O da Academia eu recusei antes que me fosse oferecido. Expliquei que, se eu aceitasse, não teria mais autoridade para criticá-la. Favor é uma coisa terrível: você fica preso, por gratidão, até a um favor incômodo. Mesmo não querendo, você tem que corresponder.
VEJA – O que o senhor tem contra a Academia?
DRUMMOND – Não tenho nada contra, mas acho que ela não preenche os fins que devia preencher. Ela tem pessoas da maior qualidade e que não são aproveitadas por uma política cultural que faça, em primeiro lugar, restabelecer a coleção de livros que a Academia publicava no tempo de Afrânio Peixoto. Por que não continua a publicar os clássicos brasileiros? Publica no máximo a revista, que ninguém lê.
VEJA – Quem sabe as coisas melhorem quando o senhor for para lá.
DRUMMOND – Jamais. Inclusive, se eu entrasse seria para abrir vaga.
VEJA – O senhor ficou muito abalado com a morte de Vinicius?
DRUMMOND – Talvez tenha havido um excesso de observação jornalística, A revista VEJA, por exemplo, me mostrou de barba por fazer, dizendo que, abatido, eu tinha deixado crescer a barba. Por um problema de herpes, tinha muita dificuldade de fazer a barba. Tinha que deixá-la crescer. Não era uma espécie de luto físico pela morte do Vinicius. Naturalmente senti muito a morte dele.
VEJA – Otto Lara Resende diz que o senhor tinha inveja dele. No fundo, adoraria subir no palco com um copo de uísque na mão.
DRUMMOND – Isso é o menos. Eu invejava o conceito que o Vinicius teve de vida, de independência de espírito, de falta de compromissos com as convenções sociais. Ele fazia o que queria e sempre com aquela doçura, com aquela capacidade de encantar que fazia com que as donas-de-casa mais severas o adorassem. Conta-se que, entre as muitas namoradas que teve, uma era particularmente feia. Vinicius explicava que ela “era muito feiazinha, coitadinha”, por isso a namorava. É a suprema delicadeza.
VEJA – Falando de amores, Oscar Niemeyer diz que o senhor foi um grande namorador do Rio.
DRUMMOND – O Oscar, além de inventar formas originais em arquitetura, inventa histórias. Estou sabendo disso pela primeira vez. Era um título até bastante simpático, mas não pude merecê-lo porque, nos anos mais floridos no Rio, eu era um burocrata metido até o pescoço no papel. De modo que nunca fui visto exercendo esses poderes tão sedutores. O Oscar está imaginando. Quem sabe eu posso devolver a ele esse título?
VEJA – Sem falsa modéstia: o senhor não tem realmente consciência da dimensão de sua obra?
DRUMMOND – Acho minha obra uma obra falha, uma obra que podia ser melhor. Ela não teve um desenvolvimento assim consciente, lógico. Fui levado pela intuição e pelo instinto, pelas emoções do momento. Não creio muito na validade dessa obra. Acho o seguinte: como sou um homem do meu tempo, exprimi paixões e emoções do meu tempo, e isso naturalmente tocou as pessoas. Não vou dizer que, para mim, não é agradável. É realmente agradável quando uma pessoa me escreve do interior do Brasil, de uma cidade qualquer, para dizer que se comoveu com uma coisa que eu fiz. Isso vale mais do que o elogio técnico de um especialista em literatura. Ao escrever poesia, o que procurei fazer foi resolver problemas internos meus, problemas de ascendência, problemas genéticos, problemas de natureza psicológica, de inadaptação ao mundo, como ele existia. Foi a minha autoterapia. O resultado é esse. Não tenho maiores pretensões. As modas mudam muito. Daqui a cinco ou dez anos, terei desaparecido e virão novos poetas, novas formas de poesia, novos critérios, novas tendências. Amanhã ou depois, daqui a cinqüenta anos, um sujeito diz: “Olha, descobrimos um poeta chamado Drummond, que tinha uma pedra no meio do caminho. Que coisa curiosa”. Ou “que coisa chata”.
VEJA – Quer dizer que o anjo torto tinha razão: o senhor foi gauche na vida?
DRUMMOND – Acho que fui. Porque não aderi ao sistema de valores que dominava na minha época, participei timidamente de um movimento de renovação literária, que não chegou a ser política, nem social, nem econômica. Fiquei na minha toca. Não tenho nada de especial, não. Foi uma vida medíocre. Me deu o prazer de algumas amizades, algumas coisas boas. Eu fui um homem qualquer. Mais nada.
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Leia mais:
Drummond anos depois
* Este texto foi publicado no site www.nominimo.com.br em 12 de novembro de 2002.
Abro o Especial sobre Carlos Drummond de Andrade no site da revista Veja e encontro como primeira matéria uma entrevista com o título “Eu fui um homem qualquer” e com o seguinte subtítulo: “Na primeira entrevista longa que dá a um jornalista, o consagrado poeta conta casos e diz que não crê muito na validade de sua obra!”. A publicação é de 19 de novembro de 1980 e o autor da entrevista é esse aqui que vos fala.
A história desse trabalho, cujo mérito, se houver, não é meu, mas da sorte, continua um mistério na minha carreira. Três anos depois de completar 75 anos, em 1977, quando resistiu bravamente a um cerco implacável da imprensa, o poeta resolveu falar e me mandou um recado pela divulgadora da editora José Olympio. Eu era chefe da sucursal de Veja no Rio, e trotes como esse costumavam ocorrer. Colegas ligavam dizendo, por exemplo, que Rubem Fonseca estava a fim de dar uma entrevista, que Brigitte Bardot se encontrava incógnita em Búzios à espera de um repórter da revista.
Por isso, ouvi o primeiro telefonema, disse que “sim, tá bem, acredito”, e praticamente desliguei na cara da moça. No dia seguinte, à mesma hora, a mesma ligação. Dessa vez, porém, não bati o telefone. Como era um pouco antes do almoço, resolvi dar uma passada na editora, se bem que ainda desconfiado, ainda meio que me dizendo “será que não é trote?”.
Ao chegar, Drummond estava lá, tímido, todo sem jeito, mais do que eu, desculpando-se, imaginem, por me ter chamado e anunciando que gostaria de dar uma entrevista, evidentemente se eu quisesse. Não disse o porquê – nem ali, nem depois na gravação – daquela surpreendente mudança de atitude. Mais do que depressa marquei para o dia seguinte cedo, ali na editora.
Só não sabia que, quase mais difícil do que realizar a entrevista, seria “vendê-la” à sede em São Paulo. A primeira dificuldade foi convencer o diretor de redação da época de que aquele poeta valia um destaque. “Quantos livros ele vende?”, foi a primeira pergunta. Respondi que não era muito, devia ser uns cinco mil exemplares, mas que ele era o maior poeta do Brasil. “Que que adianta ser o maior poeta e vender cinco mil exemplares?”. Esse diálogo – hoje parece inacreditável – continuou, mas diante da insistência me foi concedido um crédito: “Então faz, mas sem compromisso de publicação, a gente vê depois”.
Feita a entrevista, uma outra trabalhosa negociação: as “amarelas” ocupavam sempre três páginas e eu reivindicava mais uma, alegando que a entrevista, além de exclusiva, era longa e reveladora. Foi preciso um forte pistolão para convencer o diretor. Perdi, no entanto, na edição. Drummond gostava que o chamassem de “você” e a Veja não admitia esse tratamento em entrevistas. Assim, em todas as perguntas aparece um “senhor” que não houve na conversa. O pior é que a descontração e a irreverência da entrevista desapareceram na edição. Por exemplo: havia uma pergunta assim: – Oscar Niemeyer costuma dizer que você é um grande come-quieto?
Foi publicado assim, perdendo a graça:
- … Oscar Niemeyer diz que o senhor foi um grande namorador do Rio.
Em compensação, a revista manteve uma resposta que era uma crítica a ela. Eu perguntei se ele ficara muito abalado com a morte de Vinicius de Moraes, ele respondeu que sim, mas não da maneira como fora mostrado: “A Veja me mostrou de barba por fazer, dizendo que, abatido, eu tinha deixado a barba crescer”. Na verdade, ele a deixara crescer por causa de uma crise de herpes.
Nas duas respostas finais, Drummond faz um balanço de sua obra e de sua vida:
“Acho minha obra uma obra falha, uma obra que podia ser melhor. Ela não teve um desenvolvimento assim consciente, lógico. Fui levado pela intuição e pelo instinto, pelas emoções do momento. Não creio muito na validade dessa obra (…). Daqui a cinco ou dez anos, terei desaparecido e virão novos poetas, novas formas de poesia, novos critérios, novas tendências. Amanhã ou depois, daqui a cinqüenta anos, um sujeito diz: ‘Olha, descobrimos um poeta chamado Drummond, que tinha uma pedra no meio do caminho. Que coisa curiosa’. Ou ‘que coisa chata’.”
Minha última pergunta tal como saiu foi: “Quer dizer que o ‘anjo torto’ tinha razão: o senhor foi gauche na vida?
Resposta: “Acho que fui. Porque não aderi ao sistema de valores que dominava na minha época, participei timidamente de um movimento de renovação literária, que não chegou a ser política, nem social, nem econômica. Fiquei na minha toca. Não tenho nada de especial, não. Foi uma vida medíocre. Me deu o prazer de algumas amizades, algumas coisas boas. Eu fui um homem qualquer. Mais nada”.
(Detalhe: o idiota aqui não guardou a transcrição nem a gravação da entrevista)
Como um privilegiado amigo pessoal de Drummond, dos velhos tempos de Copacabana, onde vivíamos, tomo a liberdade de externar minha imensa gratidão ao jornalista Zuenir Ventura, por nos ter oferecido tão sincera e amorosa entrevista com o poeta que mais toca meus sentimentos como pessoa humana e brasileiro comprometido com os destinos deste país, que agora vem tomando ritmos fascistas e assustadores. A propósito, nessa mesma entrevista, Drummond se refere à Ditadura Militar que estávamos vivendo, com grande sentimento crítico e de amargura, pela sua prática contumaz da tortura e outros desmandos. Daí sua atualidade e permanência em nossas "retinas tão fatigadas", ao nos confrontar com os absurdos diários perpetrados pelas elites grotescas, destruidoras, insensíveis e brutais, que se arvoraram em donas dos nossos destinos e estão conduzindo esta nação a um abismo sem fim.
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